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Austeridade que mata

Representantes do Brasil, Espanha e Portugal fazem análises sobre os impactos da austeridade fiscal na Atenção Primária à Saúde durante o 12º Abrascão
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 28/07/2018 16h23 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Ana Paula Evangelista

Representantes do Brasil, Espanha e Portugal discutiram os ‘Impactos da austeridade fiscal na Atenção Primária à Saúde’ durante o terceiro dia de programação do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão) que acontece na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Apesar de algumas semelhanças nos efeitos do controle dos gastos, foi unânime entre os participantes da mesa que o caso brasileiro é mais grave e severo. Davide Rasella, pesquisador da Fiocruz e professor do Instituto de Saúde de Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), apresentou o estudo Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: A nationwide microsimulation study, que relaciona mortalidade infantil com a política de congelamento de gastos do Governo Michel Temer. A pesquisa indica que 19.732 mortes de crianças menores de cinco anos poderiam ser evitadas, até o ano 2030, caso os programas Bolsa Família e Estratégia de Saúde da Família tivessem maior orçamento.

As iniciativas foram objeto de atenção detalhada no estudo e, para simular seu impacto, os pesquisadores analisaram individualmente os dados de cada um dos 5.507 municípios brasileiros. Foram consideradas variáveis demográficas e socioeconômicas como renda per capita, taxa de pobreza, alfabetização, taxas de fecundidade, saneamento básico e mortalidade. Segundo o pesquisador, o Brasil enfrenta uma austeridade bem distinta porque não se coloca apenas na crise de fato, mas estende-se por 20 anos com a Emenda Constitucional 95, que poderá estar em vigor mesmo após a superação dos problemas econômicos. Além disso, a extrema pobreza no Brasil aumentou 11% entre 2016 e 2017, enquanto o orçamento do Bolsa Família reduziu. Dessa forma, a conta não fecha porque as dinâmicas sociais não estão em equilíbrio. “Quando você congela os gastos, ou seja, os ajusta de acordo com a inflação, não consegue manter o nível de proteção social que tinha antes. Estamos falando de cerca de 20 mil mortes e 124 mil internações devido a doenças como desnutrição, diarreia, pneumonia e demais agravos relacionados às condições socioeconômicas, que poderiam ser evitadas”, afirmou Davide Rasella.

Resistência 

Segundo José-Manuel Freire, da Escuela Nacional de Sanidad – Insituto de Salud Carlos III, na Espanha, a crise econômica foi iniciada em 2008, mas foi reconhecida apenas dois anos mais tarde. Além disso, os socialistas do chefe de governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, sofreram um duro golpe nas eleições de 2011, vencidas pelo opositor Partido Popular (PP). “Com isso, a primeira medida foi cortar em 5% todos os empregados públicos e reduzir o repasse de medicamentos, que atingiu principalmente a população idosa. [Houve] cortes de gastos no Sistema Nacional de Saúde (SNS) e uma proposta absurda de exclusão dos imigrantes. A pobreza e o desemprego aumentaram as desigualdades sociais”, explicou Freire.

No entanto, Freire falou com muito orgulho do enfrentamento e “resiliência” do SNS espanhol por meio da atenção primária. “Não existe a barreira classista para os médicos de família. Eles têm a mesma valorização dos especialistas, mesmo tempo de residência profissional. Também há enfermeiras especialistas em atenção primária. Esses profissionais trazem uma qualidade muito forte de vivência, com prestigio notável”, explicou Freire, ao comparar com o Brasil, que segue um caminho oposto.

Também chamou atenção para a necessidade de mobilização popular. “Na Europa o mais importante para a população é a saúde pública. Quando há qualquer indício de privatização ou suspensão de serviços, vamos às ruas e exigimos nossos direitos. O Brasil precisa se articular e não permitir que os efeitos desse período sejam irreversíveis”, concluiu.

Histórico da APS portuguesa

Henrique Manuel da Silva, médico de família e atual coordenador Nacional para a Reforma do Sistema Nacional de Saúde (SNS) da área de Atenção Primária à Saúde (APS) em Portugal, fez um histórico da experiência portuguesa iniciada nos anos 90 e sua operalização a parir de 2016. Segundo o médico, até o início dos anos 60 não havia nenhum sistema de saúde no país. “A saúde era para quem estava doente e quem tinha dinheiro”, afirmou Henrique. Em 1970, Portugal apresentava indicadores socioeconômicos e de saúde muito desfavoráveis no contexto da Europa, com uma taxa de mortalidade infantil, por exemplo, de 58,6%. A despesa com a saúde representava apenas 2,8% do PIB. Em 1974, com a implantação do Regime Democrático, a Constituição da República em 1976 e a criação do SNS em 1979, a saúde pública ganhou força e apoio popular. “Em 1982 tem-se pela primeira vez enfermeiros e médicos com formação de medicina da família nos Centros de Saúde, por exemplo. Mas como sempre acontece nas políticas públicas, a orientação política dos governos tem suas diferenças. Durante esses 12 anos, houve quatro anos em que ela foi quase suspensa, com os impactos da austeridade que a Europa tem sofrido”, explicou Henrique ao lembrar da crise de  2011 a 2015.

No entanto, após o período de crise, foi retomado o projeto de reforma da atenção básica, que já foi elogiado em inúmeros relatórios internacionais com ênfase nas Unidades de Saúde Familiar (USF), algo similar à Estratégia de Saúde da Família no Brasil. “O que determinou que era necessário retomar a reforma foi o risco de colapso. Após a crise havia um déficit de autonomia na organização, insistência na normalização de realidades distintas e dos profissionais, não havia equidade, o nivelamento era feito por baixo, não havia reconhecimento do mérito. Sem mencionar as enormes assimetrias da divisão dos recursos, instalações e equipamentos, falta de espaço para a inovação e desmotivação”, resumiu Henrique.

Após a retomada dos investimentos em saúde pública, essas unidades passaram a prestar cuidados individuais e familiares, compostas por equipes multiprofissionais constituídas por médicos, enfermeiros e pessoal administrativo e têm como missão a prestação de cuidados personalizados, garantindo a acessibilidade, a globalidade, a continuidade e a qualidade. “A USF é serviço de proximidade, de pequena dimensão, leve na estrutura, simples na organização, afável na relação que com os pacientes e de fácil contato. Após sua implantação, temos valores muito baixos de acesso à urgência hospitalar para diabetes e doenças respiratórias. A APS em Portugal hoje é usada por ricos e por pobres e está funcionando. O melhor serviço público é de saúde”, definiu.

Por fim, Henrique fez um alerta para a situação que o Brasil enfrenta: “Não é obrigatório recorrer ao sistema privado de saúde para superar uma crise. Provamos que é possível reformar através da administração pública desde que haja vontade pública para fazer”.

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