Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Nestor Kohan

'A revolução se faz sempre contra a lei'

Em janeiro de 2009, o povo boliviano foi às urnas para aprovar a nova Constituição do país. Em setembro de 2008, foi a vez do Equador. Já a Venezuela aprovou seu novo texto constitucional, a ‘Constituição Bolivariana’ em 1999. Em comum, as três constituições defendem uma maior presença do Estado na economia: proposta que se apresenta como um contraponto à tendência neoliberal dos anos 90. Na opinião de Néstor Kohan – doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Buenos Aires (UBA), coordenador da Cátedra Che Guevara – Colectivo Amauta e professor-convidado da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) –, isso mostra que estamos num novo contexto político, que abre espaço para a ampliação da esquerda e de seu projeto contra-hegemônico. Ao mesmo tempo, segundo ele, outros países latino-americanos como Brasil, Argentina, Uruguai e Chile têm discursos progressistas e praticam o chamado ‘capitalismo humanizado’ ou terceira via. Esse é um dos assuntos abordados pelo filósofo argentino nesta entrevista, em que ele faz uma análise dos movimentos populares da América Latina, explica o que é ‘capitalismo humanizado’ e qual é a diferença entre terrorismo e revolução. Ele também fala sobre igualdade e eqüidade nos governos latino-americanos e suas políticas para saúde, educação e trabalho.
Juliana Chagas - EPSJV/Fiocruz | 15/12/2008 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Você diz que hoje o marxismo tem sido deixado de lado e, em troca, temos um capitalismo mais “humanizado”. O que seria isso?

O ‘capitalismo humanizado’ é uma propaganda. É a idéia de que se pode mudar a sociedade colocando remendos. A diferença entre o reformismo de hoje e o do princípio do século XX é que este último, pelo menos, tentava chegar ao socialismo, pensava que isso aconteceria aos poucos, de maneira evolutiva. Já o capitalismo “humanizado” abandona toda a perspectiva socialista e se propõe unicamente a modelar os efeitos negativos do capitalismo, construir um capitalismo menos selvagem, menos violento. Mas um capitalismo, no fim das contas.

É uma velha ilusão de regressar ao início da era capitalista. Nessa época, propunha-se uma série de reformas para moderar as crises do capitalismo e diminuir a ameaça que se expandia com a revolução bolchevique. O Estado deveria intervir na economia, mas não para beneficiar os trabalhadores e muito menos para chegar ao socialismo, mas sim para evitar que o capitalismo fosse prejudicado. Hoje, algumas pessoas pensam que se pode regressar a um Estado que intervenha na economia, que tenha uma prioridade no mercado interno, um diálogo com os sindicatos, que não faça pressão aos movimentos dos trabalhadores e aos movimentos populares. Mas sempre mantendo o capitalismo.

Penso que isso é ilusório, que é propagandístico, que a fase atual do capitalismo não pode ser igual à de antes. E se o Estado intervier vai ser para garantir que os bancos não sejam prejudicados, para permitir que o sistema continue funcionando. É uma espécie de capitalismo humanitário, também conhecido como terceira via, capitalismo racional, capitalismo ético, capitalismo nacional. São subterfúgios, chamarizes, iscas. O capitalismo humanizado é a utopia de moderar os conflitos dentro da sociedade capitalista.

No capitalismo humanizado não se reivindica mais igualdade e sim mais equidade. O que isso significa? Acho que falar de equidade e não de igualdade é manter a injustiça, que está no coração desse sistema. É uma estratégia retórica. Eu creio que um projeto de mudança social tem que passar pela igualdade. Há 30 anos, saiu de moda falar da igualdade. A moda é falar das diferenças unicamente, dizer que a garantia para uma sociedade justa é respeitar as diferenças. Nunca a igualdade. Acho que é preciso resgatar o projeto emancipador da igualdade. De uma igualdade de sentido forte. Por exemplo: ter todo mundo ganhando o mesmo. Um gerente não pode ganhar 30 vezes mais que um operário. Há hoje uma esquerda que deixa intacta essa injustiça, que faz um governo neoliberal com retórica de esquerda. Dão o Ministério da Cultura à esquerda para que haja concertos, recitais, mostras de teatro. E a economia está na mão dos empresários.

Então, combinam a economia de mercado com uma sensibilidade cultural progressista. E isso, ao meu ver, ajuda a sustentar o capitalismo. É preciso questionar seriamente a falta de igualdade. Não apelar à beneficência nem a, por exemplo, ter universidades e colégios privados dando bolsas aos mais pobres para que eles não reclamem.

Eliminemos as bolsas e o ensino privado. Que o ensino seja gratuito para todos, assim não faltarão bolsas. No capitalismo, há sempre uma injustiça dura e radical de fundo e um paliativo, um remédio, que podem ser as bolsas de estudos ou os bancos que ganham fortunas e pagam mostras de arte.

Há movimentos contra-hegemônicos na América Latina?

O principal movimento contra-hegemônico é brasileiro. É o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que conta com um milhão de pessoas. É uma organização revolucionária no maior país deste continente, que tem uma escola de formação muito boa (Florestan Fernandes) e uma militância muito sólida. Penso que esse é o grupo principal. Mas não o único. Há vários movimentos contra-hegemônicos. Porém o MST é o mais importante.

Existem outros movimentos muito radicais, que têm sido demonizados, satanizados pelos Estados Unidos, que os chamam de narcoterroristas. São os fundadores da insurgência colombiana. E eu me pergunto: por que Che Guevara é tão bom, tão admirável e esses movimentos são supostamente tão maus? Se eles não fazem mais do que continuar o que fez Che Guevara? Hoje em dia muita gente de esquerda progressista vai a Havana para festejar os 50 aniversários da Revolução Cubana. E vão à praia, vão passear, tiram fotos com o Che. E grande parte dessa gente que tira fotos de férias em Havana fala mal da insurgência colombiana, quando a insurgência colombiana é a continuidade da luta da Revolução Cubana. Então, sim, há movimentos contra-hegemônicos. O mais radical é o colombiano. Mas também tem os menores, como o Movimento Piqueteiro da Argentina, o Movimento Campesino do Paraguai, o Movimento Indígena no Equador, da Guatemala e do México (Chiapas), Movimento dos Professores em Guadalajara (México).

O que diferencia a guerrilha do terrorismo?

Para mim, o terrorismo é a história concreta deste continente que foi implementada pelos Estados. Se houve terrorismo, o principal deles foi o estatal. Uma ação terrorista é encaminhada de modo a colocar terror na população e aniquilar uma parte do povo. Não matar dez ou 15 pessoas, mas sim matar milhões. Na história da América, quem matou milhares de pessoas foram os Estados. O primeiro genocídio do continente foi a matança dos povos originários, com a invasão espanhola-portuguesa. Calcula-se que foram assassinadas aproximadamente 70 milhões de pessoas. O segundo genocídio se fez com os povos de origem africana. Depois, com os mestiços, com os gaúchos, na Argentina, e na Guerra do Paraguai. O último genocídio aconteceu durante as ditaduras militares. Na Argentina, morreram muito mais de 30 mil pessoas.

No Peru e na Guatemala também. Garcia Márquez tem dito por aí que, em toda a América Latina, na década de 70, houve mais de 100 mil desaparecidos. E quem fez esse terrorismo? Os Estados, assessorados pelos Estados Unidos. Para mim, isso é terrorismo. Agora, quando um povo se rebela contra as injustiças, sempre começa se rebelando de maneira pacífica. As lutas vão se radicalizando porque há a repressão. Às vezes, acontece a derrota. Outras vezes, os movimentos revolucionários não são derrotados e passam para um outro tipo de luta. Para um confronto mais duro. E o ponto mais alto do embate é quando um setor do povo luta contra o Estado de maneira não pacífica. Esse é o momento da luta armada.

Em alguns poucos países a luta armada gerou uma guerra civil. Hoje isso acontece, por exemplo, na Colômbia. Já aconteceu em El Salvador na década de 80. E a rebelião do povo é terrorismo? Claro que não. Creio que a rebelião é a revolução, é a rebeldia, não o terrorismo que, em geral, acontece quando as minorias estão contra a maioria popular. E o objetivo não é mudar a sociedade. É aniquilar uma parte, matar. E os revolucionários da América nunca tiveram como objetivo matar, mas sim mudar a sociedade. Nesse processo houve confronto e morreu muita gente, mas o objetivo não era matar. Os revolucionários não são terroristas. Mas os Estados Unidos, através de George Bush, denominaram todas as organizações radicais, todos os revolucionários e dissidentes de narcoterroristas. Incluem aí a Igreja Católica, sindicalistas, estudantes. Para os imperialistas, são todos narcoterroristas. O MST, por exemplo, é uma força revolucionária que tem um projeto. Não tem nada a ver com o terrorismo. Não tem como objetivo matar, como tiveram os militares brasileiros, argentinos e chilenos, que torturavam as pessoas até a morte.

O senhor conhece a política de saúde, educação e trabalho dos países latino-americanos?

Hoje, na América Latina, existem distintos projetos nessas áreas. Uma coisa é a Revolução Cubana, a Revolução Bolivariana, na Venezuela, o processo social de mudança na Bolívia e o processo democratizante do Equador. Outra, bem diferente, é o que fazem Uruguai, Brasil, Argentina e Chile, que têm discursos progressistas e políticas sociais não progressistas, muitas vezes parecidas com o neoliberalismo. Na saúde e educação, fazem privatizações. O trabalho é cada vez mais precarizado, há desemprego e os que têm emprego trabalham muito mais do que antes. Há um terceiro tipo de países, como a Colômbia, que não têm nem o discurso nem a vida real progressistas. O governo Uribe é de extrema direita e não só beneficia os empresários no discurso, como na prática, perseguindo os dissidentes.

É preciso diferenciar os governos da América Latina e seus processos, além de perceber se os discursos vêm acompanhados da mudança real na saúde, educação e no trabalho dos países que falam de forma progressista.

Em que países há reais educação, trabalho e saúde públicos?

Cuba e Venezuela já erradicaram o analfabetismo. Esses dois países são os que têm maiores benefícios sociais. Em relação à saúde, os cubanos são acusados de exportar a revolução mas, na verdade, exportam seus médicos. Já nos Estados Unidos, reino do consumo, quando veio o furacão Katrina, pudemos ver que eles não eram como mostram os filmes. A televisão mostrou que os mais humildes vivem mal. Há também o documentário do Michael Moore, Sicko, que mostra como é a saúde dos norte-americanos que, quando não têm dinheiro para pagar o tratamento, perdem o dedo ou não podem ser operados.

Como são tratados os direitos sociais e políticos nas novas constituições do Equador, Bolívia e Venezuela? Quais são as semelhanças e diferenças?

Não as conheço em profundidade. Mas, em termos gerais, sei que são constituições mais inclusivas. Todos os sujeitos sociais que ficaram à margem foram incluídos e respeitados. Aparecem nos textos constitucionais os povos originários, que nunca tinham sido contemplados nas questões jurídicas. Os novos textos constitucionais são mais democráticos. Todavia, essas três constituições não são socialistas. Continuam deixando uma janela aberta para a propriedade privada. Na verdade, as mudanças de fundo nunca se fazem com uma lei. A revolução se faz sempre contra a lei.