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Entrevista: 
Noêmia Porto

‘Os indicadores apontam para um processo claro de empobrecimento dos salários, decréscimo nas condições de trabalho e piora das condições de vida’

Nesta entrevista, a presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) Noêmia Porto comenta, à luz das mudanças aprovadas na legislação trabalhista que entrou em vigor em 2017, os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na semana passada. A pesquisa identificou um aumento no número de pessoas ocupadas no país no último trimestre, mas que foi puxado pelo aumento do número de pessoas empregadas sem carteira assinada e trabalhando por conta própria. Os resultados também apontam para um aumento do número de pessoas subocupadas e uma queda no rendimento médio mensal dos trabalhadores no período. Além disso, a juíza fala sobre a decisão do ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada de suspender todas as ações trabalhistas no país que analisam casos de contestação de acordos coletivos que limitam ou restringem direitos trabalhistas não assegurados pela Constituição, a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI), uma das principais apoiadoras e formuladoras das alterações aprovadas pela reforma trabalhista. A inclusão do Brasil, pelo terceiro ano consecutivo, na lista de países suspeitos de violar convenções internacionais pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em junho, também é analisada pela presidente da Anamatra. Por fim, Noêmia alerta para o risco de aprofundamento da precarização das relações de trabalho no país a partir da revisão das Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho, as NRs, cuja revisão está em processo de discussão pelo governo. Centrais sindicais temem o que a revisão signifique em um contexto de flexibilização dos direitos trabalhistas no país, e denunciam que as representações de trabalhadores não têm sido ouvidas no processo de discussão sobre a revisão das normas.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 02/07/2019 14h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Alessandro DiasO IBGE divulgou na semana passada dados da PNAD Contínua que apontam que houve um aumento do número de pessoas empregadas sem carteira assinada e trabalhando por conta própria no último trimestre. Os dados também revelam um crescimento do número de pessoas subocupadas e uma queda no rendimento médio mensal dos trabalhadores. Em que medida os dados corroboram as análises críticas à reforma trabalhista que entrou em vigor em 2017, que para muitos analistas siginificaria o aumento da precarização do trabalho e piora nas condições de vida dos trabalhadores?

De fato, um dado da realidade que abala muitas convicções sobre a suposta “modernização” das relações de trabalho é o desemprego, que subiu para 12,7% em março de 2019 e atingiu 13,4 milhões de brasileiros. Trata-se da maior taxa desde o trimestre terminado em maio de 2018. Segundo o IBGE, o número de subutilizados atingiu o recorde de 28,3 milhões de pessoas. Esses desalentados formam um contingente imenso de pessoas em ocupações precárias e invisíveis para o sistema de proteção jurídica. Ainda segundo dados recentes, a economia brasileira gerou 129.601 empregos com carteira assinada em abril de 2019, de acordo com números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) divulgados em 24 de maio de 2019 pelo Ministério da Economia. Nesse número, houve a criação de 5.422 vagas de trabalho intermitente e 2.827 na modalidade de trabalho a tempo parcial.  Todos esses aspectos foram apontados em nota técnica divulgada pela Anamatra, e que foi entregue ao Diretor-Geral da OIT, Guy Ryder, ao Secretário-Geral da OIT, Christian Veloz, e à Diretora do Departamento de Normas, Corine Vargha. O que se nota é o aprofundamento das desigualdades sociais, a desvalorização do trabalho humano e a maior vulnerabilidade dos trabalhadores. Os dados da nota técnica referem, dentre outros, o estudo intitulado “Futuro do trabalho no Brasil: perspectivas e diálogos tripartites”, que reúne a síntese de quatro Diálogos Nacionais realizados no país nos anos de 2016 e 2017, tanto para estimular as respectivas discussões no Brasil, quanto para contribuir com a Comissão Mundial criada pelo Diretor-Geral da OIT sobre a temática. A flexibilização do mercado de trabalho, em especial em relação à substituição do emprego formal por formas atípicas de contratação, a alta informalidade e o desemprego, foram pontos que mereceram atenção no estudo.

Além das desigualdades no mercado de trabalho, os aspectos populacionais e da má distribuição da renda também foram considerados, sobretudo aqueles ligados às desigualdades educacionais, de gênero, raça, idade e local de moradia, destacando-se a maior taxa de desemprego entre os jovens. Considerando a acentuada modificação do mercado de trabalho, o estudo também apontou as dificuldades nas formas de representação dos trabalhadores e os desafios para as negociações coletivas no Brasil, especialmente pelo atual déficit de participação dos sindicatos.

Portanto, até aqui os indicadores apontam para um processo claro de empobrecimento dos salários, decréscimo nas condições de trabalho e piora das condições de vida de quem precisa do trabalho para viver.

Na última sexta-feira (28/06), o ministro do STF Gilmar Mendes determinou a suspensão de todas as ações trabalhistas no país que analisam casos de contestação de acordos coletivos que limitam ou restringem direitos trabalhistas não assegurados pela Constituição. O pedido de suspensão partiu da Confederação Nacional da Indústria (CNI) uma das entidades que mais fortemente apoiou e contribuiu com a reforma trabalhista aprovada em 2016. Como a Anamatra avalia a decisão?

De fato, em decisão de 28 de junho de 2019, admitindo a Confederação Nacional da Indústria (CNI) como amicus curiae, no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.121633/GO, o Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão de todos os processos pendentes individuais ou coletivos, que versem sobre a questão ou tramitem no território nacional, pertinentes à validade de acordos e convenções coletivas, destacando que existe o justo receio de que as categorias sejam novamente inseridas em uma conjuntura de insegurança jurídica, com o enfraquecimento do instituto das negociações coletivas. As discussões deste processo geram preocupação, em especial nos seguintes pontos: se a autonomia negocial será considerada em patamares absolutos; se acordos e convenções coletivas de trabalho serão tratados como fenômenos meramente contratuais e numa visão antiga de contrato; se segurança jurídica será o sinônimo de aplicação irrestrita de textos em sua literalidade; e se a negociação coletiva estará dispensada de ser fonte de direitos humanos trabalhistas. Espera-se, a propósito, também em nome do diálogo tripartite, que sejam admitidos outros amicus curiae na referida ação, para que visões diversas possam ser efetivamente consideradas durante o julgamento desse importante precedente.

A revisão das Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho, as NRs está atualmente em análise pelo governo. Centrais sindicais já acenderam o sinal de alerta sobre o que a revisão pode significar em um cenário em que os direitos trabalhistas têm sido flexibilizados, e denunciam que essa discussão tem se dado ao arrepio de convenções internacionais da OIT sobre participação dos trabalhadores na regulação das relações de trabalho. Existe o risco de que a revisão das NRs represente um aprofundamento da precarização das relações de trabalho no país, no entender da Anamatra?

A Anamatra e a ANPT [Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho] emitiram nota pública sobre o tema, expressando inconformidade com a possível redução de 90% das Normas Regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho vigentes no país, conforme declaração do presidente da República, Jair Bolsonaro. Na nota, as entidades destacam que constitui retrocesso inadmissível qualquer esforço de revogação dessas NRs, a bem da redução dos custos de produção.  A Constituição de 1988 externa preocupação ampla e abrangente com o meio ambiente do trabalho e o alçou, enquanto bem essencial à sadia qualidade de vida, ao patamar de direito fundamental, disciplinando o tema em diversas frentes. O atual sistema empresta relevância ao local onde o ser humano, em geral, passa a maior parte da sua vida produtiva, ou seja, no trabalho. De fato, o direito ao meio ambiente devidamente equilibrado é bem essencial à sadia qualidade de vida (art. 225). Os direitos à saúde e ao trabalho são direitos sociais (art. 6º). Há previsão, como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º), da redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, além do adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei, e também do seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa. Além disso, a Constituição estabelece que ao Sistema Único de Saúde compete colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (art. 200, VIII).

A tragédia de Brumadinho e a péssima posição do Brasil no ranking mundial de acidentes do trabalho revelam que qualquer modificação nas NRs deverá servir ao incremento dos patamares de segurança, e não o reverso.

Em junho, a OIT incluiu o Brasil pelo terceiro ano consecutivo na lista de países suspeitos de violar convenções internacionais sobre o trabalho. A inclusão se deu após denúncia de centrais sindicais de que as mudanças nas leis trabalhistas que entraram em vigor em 2017 contrariam a Convenção 98 da OIT, da qual o Brasil é signatário. O que diz a Convenção 98 e o que a inclusão do país na lista da OIT pelo segundo ano consecutivo pode significar para o país?

Voltando ao “Caso Brasil” na recente Conferência da Organização Internacional do Trabalho, no que se refere à permanência na 'lista curta' por violação a convenções internacionais ratificadas, outros países também tiveram violações discutidas, dentre eles Turquia, Etiópia, Iraque, Líbia, Myanmar, Nicarágua, Tajiquistão, Uruguai, Iêmen, Zimbábue, Argélia, Bielorrúsia, Bolívia, Cabo Verde, Egito, El Salvador, Fiji, Honduras, Índia, Cazaquistão, Laos, Filipinas e Sérvia. As violações, no caso brasileiro, em especial considerando a Convenção nº 98 da OIT, dizem respeito à possibilidade de negociação coletiva abaixo do mínimo legal; a previsão de negociação direta entre trabalhador e empregador; e o estímulo às contratações atípicas (autônomo exclusivo e pejotização, por exemplo) que promovem a dessindicalização dos trabalhadores. Tudo isso impacta na redução do número de acordos e convenções coletivas de trabalho, abalando o diálogo social.

A sucessiva presença do Brasil na lista abala a nossa credibilidade internacional e, claramente, há países e empresas que, levando a sério a normativa internacional, se negam a abrir oportunidades para um mercado que resolve empreender serviços e produtos fazendo uso da exploração abaixo dos níveis dignos definidos internacionalmente. Trata-se de considerar que tipo de mercado (e para quem) o Brasil pretende estimular. Como conclusão, o Comitê instou o Governo brasileiro a um amplo diálogo com a representação dos trabalhadores e dos empregadores para que sejam analisados os impactos da reforma e empreendidos esforços para modificações ou aperfeiçoamentos que sejam necessários. Além disso, relatórios deverão ser enviados para os peritos da OIT, dentro do ciclo de trabalho dos peritos. A permanência do Brasil na lista, já pelo terceiro ano consecutivo, deve ser interpretada no sentido da necessidade de se estabelecer um diálogo real, tripartite, com a representação dos trabalhadores e empregadores, para uma análise sincera e crítica sobre os resultados e impactos da reforma trabalhista no mercado de trabalho no Brasil, bem como a respeito do patamar de dignidade dos trabalhadores.

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A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado aprovou, na terça-feira (6/06), o projeto de reforma trabalhista, por 14 votos a 11. O texto não sofreu nenhuma modificação em relação ao Projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados no final de abril (PLC) 38/2017. O relator da matéria na CAE, senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), rejeitou todas as 242 emendas apresentadas pelos senadores da comissão, sob a justificativa de que isso significaria ter que remeter o texto novamente à Câmara. Em seu relatório, no entanto, o senador recomendou o veto, pelo presidente da República, de alguns pontos do projeto que ele mesmo considerou que precisam ser mais bem debatidos. O projeto segue agora para a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) para em seguida ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, antes de ir a plenário. Para o coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do Ministério Público do Trabalho (Conafret/MPT), Paulo Joarês, é improvável que o projeto sofra alteração no Senado. Para ele, a discussão nas comissões vem se dando apenas como uma forma de dar uma “aparência democrática” à tramitação de um projeto de interesse das grandes entidades empresariais que dão sustentação ao governo. Nesta entrevista, ele denuncia manobras que impediram o debate sobre o texto e explica como aspectos da reforma trabalhista, como a prevalência do negociado sobre o legislado nos acordos coletivos, a autorização para a terceirização sem limites e as restrições que ela coloca para o acesso de trabalhadores à Justiça do Trabalho apontam para um cenário de perda de direitos e precarização das relações de trabalho no país.
Ministério Público do Trabalho pede rejeição da reforma trabalhista aprovada na Câmara, que institui a jornada flexível e prioriza o negociado sobre o legislado.
Quando a equipe de reportagem da EPSJV/Fiocruz terminava a última edição da Poli (n° 46), a Casa Civil da Presidência da República informou que nenhuma iniciativa tinha sido tomada para construir a proposta de reforma trabalhista prometida pelo governo interino. Não passou muito tempo até que, num café da manhã com jornalistas no dia 20 de julho, o ministro provisório do trabalho, Ronaldo Nogueira, anunciasse os termos da proposta que, tal como a reforma da previdência, deve ser apresentada ao Congresso ainda este ano. Sobre os pontos principais da contrarreforma, quase nenhuma surpresa em relação ao que a Poli adiantou e ao que se podia ler no programa do PMDB, ‘Ponte para o futuro’: desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho, fazendo o negociado prevalecer sobre o legislado, regulamentação da terceirização e ampliação do Programa de Proteção ao Emprego (PPE), criado no governo Dilma Rousseff. Nesta entrevista, realizada pouco antes desse anúncio do ministro interino, o professor da Faculdade de Economia da Unicamp, Marcio Pochmann, rebate as ideias que agora se apresentam oficialmente como propostas, explicando por que a ideia de que flexibilização das leis trabalhistas permite gerar mais emprego é um mito difundido pelo empresariado