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Ciências políticas na escola: mais uma disciplina?

PL propõe inclusão da matéria no currículo escolar. Para educadores, escola é lugar da política, mas não como disciplina.
Redação - EPSJV/Fiocruz | 14/10/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O projeto de lei 7746/2010 inclui no currículo obrigatório do ensino médio a disciplina ciências políticas. De autoria do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM/GO), a proposta sugere que seja ensinado aos estudantes conteúdo técnico e não partidário, relacionado à história do voto no Brasil, atribuições dos cargos políticos, diferenças entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, entre outros assuntos. O projeto alteraria a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que já foi modificada recentemente para a inclusão das disciplinas obrigatórias de sociologia e filosofia.

De acordo com o site da Universidade de Brasília (Unb), que oferece um curso de graduação em Ciência Política, o estudo dessa área de conhecimento “envolve diversas disciplinas das ciências humanas, como História, Geografia, Filosofia e Antropologia”. Ainda segundo a universidade, “o cientista político é alguém que conhece profundamente a história dos processos políticos e tem habilidades para definir tendências e sugerir caminhos”. O deputado Ronaldo Caiado, ao propor que a disciplina seja obrigatória, argumenta que a mudança contribuiria para o aperfeiçoamento do processo democrático. “Os eleitores estarão mais capacitados para entenderem a realidade política à sua volta. Atualmente muitos eleitores votam sem saber a atribuição dos cargos políticos”, defende na justificativa do projeto de lei. O deputado completa: “É importante que o brasileiro saiba quais as atribuições de um governador, de um deputado federal, pois se estes o representam, é imprescindível que se saiba em que dimensão da atuação política eles estão. Assim, o eleitor terá maior noção da realidade em que está inserido, o que o levaria a um maior discernimento para votar”.

Ao contrário do que pensa o deputado, o filósofo e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Cláudio Gomes acredita que a filosofia e a sociologia são suficientes para trabalhar esses temas. “Para esse conteúdo técnico não precisaria de ciência política, a sociologia daria conta em um mês”, aposta. Cláudio considera também que não há mais espaço no ensino médio para mais uma disciplina. “Ficar entulhando o ensino médio com mais disciplinas a cada ano é um grande erro. Mas não basta dizer que não há mais espaço: essas ideias partem sempre do princípio de que o conhecimento é apenas informação ”, afirma.

O professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e também do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional em Saúde da EPSJV/Fiocruz, Gaudêncio Frigotto, tem a mesma opinião. “Vamos inchando o currículo cada vez mais. Agora mesmo estava lendo no jornal uma reportagem que dizia que uma escola pública estava iniciando um projeto de educação financeira proposto pela CVM [Comissão de Valores Mobiliários], pelo Banco Central, pela Bovespa. Isso significa exatamente educar para novos acionistas. A história, a sociologia, a filosofia e outras disciplinas do ensino básico já dão um fundamento para entender o homem na sociedade e o homem dentro das relações sociais”, opina.

Para além da falta de espaço no currículo, Gaudêncio acredita também que há um equívoco na proposta do deputado de inclusão de ciências políticas no currículo do ensino médio. “Querer dar um curso de ciência política como técnica é um contra-senso em si. A política não é uma técnica, é uma relação social, de classes, uma arena de conflito numa sociedade de classes. A concepção que essa disciplina pretende passar sobre a política não é a única; é justamente a que busca alienar o estudante chegando à conclusão de que a política é coisa de especialistas e técnicos”, critica.

Para Gaudêncio, uma escola que tem uma proposta pedagógica de formação a partir de uma leitura crítica do mundo pode garantir a discussão política até em disciplinas como a matemática. O educador ressalta que matérias como história, sociologia e filosofia são mais gerais e apresentam conteúdos que são fundamentais, ao contrário da ciência política com o viés técnico apresentado no projeto de lei. “Mas também no caso dessas disciplinas, depende de como são ensinadas, porque também pode se ter uma sociologia tecnicista, por exemplo”, ressalva Gaudêncio.

Ao se pensar em incluir disciplinas no ensino médio, o professor considera que é preciso ter também a preocupação de não se fragmentar o conhecimento. “Isso pode nos distrair de que o campo do conhecimento é a unidade do diverso. Em um ângulo ou outro é preciso incorporar isso e o ensino médio tem que dar a base para entender as ciências da natureza e a ciência do homem. A história, a geografia, a filosofia e a sociologia são suficientes para dar essa base”, pontua.

Relação com o conhecimento

Para Cláudio, existe um princípio iluminista que, de forma geral, orienta as propostas de inclusão de disciplinas no currículo da educação básica. O caso específico de ciência política é, para o professor, que também é coordenador geral dos cursos técnicos da EPSJV, um bom exemplo desse princípio. “Quer dizer então que o fortalecimento do processo democrático nacional está na dependência de um conhecimento de ciência política? O projeto diz com isso que não há possibilidade de cidadania sem ilustração e isso é o endosso de um elitismo democrático que, a rigor, acaba com qualquer perspectiva democrática”, questiona.

O professor acredita que deve haver uma reflexão sobre a forma de se lidar com o saber. A prática mais comum hoje, na sua avaliação, é a que aposta que o professor sabe mais coisas e o aluno menos coisas, sem provocar, no entanto, o interesse do educando por construir o conhecimento. “A consciência parece ser, nesse caso, uma caixa vazia e o conhecimento uma transmissão de códigos. Não há muita diferença entre uma pessoa assim e um computador. Mas as pessoas não experimentam o conhecimento dessa maneira. O conhecimento é uma apropriação. E como torno meu o conhecimento que antes eu mesmo não tinha? Não é recebendo, é me apropriando, e essa apropriação não é simplesmente o acúmulo de alguma coisa”, define.

Para o pesquisador, a apresentação de um projeto de lei como o da inclusão de ciências políticas no currículo da educação básica pode ser uma boa oportunidade para se debater o que se pretende com o tipo de educação oferecida às crianças e jovens. “Vai se criando uma exigência absurda de que o jovem saiba tudo. E esses pressupostos iluministas já fracassaram, produziram este mundo contemporâneo que temos hoje, com uma educação que produziu muito mais barbárie do que qualidade civilizacional, muito mais obscurantismos e violências, do que uma humanização da sociedade”, opina.

Lugar da política

Os dois pesquisadores concordam que a escola é um lugar da política por excelência, mas não a política reduzida a um conhecimento técnico. Para Gaudêncio, é fundamental trazer esse tema da política como um conteúdo transversal. “Por outro lado, a escola deve dar base exatamente para o jovem ir se introduzindo na arena do debate da política. A política não como uma técnica, mas como uma relação de força, uma relação conflitante de interesses em jogo”, propõe.

O professor aposta que os projetos político-pedagógicos das escolas devem ter a preocupação de tentar fazer a leitura das forças que estão em disputa na sociedade. Ele detalha, como, na prática, a escola pode fazer isso. “Por exemplo, agora, ao longo das eleições, seria um momento muito interessante para ver que leitura o jovem tem de temas como, por exemplo, a percepção de que a imprensa se tornou um partido político. A escola é todo o tempo o lugar da política, mas com ‘p’ maiúsculo. O [Demerval] Saviani diz que a escola se torna política pelo conteúdo que ela ensina”, observa.

Para Claudio, a experiência política real dentro da própria escola também é papel fundamental na formação. Ele considera que há os espaços de exercício da participação política, como o grêmio estudantil, por exemplo, mas que a percepção do lugar da política não pode se restringir a apenas esses formatos de militância. “Temos que transformar a escola num espaço efetivamente político, de debate, onde o valor da democracia precisa imperar. Quando eu digo o valor da democracia, reforço que não é a democracia apenas procedimentalmente. A democracia precisa ganhar densidade cultural e isso significa ir além dos procedimentos, além do voto, além das instâncias de apelo aos direitos socialmente garantidos”, destaca.

 

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