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Entrevista: 
Francisco Batista Júnior

'O Conselho Nacional de Saúde foi silenciado'

O Conselho Nacional de Saúde está com sérias dificuldades de atuação. Esta é a avaliação de Francisco Batista Júnior, servidor da saúde e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde e hoje membro da mesa diretora do Conselho. Ele exemplifica a situação com acontecimentos das ultimas semanas sobre os quais o Conselho só tomou conhecimento pela imprensa: o anúncio de R$ 210 milhões para hospitais filantrópicos, R$2,7 bilhões na construção de 900 novas UPAS e a possibilidade de construção de um plano de carreira para os médicos do SUS. Nesta entrevista, realizada durante o Seminário da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, em Maceió, Francisco Júnior fala sobre o histórico e os desafios atuais do controle social no SUS, além do momento político que o Brasil enfrenta, considerado por ele, um dos mais difíceis.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 20/07/2012 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A partir da sua experiência no Conselho Nacional de Saúde e sua militância como trabalhador da área da saúde, como você analisa os atuais desafios do controle social?

Qualquer processo político de cunho ideológico, principalmente acontecendo num país como o Brasil, com as particularidades e toda a história política que tem, sabemos que é um processo complexo e desafiante, que envolve variantes sociais e políticas, sobretudo quando tratamos de um tema mais complexo ainda que é a possibilidade do exercício da democracia participativa, particularmente na saúde e no SUS. A avaliação que temos sobre esse curto período é que a participação da comunidade no SUS, que é institucionalizada através dos conselhos de saúde, das conferências, plenárias, dos conselhos locais e distritais, sem nenhuma surpresa para nós tem acontecido de forma diversa, em alguns momentos tem avançado significativamente, em outros, retrocede um pouco. Tivemos três bons momentos na participação que merecem realce. O primeiro momento foi a partir da regulamentação da Constituição federal, especificamente em relação à lei 8.142 [1990], que trata da participação da comunidade, e que foi um momento muito importante porque foi a descoberta por parte da sociedade civil e do movimento social que havia a possibilidade concreta do exercício da democracia participativa, através da criação dos conselhos de saúde. O segundo momento foi a partir da segunda metade da década de 90, quando foi criada a plenária do Conselho Nacional de Saúde, que fez mobilizações importantes em Brasília principalmente em relação a então PEC 169 que foi aprovada recentemente como Emenda Constitucional 29 . Isso serviu para deflagrar um processo de articulação dos conselhos de saúde pelo Brasil todo, em todos os estados da federação. E um terceiro momento importante foi a partir de 2006, quando nós tivemos aquela primeira eleição para a presidência do Conselho Nacional de Saúde e todo um processo de aproximação com os conselhos estaduais e municipais, de fortalecimento e de enfrentamento de realidades muito distintas. E tem os momentos de retrocesso também. O primeiro grande momento de retrocesso foi exatamente durante a gestão de José Serra [Ministro da Saúde de 1998 a 2002, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso], quando ele praticamente oficializou a decisão dos grandes temas referentes à saúde nas comissões intergestores bipartite e tripartite e esvaziou consideravelmente os conselhos. Esse momento que estamos vivendo agora é o segundo grave momento que a gente enfrenta nessa curta trajetória da participação social. Eu continuo viajando muito para os estados e posso afirmar que um quadro que nunca foi fácil, porque a gente tem que admitir que não tem sido fácil a proposta de consolidação do controle social do SUS, nesse momento o desafio é muito maior. Hoje estamos vivendo uma situação muito parecida, em termos de desmobilização e desconstrução, com a situação do período José Serra. Os conselhos de saúde estão passando por uma profunda crise política e institucional.

Esse esvaziamento do papel dos conselhos que você atribui a gestão de José Serra permanecem até a atualidade?

É difícil falar isso agora, mas eu tenho que falar até para ser fiel com os fatos. Quando Lula assumiu a presidência e Humberto Costa o Ministério da Saúde, nós fizemos importantes transformações no Conselho Nacional de Saúde. Fizemos uma grande reestruturação ampliando a participação, profissionalizando a estrutura, uma profunda reestruturação também no que diz respeito à forma de definição das entidades que o compõem, através da definição de um processo eleitoral nacional. Esse processo que foi coroado com a eleição do seu presidente pela primeira vez teve uma repercussão muito importante pelo país e serviu para colocar um freio naquele processo de desestruturação dos conselhos. De 2003, quando Lula assumiu, até 2010 foi um momento muito alvissareiro para o controle social e gerou um clima de redefinição dos conselhos de saúde cujo maior exemplo foi a 13ª Conferência Nacional de Saúde, que foi a mais participativa não somente do ponto de vista numérico quanto qualitativo. Só que a partir de 2010 os conselhos passaram a sofrer um duro processo de ataques. Durante 2010, nós passamos o ano atendendo a muitas demandas do país todo que apontavam para descumprimento de deliberação de conselho, gestores que diante de uma dificuldade localizada com o conselho de saúde desmontava aquele conselho e criava outro através de uma portaria, enfim, o ano de 2010 foi muito difícil porque a gente percebeu que outra vez estava em curso na nossa curta história um processo de duros ataques ao conselho.

De onde vinham esses ataques?

Esses ataques aos conselhos passaram a acontecer em todas as regiões do país, passou a ser rotina o desrespeito às deliberações dos conselhos.  Nós passamos a colocar como uma das nossas demandas principais exatamente criar grupos e comissões para visitar lugares onde estavam acontecendo esses ataques aos conselhos de saúde. Acho que isso foi consequência da falta de resposta por parte do Poder Judiciário e do Ministério da Saúde às demandas que nós colocamos, porque nós tínhamos uma posição muito clara, nós começamos, por exemplo, a pautar e a questionar muito fortemente estados que estavam terceirizando a administração do serviço do SUS através de Organizações Sociais. Houve inclusive uma grave crise no Conselho Nacional de Saúde em função disso. Nós pautamos a situação nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia, e exatamente quando estávamos debatendo a Bahia e todos estes estados que estavam implantando a Organização Social, houve uma crise violenta entre os gestores e o Conselho Nacional de Saúde. Lembro-me perfeitamente bem que o Conass [Conselho Nacional dos Secretários de Saúde] ameaçou sair do Conselho Nacional e a gente disse: ‘ pode sair, vocês têm vaga institucional, mas se querem sair, saiam!' Óbvio que a gente não queria que o Conass saísse, mas não poderíamos também nos submeter a uma chantagem colocada daquela maneira. Então, o processo começou em função do movimento muito forte que o Conselho Nacional fez de enfrentamento e combate ao processo de desconstrução do SUS que acontecia pelo país. Quando nós precisamos da sustentação política e jurídica do Ministério da Saúde e do Judiciário esta sustentação não aconteceu, e quando aqueles atores perceberam que poderiam continuar com esse processo, eles realmente institucionalizaram mais fortemente ainda. Isso se agudizou em 2011, com a eleição do Padilha [Alexandre Padilha, atual Ministro da Saúde] para presidente do Conselho e com o comprometimento definitivo da independência e autonomia do Conselho Nacional de Saúde. O que temos em 2012 são crises no Brasil todo para administrar os conselhos. Então, hoje talvez seja o mais difícil momento que estamos enfrentando na participação, porque temos os conselhos em crise, o movimento social em crise e também um governo que muita gente apostou e eu também apostei que diante de uma situação como esta teria uma posição diferente, de defesa do controle social, de cerrar fileiras ao lado dos conselhos de saúde contra o processo de desconstrução da democracia participativa, e lamentavelmente a gente vê exatamente o inverso. A atual gestão está lavando as mãos e está deixando a coisa acontecer livremente.

A eleição do ministro da saúde Alexandre Padilha para a presidência do Conselho está dentro da legalidade, mas o que isso representa levando-se em conta os objetivos de um órgão dedicado ao controle social? Vocês esperavam essa eleição?

Quando nós aprovamos que o presidente do Conselho Nacional de Saúde seria eleito houve quem defendesse que acrescentássemos que os gestores não poderiam se candidatar. Taticamente nós entendemos que naquele momento era mais importante garantir a eleição democrática do presidente do Conselho do que entrar numa seara que poderia inviabilizar inclusive a proposta da eleição do presidente. A gente temia que colocando no decreto que regulamentou o processo a restrição aos gestores de se candidatarem isso pudesse gerar uma disputa jurídica indefinida sem tempo determinado para acabar, que acabaria inviabilizando a eleição para presidente. Então, preferimos não colocar isso para não comprar uma briga jurídica até porque nós tínhamos muito claro naquele período que o gestor federal, o Ministro da Saúde, na época o Humberto Costa, não tinha a menor pretensão de se candidatar a presidente. Ele defendia que gestor não se candidatasse, a mesma coisa foi defendida pelo Agenor Álvares, que assumiu em substituição ao Saraiva Felipe, e mais recentemente o José Gomes Temporão. Apesar de ser legítimo, apesar de ter até um certo respaldo legal, não é ético, politicamente não é correto o gestor assumir a presidência do maior colegiado de controle social do país, que é exemplo para o resto do país e que tem por finalidade precípua fiscalizar a gestão. Como é que o cara vai ser presidente do colegiado e vai fiscalizar a sua própria gestão?  É uma coisa muito complicada para dizer o mínimo. Então, essa preocupação não tínhamos, achávamos que naturalmente se consolidaria aquela ideia de que independente de estar ou não no texto, o gestor não se candidataria. Assim, a candidatura do Padilha foi uma surpresa para nós, porque foi a reversão de um novo conceito político e ético que estávamos construindo. Nós soubemos que foi uma decisão do governo e não do Padilha, o governo estava incomodado com o papel que o conselho estava cumprindo, a verdade é esta. E foi uma decisão do governo na perspectiva de ter um conselho mais alinhado, domesticado, menos barulhento.

Eu não acredito em conselho de saúde que não se envolva em polêmica, porque numa conjuntura como a que nós vivemos, se o conselho de saúde não cria problema, de duas uma: ou o gestor é perfeito na sua relação com o controle social, ou então o conselho de saúde está deixando a coisa correr livremente. Como não existe relação perfeita entre gestor e controle social, então, se o conselho de saúde não está criando polêmica, não está fazendo enfrentamento, é porque a coisa está equivocada. E a repercussão do que aconteceu no Conselho Nacional foi a pior possível, enquanto no período anterior nós tivemos vários estados e um cem número de municípios que copiaram aquilo de bom que o conselho tinha feito, que era a sua reestruturação interna, política e administrativa, com a eleição de Padilha começou a acontecer o efeito inverso, um movimento de gestores querendo ocupar a presidência do conselho. E mais grave do que isso, o conselho foi silenciado, dede que o Padilha assumiu você não ouve mais manifestação do Conselho Nacional a respeito de temas importantes do SUS, a não ser uma ou outra deliberação sobre uma questão pontual, como foi recentemente o projeto de lei do José Serra lá em São Paulo, que tentava comercializar 25% dos leitos SUS. Isso nós denunciamos no Conselho, que aprovou uma recomendação e foi divulgada, mas uma manifestação formal do presidente do Conselho Nacional sobre isso não tem. Ou a imprensa não está procurando o Padilha para se manifestar a respeito destes temas ou ele prefere não se manifestar. Eu aposto na segunda. Eu já conversei com vários jornalistas que dizem: ‘a gente até procura a assessoria do Ministro para ouvir a manifestação do presidente do Conselho, mas ele não se manifesta'. Claro, porque é muito difícil o Ministro da Saúde, enquanto presidente do Conselho, se manifestar sobre uma questão que tem um conteúdo político muito forte. Eu, como presidente do Conselho, poderia me manifestar tranquilamente a respeito do projeto de São Paulo sem que ninguém pudesse de alguma forma arguir que eu estava fazendo aquilo de forma político-partidária. Se o Padilha faz isso, a tendência natural é o governo de são Paulo dizer: ‘é, o cara é PT e tá querendo fazer enfrentamento com a gente que é do PSDB', enfim, a situação dele é muito complicada, eu reconheço inclusive, daí fica mais claro ainda porque ele não deveria ter assumido a presidência do Conselho. O Conselho perdeu sua identidade, sua independência política, nós já temos uma cultura profundamente autoritária nesse país, quando uma autoridade se manifesta publicamente a respeito de alguma coisa, existe uma cultura tão autoritária que algumas pessoas acham que não tem o direito de se contrapor a uma manifestação de um gestor, por exemplo. Imagine quando esse cara é presidente de um conselho como o Conselho Nacional de Saúde, é inteligente, é habilidoso, sabe se colocar, sabe defender as suas propostas.

E como tem sido a disputa interna?

Na reunião do mês de maio, por exemplo, o conselho aprovou retrocessos terríveis. A duras penas nós conseguimos aprovar em 2006, não foi fácil esse debate, um limite de dois mandatos dentro do Conselho. Isso valia não para entidades, a entidade se ela for eleita por dez mandatos não tem problema, mas a entidade só podia indicar a mesma pessoa por dois mandatos, o que para nós é fundamental. A gente debateu isso com toda a profundidade na perspectiva de fazer um processo de renovação, de democratizar a participação, e o Conselho Nacional lamentavelmente retrocedeu, acabou com isso. Hoje voltou a prática antiga de que qualquer pessoa pode permanecer indefinidamente no Conselho Nacional. Isso foi derrubado por orientação e participação do Ministério da Saúde.  Esse novo momento político do Conselho Nacional de Saúde é o momento mais duro porque uma coisa é você ter um Conselho enfrentando grandes dificuldades como no período em que José Serra era ministro, mas que havia uma capacidade de mobilização no movimento para se contrapor e fazer esse enfrentamento, outra coisa é você ter essa dificuldade no governo que o movimento aposta, que boa parte do movimento tem como aliado. A capacidade de mobilização, organização e enfrentamento fica comprometida.

Esses projetos de privatização do SUS, com a entrega da gestão para as Organizações Sociais, a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares [EBSERH] e outros aspectos que você citou continuam fortalecidos com esse governo, e como você está relatando, há um enfraquecimento do controle social. Diante desse quadro, quais são as perspectivas da luta em defesa do SUS constitucional?

Eu lembro muito o Gramsci, porque caminhamos com o otimismo da vontade e o pessimismo da razão e a minha razão está cada vez mais pessimista. Há uma definição ideológica no governo da Dilma, a gente tem que entender isso se quer fazer o enfrentamento da maneira correta. O governo da Dilma é um governo que definiu a posição em relação a isso. Qual é essa posição? Primeiro, é não se contrapor a quem quiser privatizar das mais variadas formas, então hoje o circo está liberado, cada um faz o que quer. O Padilha deu entrevista dizendo que não tem preconceito contra qualquer forma de gestão, como se a questão fosse ter ou não preconceito e a questão não é essa. Então, temos um governo que fez uma opção. A opção não é exatamente uma Organização Social, mas é semelhante, a única diferença é do ponto de vista administrativo porque o serviço permanece sob a responsabilidade do Estado, enquanto a OS é de um ente privado que presta serviço ao estado. A EBSERH, a Fundação Estatal de Direito Privado, a subsidiária da Fiocruz são Organizações Sociais só que permanecem sob a responsabilidade do Estado. É uma diferença importante? É, não dá para entender de outra maneira, porque seria falsear o debate. Então, estou dando razão a quem defende que a EBESERH, as fundações e a subsidiária são públicas, é verdade, pertencem ao estado, mas as possibilidades de apoderamento e utilização privadas que a OS tem, a Fundação, a EBSERH e a subsidiaria também têm. Para nós esse é o grande problema, sem falar que é a possibilidade de desconstruir o nosso objetivo histórico que seria construir no Brasil, dentro de um país capitalista, uma saúde com viés socialista. E uma saúde com viés socialista significaria uma saúde isenta da intervenção de partidos, governos e grupos privados, significaria uma saúde absolutamente como uma política de Estado e não de governo. Nós temos uma contradição de fundo, temos na Constituição Federal que saúde é uma política de Estado e na prática um SUS que é política do governo que está naquele momento exercendo a sua função, cada governo se acha no direito de assumir e fazer o que acha mais correto, inclusive destruir o que foi feito anteriormente que por ventura tenha sido positivo. Então, não vejo como nós, do movimento social, podemos contar com o governo numa possível aliança contra a privatização da saúde.

Então, já que não dá para contar com o governo, como potencializar essa mobilização?

Quando o governo era do PSDB em aliança com os setores mais conservadores a gente conseguia uma unidade considerável do movimento social no enfrentamento a um projeto privatizante, então, por mais difícil que fosse o enfrentamento ao governo, conseguíamos um movimento mais unificado. Hoje não estamos conseguindo mais fazer isso, tem setores que até um tempo atrás cerravam fileiras conosco e agora estão do lado da proposta do governo. Ontem eu estava no twitter e fiz um comentário a respeito de uma notícia sobre os médicos de Portugal que resolveram fazer greve porque foi contratada uma empresa privada para prestar serviço ao sistema público. Fizeram a greve contra esse processo entendendo que isso inviabilizará o serviço público, é obvio, o SUS no Brasil está inviabilizado por isso.  E aí eu twittei: ‘enquanto isso no Brasil, os médicos estimulam'. Aí um companheiro da Federação Nacional dos Médicos respondeu alguma coisa nesse sentido: ‘ei, peraí o grande responsável por isso é o governo, não temos participação nisso'. Mas qual o movimento de greve que as categorias profissionais da saúde fizeram no Brasil contra a privatização do SUS? Qual a greve feita pelas categorias da saúde contra a intermediação de mão de obra e serviços privados no SUS? Nenhuma. É claro que aí vem um debate mais complexo, esse quadro é consequência do projeto neoliberal que estabeleceu uma nova ordem trabalhista no país de precarização da remuneração e do trabalho, do desemprego. Hoje tem muita gente formada, e há muitos profissionais que se submetem a qualquer emprego, seja ele terceirizado, precarizado, o que for, então, hoje quem quer precarizar tem uma facilidade muito grande porque encontra mão de obra barata no mercado.  Não dá para contar também com o poder judiciário, que às vezes que foi provocado não deu a resposta que a gente esperava que desse. A maior prova é a Adin das OS [Ação Direta de Inconstitucionalidade 1923/1998], cujo relator é o Ayres Brito [ministro do STF] em quem a gente apostava e apresentou um voto absolutamente insuficiente para dizer o mínimo. Nós só temos realmente uma esperança e uma alternativa, que é o movimento social continuar esse crescente processo de mobilização política. Mas para isso temos que nos comunicar melhor com a população, temos que mostrar como ela está sendo afetada diretamente pelo processo de privatização. A população não consegue entender que a dificuldade que ela tem de acesso aos serviços do SUS é consequência da privatização. Os privatistas usam um discurso muito oportunista: ‘ah, o povo não quer saber se o serviço é privatizado ou não, quer saber se o serviço está aberto'. E pior que é verdade, diante da carência que a população tem, o que ela não sabe é que aquele serviço está custando um preço tão elevado que acaba comprometendo o funcionamento da rede e a abertura de outros serviços que poderiam estar atendendo a mesma população.  Estamos pecando nesse diálogo com a população, temos que ser mais convincentes, e ter mais argumentos.

Com muita frequência a população assiste a reportagens denunciando atendimentos precários no SUS, sem que, no entanto, haja uma contextualização desses problemas nas mídias hegemônicas, ao mesmo tempo em que há uma construção dos planos de saúde como objetos de consumo. Como então fazer esse diálogo com a população? Com que instrumentos?

Temos que fazer isso no dia a dia. Eu estou participando de um movimento liderado pelo Ministério Público com a participação da OAB, da Advocacia Geral da União, de conselhos de categorias profissionais, um movimento suprapartidário para debater os caminhos para a saúde lá no meu estado, o Rio Grande do Norte. Na ultima reunião que participei eu falei: ‘vamos sair do ar condicionado e vamos para os serviços conversar com a população, vamos dizer para o povo porque ele está passando por aquilo'. Porque para explicar didaticamente mesmo, tem que ser no corpo a corpo, na verdade temos que usar todas as formas de comunicação. Estou convencido de que a gente passa por um dos mais difíceis momentos da nossa história no que diz respeito ao aspecto ideológico. Foram muitas gerações que lutaram, que fizeram o que puderam para elegermos no Brasil um governo que pudesse começar a transformar as estruturas desse país, e a gente conseguiu eleger o governo do Lula com essa perspectiva, sabendo da difícil correlação de forças, sabendo dos desafios que tínhamos pela frente, sabendo que ninguém havia conseguido o poder, mas a gente sabia que era um processo que estava sendo construído. Agora, passados dois governos do Lula e a metade do governo da Dilma, a gente percebe que muita coisa foi feita, não dá para dizer que o Brasil hoje é o mesmo país que era em 2002, o Brasil hoje é outro sob o ponto de vista do emprego, de algumas questões importantes principalmente de combate à pobreza e de inserção de pessoas no mercado, mas lamentavelmente esses anos serviram para que nós tivéssemos a clareza de que o governo adotou uma opção ideológica que vai causar um prejuízo incomensurável do ponto de vista ideológico para a sociedade brasileira.  Porque em algum momento esse grande mote que o governo elegeu de inserção no mercado, de tirar gente da pobreza e inserir no mercado, se esgotará com certa facilidade. O que está acontecendo é que as pessoas estão saindo da pobreza, estão conseguindo emprego, renda, mas não estão conseguindo o que seriam elementos básicos de um processo de construção de cidadania plena. Então, vamos supor, hoje eu consigo melhorar a minha renda, mas como estou dessintonizado, para não dizer alienado ideológica e politicamente, a primeira coisa que eu faço é correr para comprar um plano de saúde. Primeiro porque eu tenho certeza de que o SUS não atende a minha demanda mais geral e segundo porque eu estou convencido ideologicamente pelo governo de que o correto é procurar um plano de saúde, é isso que o governo discursa, é isso que eu ouço na grande mídia.

Isso está gerando um prejuízo muito grande para o país, porque nós pensamos num governo que conseguisse não somente tirar gente da miséria, da pobreza, melhorar o salário, distribuir renda, mas que fundamentalmente começasse a mudar as estruturas desse país na perspectiva da cidadania plena e a gente não viu nenhuma das grandes reformas que são necessárias nesse país. Não fizemos a reforma tributária, não houve reforma política, não houve reforma sindical. O prejuízo disso é muito grande porque até o movimento social acreditar que uma nova proposta transformadora vai realmente transformar vai dar muito trabalho. E esse modelo vai se esgotar, o capitalismo tem limites na capacidade de inserção no mercado e na sociedade, e na primeira crise que nós começarmos a enfrentar, a população que não tem votado ideologicamente, tem votado pelo bolso, vai tranquilamente votar num novo candidato que apareça aí como sendo o grande salvador da pátria, o grande moderno na gestão, mesmo sendo de direita ou de centro, não interessa. E aí é obvio que será muito pior, se com um governo que tem algumas identidades conosco nós estamos passando o que estamos passando, imagine um governo mais conservador, flagrantemente de direita. O exemplo mais recente é o Chile, onde a Michellet Banchelet fez todo um governo discursando que era de esquerda, mas o que ela fazia era o que a direita faz normalmente. Na eleição, os chilenos decidiram: ‘se é isso aí é um governo socialista, então vamos votar no outro porque o outro pode ser ou a mesma coisa ou um pouco melhor'. Esse é o risco que corremos no Brasil mais cedo ou mais tarde.

E como garantir a sobrevivência do SUS nesse quadro?

Nessa atual lógica que vem sendo estimulada na saúde pelo governo da Dilma, o SUS está praticamente esgotado, não tem condição de crescer muito mais, mas o SUS é tão poderoso enquanto proposta histórica, que mesmo sendo violentamente agredido, ele consegue sobreviver, porque sob o ponto de vista conceitual ele é fantástico. Então, é como se fosse um doente grave, mas ele tem uma força interior tão potente e tão violenta que mesmo com a doença grave que o assola, ele consegue resistir, então é muito difícil dizer: ‘ah, mais dois anos e acabou o SUS', mas com certeza com esse modelo atual o SUS não tem perspectiva de avanço e será sempre um sistema como esse que temos acompanhado, que consegue fazer um serviço interessante, mas com mazelas e cicatrizes profundas que não conseguem ser tratadas convenientemente.