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Entrevista: 
Floriano Martins de Sá Neto

‘É a crônica da morte anunciada: nós estamos acabando com a previdência pública no Brasil’

O presidente Jair Bolsonaro entregou, nesta quarta-feira (20/2), ao Congresso Nacional a proposta de reforma da Previdência. Entre as principais mudanças, destaca-se a unificação das alíquotas de contribuição do Regime Geral (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), que passam a ser progressivas, seguindo a lógica do imposto de renda (IR). A proposta muda também a idade mínima de aposentadoria, que passa a ser de 65 anos para homens e 62 para mulheres da iniciativa privada, além da contribuição mínima de 20 anos. A mesma regra valerá para os servidores do regime próprio, entretando o tempo de contribuição deverá ser de 25 anos e o funcionário público precisará ter dez anos no serviço e cinco anos de tempo no cargo de aposentadoria. Novas regras também foram apresentadas para trabalhadores rurais e professores do regime geral, com base em uma única idade mínima, de 60 anos, para homens e mulheres. No primeiro caso, o tempo de contribuição deverá ser de 20 anos e, no segundo, de 30 anos. Ouvido pelo Portal EPSJV/Fiocruz, o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), Floriano Martins de Sá Neto, explica que a mudança na idade da aposentadoria afeta especialmente a população mais pobre e que essa proposta acaba com a lógica da repartição, representando o fim da previdência pública. Ele critica que, ao propor um sistema de capitalização, que deverá ser regulamentado depois por lei complementar, essa reforma acaba com a lógica da “solidariedade entre a geração que trabalha e a geração que já se aposentou”.
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 21/02/2019 19h37 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Quanto à expectativa de aposentadoria do trabalhador brasileiro, o que mais muda com a proposta do governo, tanto para o regime geral quanto para o regime próprio?

Tem um ponto que não vai ser muito falado, mas que não pode passar batido e queremos chamar atenção: nós temos na proposta do governo, através de lei complementar, a previsão de que teremos a substituição do regime de repartição pelo regime de capitalização. Teremos uma lei que será encaminhada e não temos parâmetros sobre ela. Ela [a reforma] fará com que novos trabalhadores possam optar por essa nova previdência, que, na realidade, é uma previdência de capitalização. Trata-se de um modelo totalmente diferente do que existe hoje. Hoje o modelo de repartição comporta a ideia de que haja solidariedade entre a geração que trabalha e a geração que já se aposentou. Nesse caso, o próprio governo atua para garantir as deficiências de arrecadação do sistema e o pagamento das aposentadorias. Agora não, ele [o trabalhador] sai do sistema e passa à obrigação de contribuição, ficando refém das condições de mercado e se aposentará apenas com seus proventos. O que estamos chamando atenção é que esse rompimento com o sistema de repartição, [mudando] para a capitalização, implica exigir que o governo faça a previsão de quanto vai custar essa transição.
 

A principal justifica do governo para esta reforma é a mudança na demografia brasileira. Segundo a equipe técnica que apresentou a proposta nesta quarta-feira (20/2), se na década de 1980, a média de fecundidade era de 4,1 filhos, hoje essa taxa reduziu para 1,8 filhos, “o que implica que entrarão menos pessoas no mercado de trabalho”, “impactando sobre a receita futura no sistema financiado por repartição simples”. Além disso, como ressaltou o secretário do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), Leonardo Rolim, impacta sobre as despesas o aumento da expectativa e sobrevida de uma pessoa entre 60 e 70 anos. Nas palavras do secretário, “o que importa é a sobrevida na aposentadoria, e não expectativa de vida ao nascer” e “como a transição demográfica está sendo muito rápida, faz-se necessário uma transição na previdência”.  Essa pressão demográfica é um problema real?

Ela é um problema na medida em que haverá, além da falta de entrada de mão de obra nova – que é uma própria característica do mercado de trabalho que está se alterando –, menos trabalho no futuro, como apontam alguns estudos. Mas o regime geral [da Previdência Social] comporta outras fontes de financiamento. Temos um orçamento da Seguridade Social que, além da contribuição direta proveniente da folha de salários, prevê outras [contribuições] menores, outras contribuições sociais que formam um conjunto [de recursos] que poderia tranquilamente adequar-se à questão da longevidade, sem a retirada de direitos, porque o sistema tem outras fontes. Além do que, nós temos uma fonte que é a própria União. Ela também tem a obrigação de suprir essas eventuais deficiências de caixa. Mas o que mostram estudos anuais que nós fazemos sobre o orçamento da Seguridade Social? Que essa questão da receita é muito pouco explorada na hora de se discutir uma reforma. Nós tivemos a CPI da Previdência [Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal, cujo relatório foi em 2017] que apontou inúmeros problemas do lado da receita, como as desonerações, as renúncias fiscais, os parcelamentos [da dívida das empresas], a sonegação, a fraude, tudo que é normalmente deixado de lado [pelo governo]. É muito mais fácil reduzir o valor dos benefícios.

A Constituição de 1988 pensou a previdência como parte da seguridade social, contando com o envelhecimento da população. Exatamente por isso, o orçamento da seguridade social seria composto também por contribuições sociais a que o senhor fez menção (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, Cofins...), de modo que a previdência não dependa apenas do pagamento da população economicamente ativa.  Hoje se fala num enorme déficit da previdência. Esse modelo da seguridade falhou?

Não, não falhou! O modelo da Seguridade Social e todos os orçamentos públicos são dependentes da atividade econômica. Há três ou quatro anos, nós tínhamos uma economia numa velocidade bastante razoável. O próprio sistema do regime geral, o INSS [Instituto Nacional de Seguridade Social], chegou a ser superavitário durante vários anos, por conta da atividade econômica. A atividade econômica foi comprimida nos últimos anos, nós tivemos uma perda de receita no geral muito grande, com desonerações, menor arrecadação [de imposto], menos contribuições... Então, o modelo não está estruturalmente errado, o que está errado – e está fazendo falta – é um processo de crescimento econômico para sustentar [a Seguridade Social], além do desenvolvimento nacional e investimentos em serviços públicos.

Qual a diferença entre esse modelo da seguridade, que a Constituição de 1988 traz, e o regime de capitalização, que o governo anunciou como um possível próximo passo da reforma, já que depende de lei complementar, além da PEC? Como funciona esse modelo?

Em um modelo de capitalização, você transfere todo o risco, de acumular o patrimônio previdenciário, unicamente para o cidadão comum. Basta olharmos – e não tem como fugir de não fazer uma comparação – para a previdência chilena. O modelo chileno foi implementado há 37 anos, sob o regime de capitalização puro, onde somente o trabalhador contribui, que é algo que a gente imagina que deverá constar da lei complementar [que irá regulamentar o sistema de capitalização que a nova proposta prevê]. Pois bem, o resultado hoje, 37 anos depois, é que em média o aposentado chileno ganha a “fortuna” de 40% do salário mínimo chileno, algo em torno de R$ 600. Tem gente que ganha menos do que isso. Então, está comprovado que a capitalização para países periféricos como o nosso é um enorme risco. O Estado se abstém de participar. Algo que nós vamos perguntar ao ministro [da Economia] Paulo Guedes é: quem vai pagar a conta dessa geração que já se aposentou, dessa geração que está trabalhando e pretende se aposentar nos próximos anos, se a geração que vai entrar no mercado de trabalho não vai mais contribuir para o sistema solidário, o sistema de repartição?  A sociedade tem que saber que, ao optar pela capitalização, há um risco fiscal que é bastante alto. Nós já estamos calculando os valores, estamos fazendo simulações.
 

Recentemente, o governo anunciou, embora sem formalização, a proposta da carteira de trabalho verde e amarela, em que os trabalhadores poderiam “optar” por abrir mão de direitos como férias e 13º salário. E associou diretamente essa carteira ao regime de capitalização da previdência. Qual a relação entre essas iniciativas?

Ela é a crônica da morte anunciada, nós estamos acabando com a previdência pública no Brasil. Veja que a reforma trabalhista já introduziu diversas modalidades de trabalho pelas quais não há mais contribuição. Temos que chamar atenção que essa atual proposta do governo, com um trabalhador que não consegue juntar um salário mínimo de renda no mês, é tão absurda... Vamos supor que ele recolha sobre R$ 500,00, faltam mais R$ 500,00 se ele quiser contar aquele mês de contribuição. Tudo isso acaba gerando perdas de arrecadação do sistema. A carteira verde-amarela vai agravar ainda mais essa situação.
 

Segundo o governo, o rombo na Previdência no ano passado somou um total de R$ 290,297 bilhões (incluindo setor privado, servidores públicos e militares). Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, o déficit da previdência foi o principal fator para as contas do governo registrarem déficit de R$ 120 bilhões em 2018. Estudos e até a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Previdência Social comprovaram, em relatório aprovado em outubro de 2017, porém, que a Previdência Social não é deficitária, mas, sim, alvo de má gestão. Existe mesmo um rombo no Regime Geral? E no Regime Próprio? Por que há esse déficit?

A conta que o governo apresenta é uma conta que tem alguns vícios: ele junta a previdência do regime geral com a do servidor público federal e mais a dos militares. Então, tudo isso é que gera esse número fabuloso. E do lado da receita, ele [o governo] não computa o conjunto total de receitas que a Seguridade Social arrecada em nome da previdência, especificamente do regime geral. Então, o que nós fazemos aqui, na Anfip, é usar uma metodologia pela qual separamos claramente essas duas coisas. A previdência do servidor é uma previdência do regime próprio, tem uma dinâmica própria. Nós já tivemos uma emenda aprovada em 2003, a PEC 41, que já fez uma grande reforma no serviço público. O servidor público admitido após 2003 não se aposenta mais acima do teto do INSS, o que tem garantido a ele é o mesmo teto do INSS. Há a possibilidade de previdência complementar, que é opcional. Então essa questão dos números do déficit perde um pouco sentido. A conta da Anfip em relação à Seguridade Social, em 2017 – porque o ano de 2018 não fechamos ainda – mostra [um déficit] de R$ 57 bilhões. A diferença [em relação aos números apresentados pelo governo] é enorme, e eu confio efetivamente nos dados da Anfip. Esse número já foi até positivo há dois anos. A gente já teve superávit comprovado na Seguridade Social. E se hoje temos um resultado negativo, isso é fruto da queda da arrecadação bruta, mas que está absolutamente sob controle.  Isso está previsto na Constituição Federal, onde a União é chamada em casos que tem que aportar recursos do orçamento fiscal. É por isso que os aposentados recebem em dia. O INSS nunca atrasou seus benefícios, da mesma forma que o servidor público federal e o servidor militar recebem em dia, porque o sistema funciona. Então, o que tem que fazer é o dever de casa: voltar a ter crescimento econômico; revogar a reforma trabalhista; fazer com que os trabalhadores possam contribuir efetivamente sobre a renda que recebem, aquilo que a CPI [da Previdência Social] já indicou; combater fraude e sonegação; cobrar os devedores; ter uma fiscalização mais ativa. Um sistema conjugando tudo isso ao crescimento econômico é absolutamente sustentável. Não há grandes reformas estruturais que a gente possa prescrever para aperfeiçoar o sistema.
 

Segundo o governo, a reforma no regime dos servidores públicos da União implicará um impacto positivo de 33,6 bilhões em quatro anos e de 173,5 bilhões em dez anos. Como a Anfip avalia esses números? No caso específico da previdência dos servidores, existe déficit? Por quê?

O regime do servidor público começou no Império. Nós temos hoje em dia uma leva de servidores que foram contratados ao longo dos anos que estão aposentados, que vivenciaram várias situações ao longo dos anos. Somente a partir de 1988 é que o servidor público civil começou a descontar para a previdência, antes ele pagava apenas para a pensão. O militar sequer contribui até hoje para sua previdência. Como no regime de repartição há a necessidade de contratação de servidores – e nós vemos justamente o contrário, que ao longo dos anos não se tem contratado servidores –, é obvio que essa conta não fecha. Pessoas se aposentaram, exerceram seu direito, e a conta é também do Tesouro. Então, quando o governo faz as contas e passa essa conta inteira para os aposentados e trabalhadores da ativa, ele tem que cobrar uma alíquota exorbitante. O que está sendo proposto nesta PEC é que tenhamos alíquotas em torno de 18%, algo parecido com o que alguns estados já estão praticando. Mas temos que lembrar que nessa conta o governo não está considerando a Lei Complementar nº 108, que obriga que a União aplique o dois para um. Ou seja, se o governo arrecada R$ 100 sobre os proventos ou sobre o meu salário, ela [a União] tem que colocar R$ 200. Isso é o dois para um. Então, eu não sei se essa economia será tão grande quanto o que eles  [o governo]estão divulgando. Vamos fazer essa conta ainda. Nós acabamos de tomar conhecimento da proposta, estamos com os técnicos avaliando.
 

O primeiro anúncio foi em relação à unificação das alíquotas de contribuição do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), que passam a ser progressivo, seguindo a lógica do imposto de renda (IR). Nesse caso, quem ganha, por exemplo, até um salário mínimo contribuirá com uma alíquota de 7,5%, passando para 14,68% a 16,79% nos casos dos trabalhadores que recebem entre 20 e 39 mil. Qual a relação matemática entre as faixas da previdência e as faixas do IR? O Sr. poderia explicar como isso se dará na prática?

A Constituição Federal, no capítulo dos impostos, determina que o sistema tributário seja progressivo. Então, em tese, quem ganha mais tem que pagar mais impostos. A contribuição previdenciária que é vinculada ao regime de previdência teria que seguir o cálculo atuarial [das reservas matemáticas]. Nós vamos cobrar do governo que apresente o cálculo atuarial, porque ele não pode ter enriquecimento ilícito. De repente, essa alíquota que ele está calculando pode ser tão alta que possibilite ao governo, por exemplo, ter menos dispêndio do que deveria ter no cálculo da minha aposentadoria. Ou seja, seria um cálculo tão abusivo que, na prática, o governo estaria subsidiando outras políticas com valores arrecadados sobre meu salário. Poderemos ter uma alíquota com um caráter diferente desse que é determinante de um sistema de previdência. Você contribui para que o sistema seja solúvel, para que possamos quitar as obrigações ao longo de décadas.
 

A justificativa do governo em relação à unificação das alíquotas de contribuição é criar um “sistema justo e igualitário”. O governo compara à lógica do imposto de renda, que tem poucas faixas (27,5%, por exemplo, alcança da classe média a alta). Essa proposta dá conta disso, de uma justiça social?

De jeito algum. Hoje, o imposto de renda é na verdade altamente regressivo. Os dados que temos disponíveis indicam que o que deveríamos estar discutindo agora é uma reforma tributária, uma ampla reforma da pessoa física. Hoje, a alíquota média do brasileiro é 12% de imposto de renda [do imposto de renda]. O que nós temos na realidade, na prática, é uma inflexão na curva. Ou seja, a alíquota que deveria seguir subindo – ou seja, quem ganha mais tem que pagar mais – reverte de tal forma que quem ganha em torno de 200 salários mínimos, por exemplo – e tem muita gente que ganha esse salário em lucros e dividendos –, está pagando uma alíquota média de 2%. Enquanto isso, o contribuinte brasileiro comum paga 12%. Isso é um problema do sistema do imposto de renda. Com a relação à previdência, continuo defendendo que as alíquotas não podem ser escorchantes.

Argumenta-se que o regime dos servidores é injusto porque eles se aposentam com salário integral, diferente do trabalhador da iniciativa privada, que tem um teto. No entanto, o servidor também contribui (11%) sobre o salário integral e não sobre o teto do INSS. Feitas as contas, isso ainda significa privilégio? Como isso ficará com o aumento de alíquotas previsto na proposta do governo?

Em nossa avaliação, não! Eu repito que os servidores públicos já tiveram uma reforma grande, a Emenda 41, que igualou o teto do servidor público ao teto do INSS. Esse servidor contribui com 11% para receber esse teto do INSS, vai se aposentar com a média desse valor e, além disso, há uma opção, que é uma previdência complementar.
 

As mudanças dizem também respeito às idades de aposentadoria, sob a alegação de que se “não realizadas, o sistema não se sustenta”. Segundo a nova proposta, a aposentadoria somente será concedida conforme a idade, que passa a ser de 65 anos para homens e 62 para mulheres, e uma contribuição mínima de 20 anos. Num cenário de desemprego e informalidade como o que o Brasil vive hoje, esse cenário poderá ser ainda pior? Quem será mais atingido?

Esse é a grande contradição da reforma: o governo usa o servidor público como bode expiatório. Ou seja, o governo aponta eventuais privilégios – eu não sei se pagar 11% sobre a totalidade do que eu ganho é um privilégio –, para justificar a necessidade de uma reforma, quando, na realidade, quem vai ser mais prejudicado são os trabalhadores de baixa renda, que convivem com desemprego sistêmico e que provavelmente não conseguirão 20 anos de contribuição, porque hoje quem consegue se aposentar pelo regime geral recolhe em média durante 17 anos. Imagina o cenário de alguém com 60 anos procurando emprego – e não há emprego para essa faixa etária... Imagina agora com a reforma trabalhista entrando para valer, com empregos intermitentes, empregos em que não há contribuição: fatalmente esse cidadão brasileiro acabará tendo que receber – não mais aos 65 anos – o Benefício de Prestação Continuada [BPC], que com essa reforma será de R$ 400. Na realidade, os grandes prejudicados são os trabalhadores da esfera privada, as mulheres e os trabalhadores rurais.
 

Você fez menção ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Segundo a nova proposta, idosos sem meios de se sustentar terão de aguardar até os 70 anos para receber integralmente o benefício, no valor de um salário mínimo. O governo propõe o pagamento de um valor de R$ 400, aos 60 anos de idade. “Se ele conseguir se aposentar, sai da assistência e vai para a Previdência. Se não, aos 70 anos passa a ganhar um salário mínimo”, esclareceu o secretário de Previdência do Ministério da Economia, Leonardo Rolin, durante anúncio da proposta. Qual a sua avaliação sobre esse cenário?

Eu acho que é extremamente lamentável confundir os dois tipos de benefícios. Está claro na Constituição de 1988 que, para receber a aposentadoria, você tem que contribuir. Já o Benefício de Prestação Continuada atende àqueles que têm hipossuficiência ou precisam da assistência social, conforme também definido na Constituição Federal. Ele [o secretário] poderia dizer que se a pessoa não consegue se aposentar pela previdência, ela vai para a assistência, mas não o contrário. Não é possível que alguém migre da assistência social, na qual ele é hipossuficiente, para a previdência. Essa pessoa não vai ter condição de se manter ali.
 

As mesmas idades (65 anos para homens e 62 para mulheres) valem para quem faz parte do regime próprio. Nesse caso, porém, o tempo de contribuição será de 25 anos e o funcionário público precisará ter dez anos no serviço e cinco anos de tempo no cargo de aposentadoria. O que isso implicará para o funcionalismo público?

Esse tempo de 25 anos não tem nenhum problema para a pessoa que entra no serviço público com 25 a 30 anos de idade em média. A nova regra prejudica aquele servidor tardio que, por exemplo, aos 40 ou 50 anos passa num concurso, porque enxergou ali como opção única de emprego. Estava desempregado, estudou, se preparou ... Só que agora ele não vai conseguir se aposentar aos 65 anos. Ele terá que ficar até expulsória, que hoje é 75 anos. É o que provavelmente vai acontecer.
 

No caso dos professores de instituições públicas, homens e mulheres passam a se aposentar com a mesma idade, com 60 anos, contribuição de 30 anos, dez anos no serviço e cinco anos de tempo no cargo. E professores do regime geral, além da idade única de 60 anos, deverão comprovar a contribuição de 20 anos. Análises já apontam que os professores serão uma categoria muito prejudicada com essa reforma. Qual a sua avaliação sobre esse cenário?

Os professores deviam ser encarados como aposentadorias especiais. Então, as especiais são aqueles trabalhadores que estão sob determinadas situações, e não há dúvida nenhuma de que o professor é uma profissão que exige uma dedicação muito grande.  Nós observamos uma grande injustiça nisso. Entendendo ainda que a mulher precisa de tratamento diferenciado, pois a condição da trabalhadora mulher no mercado de trabalho também é diferenciada.
 

Novas regras também foram apresentadas para a aposentadoria rural, que passa a ter idade única para homens e mulheres de 60 anos e tempo de contribuição de 30 anos. Em um país onde a expectativa de vida e as condições de trabalho são tão desiguais, como essas mudanças impactarão a população rural?

O governo demonstra a real face da reforma quando faz uma proposta neste sentido. O trabalhador rural é historicamente explorado no nosso país, trabalha sob condições degradantes, tem um trabalho muito duro. A proposta ainda iguala homens e mulheres, elevando a idade para 60 anos. Isso inviabiliza a aposentadoria. E não há regra de transição a partir da publicação da emenda constitucional. A regra entra automaticamente em vigor: a pessoa pode estar a um mês do direito de se aposentar e, agora, terá que comprovar o recolhimento que provavelmente nunca fez, porque a maioria dos trabalhadores rurais são aqueles produtores especiais, os pequenos produtores rurais.
 

Segundo as novas regras, para que um trabalhador do regime geral, por exemplo, consiga garantir 100% do teto do INSS, terá que ter, em média, 40 anos de contribuição. Com todas essas mudanças, qual será a média em que o brasileiro vai se aposentar?

Nós vamos ter nos próximos anos a diminuição drástica da quantidade de aposentado. Essa é a economia que o governo apresenta. Ele estima os valores em função disso, em função de corte de direitos, impondo cada vez mais obstáculos para que os trabalhadores tenham acesso à aposentadoria. O ruim de tudo isso, dessa discussão que já se delonga desde o governo Temer, é que há uma verdadeira corrida às aposentadorias, tanto no serviço público quanto no INSS. No INSS, nós observamos uma concessão de mais ou menos 400 mil aposentadorias por tempo de contribuição ao ano. Esse número era de 200, em média. As pessoas estão correndo atrás de suas aposentadorias e acabam demandando mais do sistema.
 

A nova proposta traz três regras de transição para aposentadoria por tempo de contribuição no RGPS. No primeiro caso, o trabalhador poderá optar pela regra de pontos, tendo que alcançar cem pontos (no caso das mulheres) e 105 pontos (homens), pela regra da idade, ou, quem está a dois anos de cumprir o tempo de contribuição mínimo para aposentadoria (30 anos, se mulher, e 35, se homem) poderá optar pela aposentadoria sem idade mínima, aplicando-se o Fator Previdenciário, após cumprir pedágio de 50% sobre o tempo faltante. O que isso significa na prática? Quais são as implicações dessas novas regras?

Isso é um problema muito sério. Essas regras são de difícil compreensão, são ininteligíveis para uma imensa maioria dos brasileiros, inviabilizando o direito à aposentadoria. As pessoas não têm condições de fazer essa conta.
 

Para o regime dos servidores, vale apenas a regra de transição por idade. O que isso significa na prática?

Só para citar um exemplo, na Receita Federal do Brasil, que é o órgão a que eu pertenço, nós temos 30% do quadro de servidores aptos a se aposentar no dia seguinte, porque já têm o abono de permanência. Essa reforma vai acabar incentivando que mais e mais pessoas, que até gostariam de continuar trabalhando, se aposentem antes da entrada das regras. Hoje, quem entrou até 2003 tem direito à paridade e à integralidade [do salário].  E qual é a garantia que tenho quando eu chegar aos 65, quando poderei me aposentar segundo as regras atuais, de que não haverá outra Emenda Constitucional trazendo ainda mais dificuldades?
 

Uma novidade trazida por essa proposta de reforma diz respeito às Forças Armadas, permitindo que militares na reserva possam trabalhar em atividades civis, recebendo um abono de permanência como já recebem quando retornam à ativa. Qual seria o impacto dessa medida sobre o serviço público?

A Constituição é muito clara afirmando que para entrar no serviço público precisa ter concurso público. Então, nem aceitamos esse tipo de proposta. Isso será judicializado. Provavelmente, não irá prosperar. Por que o militar da reserva pode e outro aposentado de outra categoria do serviço público não pode? Nós defendemos o concurso público.

Na sua avaliação, existem outros caminhos para se equilibrarem as contas da Previdência Social que não passem por uma reforma?

Sem dúvida nenhuma nós temos muitos outros caminhos. São os dois lados da reforma, o lado da despesa e o lado da receita. Nós não vemos nenhuma medida concreta nesse sentido. O governo só anunciou que vai encaminhar um projeto de lei dentro de 30 dias para reestruturar a cobrança dos devedores, mas é muito pouco. Do lado da receita, comportam muitas outras atitudes que não dependem de lei, depende de vontade mesmo. Por exemplo, apertar a fiscalização sobre devedores e sonegadores.
 

O Sr. teria alguma outra observação sobre a matéria?

Uma matéria dessa relevância ter sido debatida entre quatro paredes, não ter sido apresentada antes, previamente, é um absurdo. Os parlamentares terão uma matéria extremamente complexa para se debruçar, com prazos curtos. Nós chamamos a sociedade a se mobilizar para um grande debate nacional, e vamos contar com as entidades representativas, meios de comunicação alternativos, pois a mídia oficial não se interessa em debater os problemas da reforma da previdência.

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