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Carga horária dos médicos é flexibilizada na Saúde da Família

Nova portaria levanta discussão sobre como atrair e valorizar os profissionais da saúde pública
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 05/09/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Até muito recentemente, todos os profissionais que atuavam na equipe da Estratégia de Saúde da Família (ESF) - médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde e, no caso da equipe ampliada, também dentistas, auxiliares de consultórios e técnicos em higiene bucal - deveriam cumprir uma carga horária de 40 horas semanais. Entretanto, a portaria 2.027, do dia 25 de agosto de 2011, publicada pelo Ministério da Saúde (MS), flexibilizou a carga horária dos médicos, que agora também poderão ser contratados para trabalharem 20 ou 30 horas semanais. De acordo com o MS, a medida apenas consolida uma realidade já existente, que tem colocado médicos e gestores na ilegalidade. Com a portaria, outro debate também vem à tona: não seria o caso de se pensar em planos de carreira para os profissionais da Estratégia de Saúde da Família e do SUS, de um modo geral?

O Ministério da Saúde determina que cada equipe de saúde da família deve contar com, no mínimo, um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde. A proposta, que foi implantada em 1994, é considerada pelo MS a principal estratégia para garantir a atenção básica no país. Como as ESF são organizadas por territórios, na base da atuação das equipes está justamente o vínculo com as comunidades onde atuam. O Ministério da Saúde afirma que o ideal para garantir esse vínculo é a manutenção das 40 horas semanais para todos os profissionais. Entretanto, alega que a situação existente hoje impede justamente a existência dessa relação, já que os médicos não cumprem as 40 horas semanais, o que pode significar inclusive a falta de atendimento de todos os outros profissionais vinculados à ESF. "O desejado para o conjunto dos profissionais são as 40 horas, porque permite uma relação maior com o território, um vínculo maior da equipe com a comunidade, permite que a qualquer hora que esse usuário procure a unidade básica de saúde, aquela equipe que ele conhece pelo nome, que é vinculada a ele, esteja lá para poder atendê-lo", afirma o diretor de Atenção Básica do Ministério da Saúde, Heider Pinto.  Ele explica que, no entanto, a realidade levou o Ministério a modificar a regra.  "Há muito tempo existe uma queixa e uma reivindicação dos secretários municipais de saúde de que dadas as dificuldades em relação à quantidade e à distribuição dos médicos no país, muitas vezes esses municípios ficam numa situação em que ou têm uma equipe na qual todos os profissionais trabalham 40 horas, que é aquilo preconizado pela portaria anterior, e que garante o financiamento, ou não têm nenhum financiamento porque não conseguem garantir as 40 horas", diz.

Como a regra anterior era clara, exigindo que todos os profissionais trabalhassem 40 horas, se não fosse cumprida, poderia significar o descredenciamento da equipe de saúde da família pelo Ministério. Heider afirma que muitas vezes os profissionais médicos e os gestores são processados pelo não cumprimento da regra. "Entre o ideal e o real temos infelizmente uma diferença muito grande. A portaria não muda a realidade, ela reconhece a realidade. Isso acontece em parte significativa dos municípios, a ponto de não ser exceção. Essa situação tem gerado uma série de processos no tribunal de contas e gera pelo menos 300 cortes de equipes a cada mês por parte do Ministério da Saúde. Então, nós tínhamos a seguinte opção: continuar imaginando que a regra é aplicável no país inteiro e desconsiderar a realidade, deixando o problema para os profissionais que não cumprem a carga horária ou para os gestores que estão com dificuldade responderem, ou tentarmos ver qual a melhor solução para a situação real", justifica.

De acordo com a nova portaria, há algumas possibilidades de constituição das equipes de saúde da família. O documento enumera seis tipos de configurações diferentes. Em uma delas, o médico trabalharia apenas 20 horas semanais. Nas outras possibilidades há a atuação de mais de um profissional médico nas equipes ou cumprindo carga horária de 30 ou de 20 horas semanais. Ou ainda, a manutenção da situação ideal, com o cumprimento das 40 horas por apenas um profissional médico. Nos casos em que atuará mais de um médico nas equipes, podendo chegar a quatro profissionais, não há diminuição da carga horária total de atendimento à população, apenas a diversificação dos profissionais. Heider considera que, em todas as configurações, a população sai ganhando, inclusive na primeira, com o médico atendendo apenas 20 horas. "Esse formato é para aqueles lugares onde não temos profissionais e vamos ter que trabalhar com o que chamamos de equipe transitória, que não é uma equipe adequada do ponto de vista da carga horária do profissional para a quantidade de pessoas. Mas estamos percebendo que ela é melhor do que não ter nenhum profissional, como muitas vezes acontece hoje", explica, e completa. "Mas é uma equipe que precisamos corrigir. Ela traz uma vantagem do ponto de vista da política pública, que é nós passarmos a saber onde isso acontece para que possamos fazer outras medidas. Por exemplo, colocar em prática a regra do Fies [Financiamento estudantil], perdoando percentuais da dívida do médico com o Fies a cada mês que ele atue na saúde da família, para estimular os profissionais a irem para essas equipes. Assim garante-se visibilidade para o que hoje não é informado porque o gestor tem medo de perder a equipe", observa.

Em entrevista realizada por email, a diretora do Departamento de Gestão e Regulação do Trabalho da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Degerts/SGTES) do Ministério da Saúde, Denise Motta Dau, defende a medida como uma política transitória. "A dificuldade de fixação de profissionais médicos no Sistema Único de Saúde e a realidade de multiplicidade de vínculos de trabalho dos médicos levou o Ministério da Saúde, de forma transitória, a editar a Portaria, pois neste momento o Ministério está debruçado no estudo e diálogo sobre estratégias para o provimento e fixação destes profissionais", observa. Ela fala sobre outra legislação - a portaria interministerial 2.087, de 1º de setembro de 2011 - publicada pelo MS e pelo Ministério da Educação, que institui o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica, que, segundo Denise, também caminha no sentido de tentar solucionar o problema. "O programa busca, a partir de incentivos, estimular a permanência de médicos, enfermeiros e odontólgos em áreas remotas e de difícil acesso. Esta estratégia está alinhada à  criação de planos de carreira multiprofissional para os trabalhadores no setor saúde, a partir das diretrizes nacionais pactuadas na Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, que é um mecanismo de valorização dos trabalhadores e que já foi identificado por pesquisas como um determinante na fixação dos profissionais de saúde", destaca.

E os outros profissionais?

Como a equipe de saúde da família é multiprofissional, para o seu bom funcionamento, de acordo com o próprio Ministério da Saúde, ela precisa de todos os trabalhadores que a compõem. A Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) discorda da mudança prevista na portaria 2.027. "A proposta inicial é a ideal: que todos os profissionais tenham uma disponibilidade de trabalho de 40 horas para a ESF. Isso faz falta, o médico tem que atender dentro da ESF e tem que fazer as visitas domiciliares também", afirma a assessora jurídica do Conacs, Elane Alves.

Para Elane, os outros profissionais da equipe da ESF estão sobrecarregados. "Os enfermeiros são os primeiros a serem sobrecarregados, os agentes de saúde são os primeiros que ouvem as queixas da população. Acho que o governo não usou a solução mais correta, foi a mais conveniente para se adequar às reivindicações dos prefeitos e secretários que estão com problema sério por não acharem profissionais médicos que têm disponibilidade de 40 horas, por questões financeiras. Essa sobrecarga já existe há muito tempo, só que todo mundo fazia vista grossa. Então, ao invés de cobrar, isso foi flexibilizado", opina.

Já Heider Pinto acredita que a nova portaria traz também vantagens para os outros profissionais que atuam na ESF e não apenas para os médicos. A primeira delas é, segundo ele, a própria garantia de financiamento, porque pela portaria anterior, a equipe toda poderia deixar de existir caso não se garantisse a presença do médico. A segunda, de acordo com o diretor, é a solução do problema da sobrecarga, com exceção da equipe que funcionará com o médico trabalhando apenas 20 horas. "Todas as possibilidades trazidas pela portaria, com exceção da equipe transitória, aumentam a quantidade de carga horária médica para a mesma população, não há nessas possibilidades a dificuldade de reduzir a quantidade de horas sobrecarregando os outros profissionais. A única situação que sobrecarrega é a situação da equipe transitória porque ao contrário de se ter 40 horas, se tem 20. Mas não é a portaria que sobrecarrega, hoje já acontece isso", argumenta.

Elane diz não acreditar que a medida vá garantir que a saúde da família chegue até áreas mais remotas, como anunciou o ministério. "Se fosse assim, teria que flexibilizar a carga horária de todos os profissionais. O agente na verdade tem disponibilidade de tempo integral para a sua comunidade, porque o médico e o enfermeiro vão embora para a sua casa e os agentes permanecem na comunidade", completa.

Plano de carreiras

Para o Sindicato Profissional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Estado de Permambuco (Satenpe), uma solução para o problema do não cumprimento da carga horária na ESF seria a criação de um plano de carreira único para todos os profissionais do SUS. "Lutamos pela carreira única para todos os trabalhadores do SUS, discutida com todas as entidades representativas de classe. Nós pensamos que a carreira não precisa estabelecer uma carga horária única para todos os profissionais e nem benefícios iguais, existem as questões que são comuns a todos e há particularidades em cada profissão também. Se a categoria tiver carga horária  e piso salarial definido em lei, será preciso respeitar essas determinações", define o secretário geral do Sindicato, Ademir Luiz. Ele completa que os profissionais devem ser responsabilizados no plano de carreiras a cumprir suas funções. "Por isso, hoje há profissionais que fazem o que querem, porque não existe uma carreira única e não existe uma responsabilidade sanitária", critica. Ademir aposta que uma carreira SUS inclusive ajudaria a atrair profissionais para os lugares em que há carência.

Heider Pinto concorda que um plano de carreiras pode auxiliar na interiorização e fixação dos profissionais, inclusive na Saúde da Família. Entretanto, discorda da proposta de que seja uma carreira única nacional. "A situação dos vários estados do Brasil é muito diferente, assim como dos municípios, o que faz com que o início de uma carreira no Amazonas seja muito diferente do início de uma carreira em Belo Horizonte, tanto em termos de remuneração necessária para se ter o profissional, quanto em termos de que elementos se levará em consideração para ser feita a progressão da carreira. Uma carreira genérica teria pouco impacto na melhoria do trabalho prestado", opina.  Outro motivo para a não criação de uma carreira, para o diretor, é o esforço realizado de municipalização e descentralização do SUS.  "Ter um profissional vinculado a uma carreira federal traz a recentralização de um trabalhador que hoje é um trabalhador municipal. E é muito importante essa relação da carreira municipal com as especificidades dos municípios e com a possibilidade de o gestor do sistema naquele lugar ser o empregador do trabalhador", completa.

Heider defende a existência de carreiras regionais. "Carreiras regionais dão mais conta da diversidade do país. Necessariamente os governos estaduais e federal têm que apoiar essas carreiras, mas não criá-las. Assim, juntamos os municípios, com carreiras intermunicipais, e mantemos o caráter municipal de gestão do sistema, inclusive da força de trabalho, mas possibilitando que em algumas regiões com características semelhantes e específicas o trabalhador possa fazer um concurso e ir mudando de município ao longo da vida e na progressão da carreira", sugere.

De acordo com Denise Motta, o Degerts aposta na criação de planos de carreira multiprofissionais, a partir das diretrizes pactuadas na Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS. "Este fomento passa pelo incentivo à criação de novos espaços de diálogo e negociação em âmbito municipal, regional e estadual, e também pelo apoio técnico e financeiro aos entes federados para que o plano se concretize. O protocolo que estabelece as diretrizes para a elaboração de planos de carreira multiprofissional baseia-se na equidade de oportunidades de desenvolvimento profissional, com um sistema de educação permanente como forma de melhoria da qualidade do atendimento. A carreira é entendida como um instrumento de gestão que integra a política de gestão do trabalho ao planejamento e desenvolvimento organizacional", explica.

Para a diretora, a existência de planos de carreira é um mecanismo eficiente para fixar os trabalhadores e melhorar a qualidade do atendimento. Para resolver o problema da ESF, Denise diz que o Degerts aposta no plano de carreira multiprofissional. "O plano de carreira multiprofissional articula dimensões da formação, da melhoria das condições de trabalho ao longo da vida profissional, portanto, valoriza o  trabalhador, confere maior estabilidade para o desenvolvimento profissional, ao mesmo tempo que também lhe traz mais segurança e tranquilidade emocional, tão necessária para o cuidado nos serviços de saúde", defende.

Comentários

a port. 2027-25/08/2011, flexibilizou a carga horaria do medico em 20/30hs semanais, possibilitando a esta categoria fazer parte de varias equipes da ESF, em diversos municipios. Otimo. e as demais categorias, CUJOS SALARIOS SAO INFERIORES NAO TÊM IMPORTANCIA/RELEVANCIA ALGUMA dentro da ESF. SAO PROFISSIONAIS DE SEGUNDA CATEGORIA? carga horaria maior, salario menos, sobrecarga de trabalho. Nao seria justo a EQUIPARAÇÃO DE CARGA HORARIA PARA TODA A EQUIPE?

Essa portaria só evidência a supervalorização da classe médica em detrimento das demais. Hipocrisia do Ministério da Saúde. Nos seus periódicos e artigos falam sobre a multidisciplinaridade, mas na prática não investem nisso. PROVAB para dentistas e enfermeiros foi removido! Parabéns MS, por legalizar a insubordinação de uma classe.

Sou médica e tenho interesse em participar da ESF com carga horária de 20 horas semanais... Como faço para participar? grata!