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Crise no Inep coloca em risco políticas educacionais

Pedido de exoneração de servidores do Inep lança dúvidas sobre a realização do Enem, do Censo Escolar e sobre o cálculo do Fundeb, entre outras iniciativas. Para analistas, situação resulta da implementação de uma agenda de precarização do serviço público em nível federal
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 12/11/2021 13h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Às vésperas da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal forma de ingresso nas universidades públicas, o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC) responsável pela prova, enfrenta uma das piores crises de sua história. Ao longo da última semana, 37 servidores do órgão pediram exoneração, em meio a denúncias de assédio moral, desmonte das diretorias e sobrecarga de trabalho de servidores, entre outras, feitas contra a presidência do instituto.

A crise coloca em xeque a execução de inúmeras políticas educacionais brasileiras, uma vez que o Inep é responsável, além do Enem, pelo Censo Escolar, levantamento realizado anualmente e que fundamenta, por exemplo, a distribuição de recursos federais ao Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, principal mecanismo de financiamento da educação básica no país. Também é o Inep o órgão responsável pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), conjunto de testes e questionários realizados em larga escala a cada dois anos nas escolas da rede pública para aferir a aprendizagem dos estudantes, cuja aplicação teve início no dia 8 de novembro desse ano. O desempenho dos estudantes medido pelo Saeb, juntamente com as taxas de aprovação, reprovação e abandono apuradas pelo Censo Escolar, por sua vez, compõem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).


Servidores sobrecarregados e desvalorizados

A Associação dos Servidores do Inep (Assinep) divulgou uma nota no dia 4 de novembro alertando que “decisões estratégicas” adotadas no âmbito da presidência do Inep vêm colocando em risco o Enem, o Saeb e os censos da educação básica e superior realizados pelo instituto. Segundo Alexandre Retamal, presidente da Assinep, um dos principais problemas que levaram aos pedidos de exoneração é a “desconstrução” da área de tecnologia de informação do Inep, uma vez que a Diretoria de Tecnologia e Disseminação de Informações Educacionais (DTDIE) está sem diretor desde o final de setembro, quando Daniel Miranda pediu exoneração do cargo. “Atualmente lá há 11 servidores, que são responsáveis por 60 sistemas, não há quantitativo suficiente de pessoal”, diz Retamal.

Segundo a nota da Assinep, a falta de pessoal e a consequente sobrecarga de trabalho dos servidores lotados na DTDIE foram alguns dos motivos que levaram ao pedido de exoneração de Miranda. “Há uma falta de comprometimento da administração, querendo responsabilizar os servidores em diversos processos, especificamente no que diz respeito a aplicação de provas como o Enem, sem querer nem participar das equipes de tratamento de incidentes, que fazem a gestão de crises durante a aplicação das provas”, afirma Retamal, fazendo referência às Equipes de Incidentes e Resposta (ETIR), que historicamente são encabeçadas pelo presidente do Inep, segundo a nota divulgada pela associação, que denuncia que sob a gestão do atual presidente do Inep, Danilo Dupas, “o clima organizacional é de desconfiança, intimidação, assédio, perseguição e insegurança psicológica”. “Na maioria das reuniões, o Presidente exalta as facilidades e os resultados da iniciativa privada, em clara comparação ao serviço público. Todavia, embora se espelhe no mercado privado, tem apenas se esforçado em burocratizar processos e protelar e evitar as tomadas de decisão”, ressalta a associação na nota.

A situação é acompanhada com preocupação por entidades como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), que reúne as secretarias estaduais de educação. No dia 8 o conselho divulgou uma nota pedindo “mais atenção” do MEC na “condução das atividades do Inep”. “Lembramos que recentemente o Inep também não conseguiu apresentar à Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica os estudos determinados por lei para as decisões sobre a distribuição dos recursos”, alertou o Consed, fazendo a referência à comissão instituída pela lei 14.113/2020, que regulamenta o Novo Fundeb,  que em 2020 foi tornado permanente por meio da aprovação da Emenda Constitucional 108.  Composta por representantes do Inep, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Consed e da Undime, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, o órgão tem como uma de suas atribuições a especificação dos fatores de ponderação de cada etapa da educação básica para distribuição dos recursos via Fundeb. Segundo a nota do Consed, a falta desses estudos prejudicou a decisão de estados e municípios em 2021.

Também em nota, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Servir Brasil) lembrou que Danilo Dupas já é o quarto presidente do Inep durante a gestão de Jair Bolsonaro, período no qual também ocorreram sucessivas trocas de ministros à frente do MEC. “É lamentável a ausência de governabilidade na instituição”, destacou a nota. “Hoje, o Inep passa por uma crise por conta do assédio institucional. Essa é a tônica do atual Governo, onde (sic) coloca os servidores públicos e a ciência como vilões do país, enquanto degrada serviços básicos como a educação e a saúde”, concluiu o texto.

A perseguição às instituições produtoras de dados faz parecer que o governo não quer que a gente conheça a realidade do que está acontecendo no Brasil - Alexandre Retamal


Desconstrução organizada

A preocupação com relação à crise no Inep é amplificada pelo contexto em que ela ocorre. Primeiro por conta da pandemia de Covid-19, que como vêm alertando educadores ao longo dos últimos meses tem ampliado as desigualdades educacionais existentes no país principalmente devido às dificuldades de acesso às tecnologias necessárias para o desenvolvimento do ensino remoto. “Nossos estudantes já estão sofrendo uma série de violações do direito à educação em meio à pandemia e aos problemas recentes do Enem. Essa situação impactará não somente o Enem, trazendo novamente graves prejuízos, como também toda a pesquisa, os indicadores e os processos fundamentais que o Inep desenvolve no sentido de subsidiar a tomada de decisão e as políticas educacionais”, alerta Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Segundo ela, o país vive um “momento sensível” em relação à falta de diagnósticos precisos nas políticas sociais pela dificuldade em medir os impactos da pandemia, com um “impacto imenso” da não realização do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) previsto para 2020.  “Com essa série de interferências no Inep e flagrante descumprimento dos princípios basilares da administração pública, poderemos ter um impacto ainda maior na produção de avaliação e diagnósticos para as políticas educacionais, o que por consequência impede a formulação e implementação de políticas adequadas, o que gerará, por sua vez, ainda mais violações das diretrizes constitucionais e infralegais de garantia do direito à educação. Em palavras claras: poderemos ter lacunas imensas de dados, políticas públicas sem base alguma de diagnósticos, e violações gravíssimas de direitos para toda a população”, avalia Pellanda.

A crise institucional no Inep levanta paralelos com outro embate recente encampado por servidores de outro órgão da administração pública federal, também responsável pelo levantamento de indicadores essenciais para a formulação de políticas públicas: o IBGE. Realizado pelo instituto a cada dez anos e  previsto para acontecer em 2020, o Censo Demográfico foi adiado para 2021 por conta da pandemia de Covid-19, em meio a uma disputa que vem se desenrolando pelo menos desde 2019. Naquele ano o ministro da Economia, Paulo Guedes, indicou para a presidência do instituto Susana Guerra, que foi incumbida de cortar o orçamento do Censo – então em planejamento, com custo estimado em R$ 3,4 bilhões. Em meio a um embate entre o corpo técnico e a presidência do instituto, o orçamento acabou sendo reduzido para R$ 2,3 bilhões, por meio, por exemplo, da redução do número de perguntas do questionário.

Em março desse ano, no entanto, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2021, na qual os recursos previstos para o Censo foram reduzidos em mais de 97%. Redução que reflete cortes realizados durante a tramitação no Congresso e vetos realizados pelo presidente, e que não só impossibilitou a realização do Censo este ano como também ameaça inviabilizar o levantamento em 2022, segundo especialistas ouvidos pelo Portal EPSJV/Fiocruz.

“Tanto é possível fazer um paralelo entre o Inep e o IBGE que já está em tramitação no Senado Federal uma proposta de Emenda Constitucional para garantir a autonomia administrativa, funcional e orçamentária do Inep, do IBGE e do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]”, lembra Alexandre Retamal, completando em seguida: “São instituições produtoras de estatísticas, de avaliações, de monitoramento de políticas públicas no Brasil que já vêm sendo perseguidas há algum tempo, mas que nesse governo isso ganhou grande relevo. A perseguição às instituições produtoras de dados faz parecer que o governo não quer que a gente conheça a realidade do que está acontecendo no Brasil em termos de educação, de economia, de população e também de monitoramento de políticas públicas. É um processo de desconstrução organizado”, denuncia o presidente da Assinep. 

Vão ao encontro dessa leitura as críticas que vêm sendo levantadas por instituições que se mobilizam contra a aprovação da PEC 32/2020, a Reforma Administrativa, um dos principais itens da agenda do atual governo, que pretende aprová-la no Congresso até o final de 2021.  Uma nota técnica produzida em maio pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, por exemplo, alerta para o risco de desestruturação dos órgãos públicos em consequência da introdução das mudanças trazidas pela Reforma, como formas de contratação mais precárias. Assim, ao invés de contar com um corpo permanente e profissionalizado, os órgãos “podem passar a depender de uma força de trabalho com vínculos precários, sujeita a elevada rotatividade. Nesse cenário, é forte a tendência de as organizações se tornarem igualmente precárias, com graves problemas de perda de memória organizacional, dificuldades de planejamento, fragilidade da cultura organizacional, desenvolvimento profissional deficiente e elevada partidarização política”.

Para Andressa Pellanda, a “agenda de enxugamento do Estado” sendo implementada e defendida pelo governo atual, a exemplo da PEC 32, vem afetando diretamente os servidores. “Além de todas as problemáticas relativas a questões de precarização trabalhista, de ataques à estabilidade e de reverberações no desmonte dos serviços públicos, [essa agenda] traz consequências para a governança da gestão pública, que transfere seu foco do público para o privado. O Inep não passa ileso diante desse cenário”, argumenta.

Procurado, o Inep não respondeu à reportagem do Portal EPSJV/Fiocruz.