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Entrevista: 
Roberto Leher

'A quantidade e a qualidade estão em conflito destrutivo'

O professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro Roberto Leher avalia aqui o cenário atual da educação brasileira, com recorte na educação profissional. Além disso aponta os rumos para educação daqui para frente.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 03/10/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Qual é o balanço da educação hoje no país? E como o senhor avalia a educação profissional?

A situação da educação brasileira é paradoxal: a quantidade e a qualidade estão em conflito destrutivo, o que é uma tragédia. A expansão está se dando às custas da qualidade. Podemos dizer que houve avanços na ampliação do ensino fundamental para 9 anos, mas às custas do esvaziamento pedagógico da educação infantil que, embora ampliada de modo significativo, alcançando perto de 80% da faixa etária de 4 a 5 anos, ainda é concebida nas políticas como assistência social precária e, no caso da faixa de 0-3 anos, a cobertura é pífia. O ensino fundamental alcança perto de 98% da faixa de 6 a 14 anos, mas os problemas são evidentes quando as diferenças de classe, etnia e territórios são consideradas.

O mesmo pode ser dito em relação ao ensino médio que, após importante expansão, está em decréscimo e, é forçoso reconhecer, não assegura conhecimentos científicos, tecnológicos, histórico-sociais, culturais e artísticos compatíveis com este nível que deveria assegurar uma sólida cultura geral aos jovens. Não estou me referindo ao IDEB [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], de fato, abaixo das expectativas, pois não considero tal forma de avaliação construtiva, rigorosa e em favor da educação pública, mas a constatação dos próprios docentes que percebem o quanto a situação está deteriorada na educação pública em virtude de políticas desastrosas dirigidas pelas coalizões empresariais.

O mais grave é que o MEC abraçou as políticas empresariais convertendo-as em políticas de Estado, como foi possível depreender do exame do Plano de Desenvolvimento da Educação e da lei 13.005/2014, que dispõe sobre o Plano Nacional de Educação, toda ela pautada pela agenda das coalizões empresariais, organizadas pelo Todos pela Educação e pela Confederação Nacional da Indústria (no caso da formação profissional, toda ela submetida ao Sistema S) e, ainda, dos setores financeiros que controlam a educação superior privada e a produção de material didático, corporações que necessitam de permanente subsídio do Estado, a exemplo do FIES e do ProUni.

Certamente, os governos que incorporaram essa agenda, como Lula da Silva e Dilma Rousseff (mas também os seus adversários no processo eleitoral, como Marina Silva e Aécio Neves incorporaram a agenda do capital como suas), estão cientes de que, em decorrência do lugar de classe desses setores do capital, os mesmos não podem se comprometer com a educação pública unitária para a classe trabalhadora. Dessas opções decorre, também, as ações voltadas para a formação profissional, pulverizadas em uma miríade de programas, como Proeja, Projovem e que, mais recentemente, foi inserida sob o guarda-chuva do Pronatec, todo ele liderado pelo setor empresarial, em busca de força de trabalho simples e da ampliação consistente do Exército Industrial de Reserva, uma condição para manter os salários dos jovens rebaixados.

A educação superior privada, igualmente, foi muito ampliada, correspondendo a 75% dos mais de 7 milhões de matrículas da educação superior, mas por meio de cursos profundamente esvaziados, apostilados, de curta duração (cerca de 1 milhão de matrículas), a distância (1,1 milhão de matrículas) e ofertado por um pequeno número de corporações, a exemplo da Kroton-Anhanguera, a maior empresa educacional do mundo, que disputam o monopólio da educação dos consumidores subsidiados pelas verbas públicas. E as universidades públicas, inchadas de estudantes, após as promessas douradas mas não cumpridas do REUNI, encontram-se em acelerado processo de sucateamento, com seus docentes exauridos de tanto trabalho. O legado da ditadura empresarial-militar, da Nova República sarneysista, dos novos e velhos neoliberais, é terrível, comprometendo a formação cultural das novas gerações de modo severo.

Quais as principais necessidades da educação que, na sua avaliação, deveriam ser atendidas pelos governos que serão eleitos neste ano?

Não adiantaria fazer recomendações: os três candidatos com chances de vencer a eleição presidencial fizeram uma aliança de classe com os setores dominantes, incorporaram o projeto neoliberal de educação como serviço e não irão alterar a lógica esboçada acima. A alternativa está nas lutas da classe trabalhadora. O Encontro Nacional de Educação, realizado com êxito em agosto de 2014, reunindo mais de 2,3 mil militantes, é um promissor ponto de partida para lutas massivas em prol da educação pública. Mas precisa ser ampliado e enraizado nas lutas sociais.

O objetivo inicial é retirar a educação pública das mãos do capital, lutando para que os 10% do PIB para a educação pública seja aplicado imediata e exclusivamente na educação pública, extinguindo as parcerias público-privadas que vêm erodindo o sentido público da educação. Com efeito, a despeito do discurso em voga nos governos e em setores reacionários da academia, não é verdade que o país gasta muito em educação, mas as verbas são mal aplicadas. O gasto por estudante no Brasil é dramaticamente abaixo dos países da OCDE, bem menos de 1/3 daqueles países. Os docentes e demais trabalhadores da educação não possuem uma carreira digna, o piso salarial, vergonhoso, sequer é assegurado pelos estados e municípios, pois a lei que o criou é imprecisa, facilitando o seu desrespeito.

Junto com as lutas pelo financiamento público da educação, as lutas não podem deixar de incidir sobre a reivindicação histórica da escola unitária, recusando a disjunção entre os que pensam e os que executam, buscando assegurar uma cultura geral das crianças, jovens e adultos, em todos os níveis, de modo que a educação pública seja um lugar capaz de fomentar a imaginação inventiva - uma condição para que a ordem brutal e destrutiva do capital possa ser desejada e perseguida nas lutas sociais do século XXI.

Entrevista concedida à Viviane Tavares - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).