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Entrevista: 
Ivanir dos Santos

‘Muita gente que dá aula de história da África, na verdade, está dando aulas de história da escravidão’

Na semana em que se comemora o Dia da Consciência Negra - 20 de novembro, o Portal EPSJV entrevistou Ivanir dos Santos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ) e integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), para avaliar o impacto das ações afirmativas na promoção da cultura negra do Brasil. Em 2023, o Dia da Consciência Negra foi celebrado em paralelo aos 20 anos de aprovação da Lei 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" no currículo oficial da rede de ensino, bem como da primeira ação afirmativa de cotas em uma universidade federal, a Universidade de Brasília (UnB).
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 23/11/2023 16h26 - Atualizado em 01/12/2023 10h24

O senhor fez sua trajetória na universidade em um dos ambientes mais efervescentes do país para o debate sobre as Ciências Sociais, o IFCS/UFRJ (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Como o senhor percebe os ingressantes na universidade, é um alunado que já entra sabendo quem são Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Nego Bispo dos Santos e tantos outros intelectuais negros?

Eu vou começar a lhe responder com algo que trará um impacto. No dia 20 de novembro, a Globoplay lançou o documentário “Resistência Negra”, o primeiro a contar a história política do movimento negro brasileiro. Até então, no Brasil, você não tinha esta história contada, a do movimento negro brasileiro como um ator importante, seja da luta e resistência pela liberdade do século XVI ao século XIX, seja por cidadania e direitos a partir do final do século XIX, início do XX, com o aparecimento da República.

Eu sou autor desse documentário em forma de série, com cinco episódios, que está disponível gratuitamente, de forma aberta, na Globoplay. Para assistir, não precisa ser assinante. Está aberta, e esta foi uma das negociações com a Globo para termos, pela primeira vez, parte desses personagens presentes, abordando a luta do movimento negro por direitos na sociedade brasileira, algo quase sempre renegado e colocado à margem mesmo nos movimentos mais progressistas. Parecia que a participação dessa comunidade não existiu, mas ela sempre existiu e foi vanguarda, uma vanguarda vitoriosa. O último episódio, que será lançado no dia 24 de novembro, abordará justamente as leis de cotas, a Lei 10.639/2003, sobre a história da África, da cultura africana e dos afrodescendentes, e também a luta das cotas. Espero que todos tenham a oportunidade de assistir a essa história contada por nós, uma narrativa negra na qual eu sou o autor, com roteiristas negros, a diretora é negra, os protagonistas, sejam personagens ou acadêmicos, também são negros e negras. Nunca se viu tanto acadêmico negro, ao mesmo tempo, falando numa série! Sempre é um ou dois, ou dois brancos e um negro, e está é uma história nossa contada por nós, uma narrativa totalmente nossa.

O senhor fala ”o movimento negro”. Podemos falar na existência de um movimento negro ou de múltiplos movimentos negros?

No plural, movimentos negros, embora, se você quiser falar no singular esse movimento é secundarizado pelos partidos políticos e pelo movimento sindical. Parece até que não houve uma luta onde a questão racial fosse a questão central da luta por liberdade e democracia no Brasil. Essa é a primeira questão. Portanto, respondendo a sua primeira pergunta, temos esse problema na sociedade brasileira, que é reconhecer esse ator político. Se você não o reconhece, terá sérios problemas para reconhecer seus “descendentes” em outras esferas, sejam quais forem: na academia, na literatura, nas artes.

Eu sou da geração que lutou por cota. Eu ainda não estava na academia, entrei por cota. É preciso lembrar que a primeira lei sobre o tema foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 2000, por um deputado conservador chamado José de Amorim, do então PPB. E quando ela é aprovada cria-se uma polêmica, porque ela não ouviu a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o discurso era de que a lei feriu a autonomia universitária. Ocorre que ela foi aprovada por unanimidade!

Eu, Frei David [fundador da ONG Educafro], e mais um grupo de militantes, fomos pra UERJ e enfrentamos a direção da universidade, que, na época, foi contrária à lei, e depois a lei foi revista pelo Garotinho [governador do Estado do Rio de Janeiro à época]. Por pressão da UJS [União da Juventude Socialista], ele alterou a legislação incluindo o componente social na reserva de vagas, algo também importante.

É importante que isso seja observado porque parte da esquerda não aceitava a cota para negros, como se fosse possível separar a questão de classe da de raça no Brasil. Eu estou abordando isso porque essa configuração de renda e raça parece ser uma iniciativa do Garotinho mas não, há um processo anterior, uma lei anterior. Fato é que a reitora da UERJ naquela época, que no primeiro momento se colocou contra, depois virou uma grande aliada, a Nilcéia Freire. O que é fundamental entender é que só foi adiante e chegou à legislação que temos agora porque o movimento negro pressionou!

Eu lembro especificamente de uma conversa naquela época, com um grupo de deputados progressistas nossos aliados, que estavam contrariados porque a lei não tinha sido iniciativa deles. O que nos interessava foi que uma medida importante para nós tinha sido aprovada, mesmo que por um conservador. O fundamental não era a autoria, mas a importância da lei.

É nesse processo, das disputas internas no governo Garotinho/Benedita, do qual eu era subsecretário de Estado, que esse debate avançou e gerou a lei de cotas do Estado do Rio de Janeiro para o ingresso na UERJ, a primeira lei sobre o tema no Brasil Posteriormente, houve uma decisão da UnB e começou a ‘pipocar’ uma série de ações de órgãos específicos, até que veio a lei federal.

Casuístico que tenha sido a UnB de Darcy Ribeiro...

Criada pelo Darcy, mas a luta pelas cotas ali foi do Zé Jorge [o antropólogo José Jorge de Carvalho]. Um intelectual branco sempre comprometido com a questão racial, muito amigo do Bispo dos Santos. Sozinho, solitário, ele levou adiante a proposta e por fim conseguiu aprová-la, porque não era fácil levantar isso no conselho universitário.

Eu fui do comitê brasileiro na Conferência Internacional de Durban*. Ouvi integrantes de nosso próprio setor, de progressistas de esquerda, que eram contrários às cotas. Achavam que era “esmola”, que era “reforma”, que não daria certo. Por isso que foi incluída a questão econômica [na legislação].

Bom, ganho esse debate, obviamente, várias universidades passaram a fazer as cotas, e quando o movimento avança para a criação de uma lei obrigatória federal, a 12.711/2012, atinge-se em grau maior as universidades que mais resistiram à cota, como a UFRJ. Digo isso claramente, embora eu hoje seja professor ali, mas ela foi uma das que mais resistiram, assim como é o caso da Universidade de São Paulo (USP).

Vencida essa etapa, de a cota virar uma realidade, há o primeiro problema, a assistência estudantil aos cotistas. Um dos argumentos à época era o de que, devido à dificuldade para se manter na universidade, esses alunos não conseguiriam terminar seus cursos e iriam rebaixar a qualidade dos mesmos. Todas as pesquisas hoje dizem o contrário. A batalha da assistência estudantil é um problema até hoje, mas a universidade já consegue fazer um programa mais efetivo para o cotista, para que ele consiga permanecer.

A segunda batalha é que a universidade começa a receber um contingente que vem com uma experiência muito diferenciada, de periferia, do interior dos estados, de comunidades periféricas, favelas. Obviamente eles trazem outras experiências, gerando um conflito interno nos cursos. Inclusive parte dos conteúdos oferecidos pelas universidades não atende a esses contingentes, a bibliografia não atinge, levando em conta que você tem uma universidade muito mais voltada pra Europa e para os Estados Unidos do que para as questões brasileiras, para o povo brasileiro. Não é à toa que a universidade sempre foi uma elite, uma elite branca econômica e social que frequentou esses espaços.

Então, quando vem um outro grupo, você começa a ter conflitos. E eles não foram gerados, pois se dizia isso, pelos negros cotistas. Não foi isso que ocorreu, os conflitos surgiram das parcelas que reagiram contrariamente à presença desses alunos.

Fora muitos embates, e até hoje há muitos embates, com professores inclusive, mas isso levou esses jovens a se organizarem em coletivos nas universidades, que fazem um debate muito intenso sobre as relações do cotidiano nas universidades.

Ainda não é uma batalha vencida. Eu costumo dizer que é uma batalha ainda em curso. O número de professores negros é uma minoria, há cursos até sem nenhum.

*A Conferência de Durban é como ficou conhecida a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância promovida pela ONU contra o racismo e o ódio aos estrangeiros, realizada entre 31/8 e 08/9/2001 em Durban, na África do Sul.

Acaba de ser divulgado que pretos, pardos e indígenas são apenas 7,4% dos professores de pós-graduação nas chamadas “ciências duras” - ciências, tecnologia, engenharia e matemática.

Não apenas, na graduação também há sub-representação. Obviamente, que com a batalha pelas cotas vencida na graduação, você começa a batalha nas pós-graduações e temos também a lei de cotas no serviço público [12.990/2014], que vai obrigar também a seleção de professores cotistas. Essa lei é sistematicamente burlada, porque na montagem de uma banca para seleção de professores tem-se escolhido bancas um a um, em vez da oferta de três vagas, pela qual se precisa oferecer uma vaga para cotista. Esse é um exemplo de como as estratégias de exclusão continuam até hoje. Há uma batalha ainda hoje por conta disso, o que aumentaria o número de professores negros na graduação, já que a pós-graduação não é porta de entrada.

Abaixo da graduação, o sistema de cotas também é usado em algumas unidades de ensino fundamental ou médio, como são os casos do Colégio Pedro II, dos Institutos Federais (IFs) e também da nossa EPSJV/Fiocruz. Já há algum reflexo da entrada desses alunos nas universidades, dialogando com o início de nossa entrevista?

É algo que ainda está em curso. Quando falamos de 20 anos das cotas não falamos da lei federal, mas de algo aprovado na Alerj, depois na UnB. E sobre o ensino de História e Cultura Afro-brasileira [Lei 10.639/2003], o primeiro problema é que até hoje ela não foi implementada de fato, porque ela esbarra em dificuldades: não houve capacitação de professores e poucos professores estudaram História da África na graduação. Somente agora algumas universidades começaram a ter como cadeira efetiva, a UERJ acabou de aprovar agora.

Muita gente que dá aula de história da África, na verdade, está dando aulas de história da escravidão. É capaz de 90% dos professores que estão dando aula de história da África não tenham estudado história da África, estudaram a escravidão. A história da África é outra coisa! São pouquíssimos os professores que de fato se especializaram em História da África.

Não houve formação, nem pós-graduações incentivadas a formar professores para isso. Não tivemos um programa de intercâmbio com os principais centros onde essa disciplina está desenvolvida, seja na própria África, seja mesmo na Europa ou nos Estados Unidos, locais onde algumas cadeiras falam sobre o tema e geraram um acúmulo.

Temos um intercâmbio voltado para a história da escravidão, mas para a da África não. E se você não mudou a grade das graduações, não gerou professores especializados. Muitos, talvez a maioria, dos professores especializados que dão história da África são brancos que estudam a África portuguesa. A África são 54 países! Temos que formar pessoas para essa disciplina, e isso na graduação. Consequentemente formaremos professores de história que tiveram a disciplina de História da África, impactando nos ensinos fundamental e médio. O que vemos são militantes do movimento negro, professores que fazem a duras penas, de forma muito isolada, esse trabalho nas escolas. E mesmo assim são estigmatizados, porque quando se fala de cultura e coloca o atabaque, geralmente é dito que estão fazendo macumba dentro das escolas.

Então, se eu for perguntar como o conteúdo previsto pela lei está no projeto político pedagógico e na grade de conteúdos da escola, chego à conclusão de que ela [a lei] não existe. Não é oferecer feijoada no 13 de maio, chamar um grupo de jongo ou fazer exposição, nem dar um acarajé no 20 de novembro. O que é preciso é saber como a literatura está trabalhando sob a lei, a matemática, enfim, todas as disciplinas trabalham o conhecimento da África. Isso é o central, não as datas episódicas de 13 maio e 20 de novembro – esta última, aliás, não existia nos materiais didáticos mas já começou a ser citada.

Isso precisa chamar a atenção do MEC. Eu conversei com Camilo Santana [ministro da Educação] há duas semanas, sobre isso: qual o projeto de intercâmbio para que se possa buscar e disseminar esse conhecimento? Na pós-graduação há um fenômeno muito novo que eu tenho observado, o de negros e negras que vem de seus setores e trazem suas experiências, como é o meu caso. Eu fui fazer mestrado com 60 anos, fui “sistematizar a minha experiência”, dando uma de Bispo [Nego Bispo dos Santos]. Eu não fui fazer uma grande teoria e voltar com a teoria para poder entender a realidade ou aplicar na realidade. A minha experiência é totalmente diferente nesse sentido. Eu fui fazer o mestrado, quando eu qualifiquei no mestrado a banca já me mandou direto para o doutorado e depois o pós-doutorado. E acabei virando o professor do Programa de Pós-graduação em História Comparada [PPGHC/UFRJ].

O que eu tenho observado é que há uma tensão muito grande, porque a academia tem uma coisa interessante: se você me traz uma questão e estuda essa questão a partir de um viés que eu não entendo, que eu não domino a bibliografia, eu não tenho a humildade de dizer que eu não entendo e que vou aprender com você. É interessante que foram os militantes do movimento negro que introduziram quase toda a bibliografia sobre a África na academia. Intelectuais negros como Sueli Carneiro, Cida Bento, Neusa Santos e outros. E muitas dessas produções foram de pessoas que não deram sequência em suas vidas acadêmicas, porque até aquela época nem todo mundo fazia mestrado e doutorado.

Você falou de uma universidade voltada para a Europa e para os Estados Unidos e ocorreu a lembrança de uma declaração da Angela Davis sobre o feminismo negro ter nascido no Brasil com a ação das ’mais velhas’ no candomblé. Essa fala estrangeira parece ter maior poder de validação do que séculos de tradição comunitária aqui no país.

Essa voz já está aqui dentro há muito tempo. A mãe Aninha [Eugênia Ana dos Santos, 1869-1938, fundadora do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador] já dizia que queria ver o povo na universidade de anel na mão, muito antes da Angela Davis. O Candeia já disse isso num samba [Dia de Graça]. Olhe, eu estou falando de duas sabedorias importantes, a mãe Aninha e o Candeia. Aí vem uma acadêmica como a Angela Davis, de fora, diz isso e vão achar que é um barato, porque de fato é o maior barato! Ocorre que isso também é uma revelação importante sobre a compreensão dos saberes. Uma coisa é o saber acadêmico, outra coisa e outro saber é o dessas populações. Também possui ciência.

A ciência cartesiana bebe nesses saberes, transforma em uma fórmula, em um ”não sei o quê” e vira ciência, apropriando-se, porque ela não nasce de si própria. Ela nasce dos saberes desses povos tradicionais, seja a medicina, a química... A capacidade da academia é pegar esses saberes e universalizar. A academia é um saber importante, mas ela não pode se sentir superior e renegar, desprezar ou menosprezar os outros saberes. Esse é o problema quando você tem um aluno da periferia trazendo uma experiência e um saber e a academia não sabe lidar com isso.

Eu costumo usar muito Thompson [historiador britânico Edward Palmer Thompson] e seu conceito de experiência. Por isso digo que vim para a academia sistematizar minha experiência. Uma pessoa que vem das áreas populares, eu costumo dizer que ela já é um intelectual orgânico, como dizia Gramsci. Do movimento negro, alguns se tornam intelectuais públicos antes de entrarem na academia, como eu, a Sueli Carneiro e tantos outros. E não apenas negros. O Raoni é um grande intelectual. Não é um acadêmico, mas alguém vai dizer que ele não é um intelectual, que não pensa, não formula?

Só muito recentemente a Academia Brasileira de Letras elegeu um autor indígena...

Eu costumo dizer que uma minoria consegue virar também um intelectual acadêmico. Porque nem todo intelectual acadêmico é um intelectual orgânico, ou intelectual público. Há uma diferença. Temos pessoas que só pensam a partir da caixa, se tirar da caixinha, já era. Temos poucos intelectuais que pensam o problema da sociedade no seu conjunto, com universalidade. Se a academia pudesse aproveitar esses saberes, seria importante para que ela se voltasse para os grandes problemas do povo brasileiro.

E isso a obrigaria a dialogar com outras produções, também acadêmicas, pouco conhecidas no Brasil. Você conhece a produção que é feita na África? As principais universidades da África? O que a maioria conhece são os africanos que estão na Europa e nos Estados Unidos. Isso vale para a Ásia também, agora começam a surgir autores indianos no Brasil, mas chegam aqui a partir dos Estados Unidos. Esses intelectuais vêm a partir dos grandes centros e não de seus próprios países de origem.

Que políticas poderiam aproximar esses saberes, ou reter conhecimento no Brasil, digamos, com alunos de Moçambique ou de Angola que vêm ao Brasil a partir de convênios de nossas universidades?

Não são convênios para apreender cultura, o aluno vem para aprender uma profissão. Essa modalidade de convênio foi feita pela ditadura militar, no governo Geisel. Foi nesse período que recebemos a primeira leva de africanos, de Angola, Moçambique e da Nigéria. Disso surge algo que é muito interessante: a presença desses africanos no Brasil, principalmente os nigerianos, acabou colaborando para que se reviva no Brasil uma lógica da relação com os orixás, inclusive com o culto de Ifá. Isso já existe aqui, mas estava adormecido, e em dado momento aflora. Cresceu muito e cada vez mais há um intercâmbio enorme.

Estamos vivendo no Brasil, hoje, um intercâmbio com os africanos que já existiu nos séculos 18 e 19 e que foi encerrado pela República. Havia um fluxo de comércio, de interlocução e negócios com muitos africanos livres, alguns deles até ricos. Isso foi apagado, parece que nunca existiu, a República acabou com isso. Criminalizou nossas práticas e nossas culturas, criando um problema sério. Isso também se deve ao fato do regime republicano ter feito a escolha de promover uma imigração europeia para tentar embranquecer o Brasil, o que não deu certo.

O diálogo com esses povos é muito grande. Cresceu um pouco no primeiro governo Lula, depois foi interrompido no governo passado e agora temos uma nova tentativa. Não é à toa que temos a Unilab [Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira] no Ceará e na Bahia, que é a tentativa de fazermos uma universidade voltada a esaa agenda. Mesmo assim, eu te dou um exemplo típico de desvalorização da história e cultura da África: não existe nenhuma universidade do Brasil que ensine os idiomas banto ou iorubá, que contam com forte presença do Brasil. Isso é um vexame. Você vai para qualquer faculdade de Letras e encontra oferta de grego, há cursos de línguas sem qualquer sentido.

Uma dúvida: isso não seria porque o uso desses idiomas foi recolhido ao uso oral de segredo do sagrado?

Não, a língua não tem nada a ver com isso. O segredo é uma coisa, é a prática espiritual. A outra é você falar com povos que não são cartesianos. O uso da língua tem um sentido muito dinamizador do axé, da força vital. Nem todo mundo na Nigéria é religioso ou líder espiritual, mas na sua identidade cultural existe aquela presença. O iorubá falado no candomblé é um iorubá do século XVIII. É arcaico, do ponto de vista linguístico. Só quem entende é a comunidade praticante desse culto. O iorubá moderno e mais falado não é conhecido. Eu vou a Nigéria todos os anos e percebo uma variação, locais em que uma palavra tem um significado e em outras não, regionalismos como o do nosso idioma.

O que eu digo é um curso que possibilitasse às pessoas aprenderem, de fato, o que é uma língua tonal, como oiorubá, um idioma estruturado pelos acentos. É claro que isso possibilitaria uma expansão do candomblé, mas não é por isso. Iorubá, banto e fon são três idiomas importantes que deveriam ser oferecidos no Brasil.

A constituição da Bolívia estabelece um estado plurinacional, no qual Quéchua, Aymará e Guarani são idiomas oficiais. Nossa formação social demanda algo parecido? Não há ”o índio”, nem ”o negro”, são inúmeras culturas.

Eu acho que, pelo menos, as universidades deveriam oferecer cadeiras com essas possibilidades, para as pessoas aprenderem. Assim como há cadeiras que possibilitam o aprendizado de idiomas pela lógica do mercado. Hoje está todo mundo aprendendo mandarim, né? Se não aprender, não negocia com os chineses, entende? Ocorre que não é essa a lógica se olharmos pelo ponto de vista da identidade cultural brasileira. Repito: iorubá, banto e fon deveriam ser ofertados para as pessoas aprenderem.

O idioma é apenas um dos aspectos da história e da cultura de diferentes povos que foram trazidos para o Brasil. Assim como ”movimentos negros”, no plural, quais diferentes Áfricas fazem parte de nossa história?

São 54 países na África e, só na Nigéria, existem mais de 220 etnias e mais de 100 línguas faladas. Tem gente que afirma: “Eu vou à África”. O cara visita Moçambique e foi a África, né? Qual cidade na África? É a pergunta que eu faço, porque, na verdade, ele retorna falando disso e pode se declarar professor de História da África. Ele até pode, mas está ensinando o quê? A África é território de várias culturas, etnias e identidades que vivem sob três conflitos importantes. Um é religioso, entre cristãos e muçulmanos, duas religiões ocidentais, de fora daquele território, que são universais.

E isso afeta a identidade do ser humano, a identidade da sua pertença em termos de sua etnia. Eu brinco, qualquer menino africano que você converse, se perguntar o nome dele, responderá “José”. E se você perguntar o nome tradicional, ele responderá que tem um nome tradicional. Muitas pessoas de fora não sabem disso, porque as tradições ancestrais têm a ver com a identidade desse indivíduo.

Os principais ritos, de nascimento, morte e casamento, são tradicionais. Se a pessoa é muçulmana, cristã, primeiro se respeita o rito tradicional e depois chega a vez do padre, pastor, enfim... Na escolha do nome tradicional quando do nascimento é a mesma coisa. Uma coisa é o nome do Estado que o colonialismo deixou. Algumas pessoas aqui não sabem disso, muito menos compreendem. Mesmo no âmbito religioso, temos pessoas que vão lá, voltam e dizem “lá não tem candomblé”. E não vai ter nunca! O candomblé é uma invenção no Brasil de africanos que o fizeram no território do Brasil. A prática e as relações são familiares, é outra história e outra configuração. Se você quer ir à África buscar candomblé você não vai achar.

Agora, se você for buscar Oxum, você vai achar Oxum. Ela está lá, em Oxobô [cidade na Nigéria]. Se quiser buscar Xangô, ele está em Oió [cidade na Nigéria]. Se você quiser buscar qualquer vodun, vá ao Benin, ele está lá, não sumiu de lá.

Em janeiro do próximo ano haverá uma Conferência Nacional de Educação e, ao longo de 2024, se estabelecerá o Plano Nacional de Educação (PNE) para os próximos 10 anos. Como usar esses espaços para aprofundar a implementação tanto da lei de cotas quanto a do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira?

Eu não estou acompanhando esses debates, mas alerto sobre a necessidade de fazer alianças dentro do campo da educação para que essas questões ganhem preponderância. Se conseguíssemos fazer que a aplicação da Lei 10.639/2003, ou melhor, da 11.645/2008, que incluiu os povos indígenas, fosse uma prioridade para os ensinos fundamental e médio, isso já será um grande avanço. A partir do momento que você a estabelece como prioridade, necessariamente, discutiríamos o material didático, a formação de professores e os intercâmbios necessários. Consequentemente, teríamos o debate sobre os idiomas, os costumes e as ciências e saberes.

A lei já está aprovada, ela está aí e não é aplicada. É preciso dar prioridade para sua implementação porque ela é uma lei contra-hegemônica. Ela não é aplicada justamente por isso. E quando ela é capturada como se fosse um debate sobre religião, escamoteia-se isso. A maior revolução na educação que o PT poderia fazer, e eu disse isso enquanto eu estava no PT, era ter a coragem de enfrentar essa questão. Mas o entrave à sua aplicação foi capturado pelos evangélicos, como se fosse uma questão religiosa. Não, ela é contra-hegemônica. E aqui eu chamo a atenção para algo central: todo mundo fala do Paulo Freire, mas poucos falam do pensador do qual Paulo Freire bebeu na fonte, fundamental em sua formulação sobre opressor e oprimido: Fanon [Frantz Fanon, psiquiatra e revolucionário de Martinica]. Não existe Paulo Freire sem Fanon e eu não entendo todo mundo falar do primeiro sem citar o segundo.

O senhor não percebe uma recuperação recente da obra de Fanon? Por que ele parece ter sido invisibilizado?

Nos movimentos sociais, inclusive entre os intelectuais negros, isso chama a atenção sim. Ocorre que, entre os educadores progressistas, eu percebi muito se falar sobre os 100 anos de Paulo Freire [em 2021], mas sem Fanon ele não existiria do ponto de vista teórico. Quem formula a questão de colonizador e colonizado é Fanon

Creio que o apagamento decorre do fato de ele ter feito uma crítica muito forte ao Sartre. Ele fez o que todos os africanos fazem, uma crítica muito forte ao Partido Comunista Francês devido ao papel dos comunistas franceses na luta contra-colonial na África. Fanon, Aimé Cesairé, a maioria deles fez uma crítica muito forte. Isso tem que ganhar mais bibliografia e debate, e é igual à relação do movimento negro com a esquerda no Brasil, fundamentalmente uma pequena burguesia branca, intelectual e eurocêntrica. Ocorre que dividir a sociedade entre capital e trabalho é tornar cartesiano o debate sobre a transformação da liberdade e da cultura. Então, temos aqui um problema. É comum, igual se dizia que “o movimento negro dividia a esquerda, dividia a luta de classes”. Nós ouvimos isso o tempo todo, mesmo com muitos de nós tendo formação marxista. A maioria dos negros, quando ganhava consciência da questão racial, não ficava em partido, mas não deixava de ser esquerda.

O que do conhecimento tradicional dos africanos, e também dos indígenas, precisa ser incorporado pela academia no enfrentamento aos desafios do presente e do futuro, como a crise climática? Todas as áreas do conhecimento precisarão buscar soluções para isso?

Primeiro, é retirar o dogma de que incorporar esses saberes é ser contra o progresso e o desenvolvimento, como se a natureza não fosse sagrada. Para esses grupos, a natureza é sagrada, a gente faz parte da natureza. Essa é uma questão central. Ninguém explora a natureza de uma forma predatória. Você tira dela aquilo que você pode ter para o seu sustento, para manter a sua comunidade. É preciso aprender com essas culturas, muito mais voltadas para as formas do coletivo, da comunidade. Basta ver o garimpo na Amazônia. Se retirar os invasores e deixar nas mãos dos povos indígenas, eles acabarão por resolver a situação de desiquilíbrio. Assim também ensina o candomblé, nós somos essência da natureza, da força divina. Terra, água, ar e fogo devem estar em equilíbrio, pois sem equilíbrio tudo se complica. Isso é uma sabedoria muito simples. Daí a ciência “descobre”, né? “Ah, o clima está desequilibrado”.

Nessas viagens que o senhor fez para a África, qual foi o maior aprendizado?

O maior impacto foi observar essa forma de existir respeitando o coletivo. Algo que está nessa série da Globoplay. Ela não fala de mim, meu papel todo mundo sabe, não é sobre isso. Ela fala de uma luta coletiva, de vários fragmentos dessa luta, com diversas contribuições de diferentes segmentos. Embora eu seja autor da série, porque alguém tem que assinar, ela foi uma construção na qual eu consultei 80 pessoas de todo o Brasil. Dessas, 36 me responderam na pesquisa inicial. O nome de todos está lá nos créditos, como agradecimento.

Nós herdamos uma luta e temos que deixar essa luta para as futuras gerações. A juventude precisa entender que ela não inventou a pólvora, nem focar em ser beneficiado individualmente.

Como você, com sua trajetória e valores, foi escolhido para comandar essa iniciativa?

A ideia do documentário nasceu em 2020, quando fui chamado para uma conversa. Depois, eu descobri que se tratava do diretor executivo da Globoplay. Na conversa, eu falei o seguinte: “Olha, nos anos 1960 fizeram uma novela chamada ‘A Cabana do Pai Tomás’ e pintaram o Sérgio Cardoso de preto para fazer o personagem do Pai Tomás mais velho”.

E aí houve um debate muito forte na época, com Milton Gonçalves, o Antonio Pitanga, uma turma. Tempos depois, em uma novela [Pecado Capital] botaram o Milton Gonçalves para fazer o papel de psiquiatra da Débora Duarte. Ele usava terno, mas não tinha família. Aí, depois, nos anos 1990, houve uma novela [Pátria Minha] em que o personagem do Tarcísio Meira esculhambou um menino, chamando de “tição”. Foi uma encrenca do caramba.

Posteriormente, uma outra novela [A Próxima Vítima] pela primeira vez trouxe uma família negra. O Pitanga era o chefe, de caráter duvidoso. Daí eu disse para ele [o diretor da Globoplay]: ”Tudo tem a ver com narrativa e conteúdo. Você não está entendendo o que está acontecendo. Mudou o cenário. Você tem uma massa crítica muito maior do que existia antes”.

Você acredita que as leis possibilitaram esse avanço?

Em parte ampliou essa massa crítica sim, não dá para negar. Daí eu digo o seguinte, eu estava nos Estados Unidos em 2020, fui ser homenageado pela família do Martin Luther King e eu estava atrás do Spike Lee. Eu queria conversar com ele para ele fazer uma história do movimento negro brasileiro, porque nos Estados Unidos você tem toda uma dramaturgia que fala da luta de direitos civis. Várias histórias que são contadas. Todos sabem quem é Rosa Parks, Malcom X, o Luther King. Todo mundo sabe a luta contra o apartheid na África do Sul, Mandela. No Brasil, não há uma história política do movimento negro brasileiro, sobre o qual se acusa de ser um bando de malucos, de radicais e irresponsáveis, mas que é o movimento mais pacifista do mundo, a vanguarda mais pacifista e mais vitoriosa sem contar com grandes estruturas. Foi nesse momento que eu falei que queria fazer uma série sobre o movimento negro brasileiro, que a direção teria que ser negra, roteirista negra. E foi assim que surgiu a série. E o diretor da Globoplay bancou.

Há alguma legislação, para além da que conversamos, que colabore para a afirmação da cultura negra no Brasil?

Mais do que a lei de cotas, isso não seria possível se o movimento negro não tivesse criado uma data de baixo pra cima que é o 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Ainda não é feriado nacional, mas em algumas unidades da federação essa é a única lei que o povo negro impôs ao estado e à sociedade brasileira. A gente dizia que 13 de maio era dia de protesto e 20 de novembro de celebração. Primeiro veio a celebração do 20 de novembro, depois, todo o resto. Eu sou da turma que, num banquinho na Central do Brasil [no Rio de Janeiro], nos anos 1970 e início dos 1980, rodava texto em mimeógrafo, fazia um panfletinho e íamos para Central do Brasil falar do 20 de novembro. Nós éramos meia dúzia de gatos pingados, e olha o que ele se tornou hoje.

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