Os direitos humanos sempre devem estar atrelados ao direito à saúde. A conclusão, tirada da mesa 'Direitos Humanos, estigma e enfretamento de vulnerabilidade no contexto da saúde pública brasileira: dilemas atuais', mostrou que este problema não é de agora. Momentos históricos e marcantes na saúde tiveram mais destaque, como o cuidado com pacientes com tuberculose e com HIV. De acordo com a mesa, hoje, dois fenômenos têm aparecido como pontos centrais que merecem destaque na relação entre direitos humanos e a saúde: o cuidado com os usuários de drogas a as mulheres grávidas, principalmente, durante o parto.
O doutor em Psicologia Social e professor do campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Marcos Vieira Garcia, informou que um dos principais problemas neste tratamento com usuários de drogas é o desrespeito à alteridade. Para ele, o cenário que deve ser discutido para tratamento é a aceitação do uso da droga, das estratégias que assumem isso como pressuposto, como o caso da redução de danos, entre outras iniciativas. “Uma das coisas mais simples e de extrema importância que não vemos durante o tratamento é dar acesso aos usuários à informação e aos tratamentos consentidos”, relatou ele.
De acordo com Marco Garcia, a relação com o usuário de álcool e outras drogas deve transcender a técnica, além disso ele criticou os espaços de tratamento mais tradicionais da saúde pública. “Os Centros de Assistência (CAPs AD) sempre ficam no mesmo lugar e os usuários são móveis. Não estamos acompanhando os fenômenos que estão mudando. Temos que pensar as pessoas em situação de rua de maneira mais efetiva. Em Socoroca, temos um consultorio de rua que funciona muito bem no atendimento à população, mas não atende a população de rua”, contou.
Para ele, é preciso ainda debater esses assuntos com a população, que defende estes tipos de tratamentos mais tradicionais. “Um resultado de uma pesquisa mostrou que 90% dos brasileiros são a favor da internação compulsória. Isso é muito sério. A academia ainda não conseguiu pautar esta problemática para acabar com o senso comum”, refletiu.
A professora do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo (USP) Vera Paiva disse que a relação entre a estigmatização e os direitos humanos estão diretamente correlacionadas no âmbito da saúde, principalmente. “Atualmente a mulher vem sofrendo violências imensas, por conta da estigmatização. Podemos citar duas cenas clássicas: uma é a mulher em trabalho de parto, com a perna aberta, amarrada, anestesiada e coberta por um pano cheio de sangue que acorda quando ouve seu fiho chorar e não pode fazer nada porque está amarrada e ninguém tem o cuidado de explicar o que está acontecendo. Isto é uma cena de tortura que vivenciamentos cotidianamente. A outra cena eu vivenciei porque fui chamada para intervir. Uma mulher estava há três dias tentando fazer curetagem porque havia sofrido um aborto espontâneo e ninguém fazia. Ela estava cheia de febre, passando mal, e as enfermeiras que atendiam naquele local despistavam, passavam o caso para o próximo plantão. Só depois fui descobrir a razão. Aquelas enfermeiras eram formadas na mesma universidade e haviam ganhado bolsa de uma igreja evangélica à qual pertenciam. Então, o aborto era um pecado condenável”, lembrou Vera que concluiu: “A mulher está estigmatizada a ser mãe, ser virgem e sofrer por natureza, por isso naturalizamos esses cenários”.
Ela informou ainda que a política tem influenciado diretamente para reforçar esses estigmas e apontou fenômenos recentes: “O aumento da bancada fundamentalista tem agravado discussões das políticas públicas para a mulher. É importante deixar claro que nem todo evangélico é fundamentalista, mas o peso que esta bancada tem deve ser considerado. E há uma atuação proposital e articulada em todo o país”, disse, informando que no estado de São Paulo 70% das prefeituras têm presença da bancada evangélica.
A professora da USP lembrou ainda das ações do governo que mostram a perda de direitos na área da saúde da mulher. Um dos pontos críticos, segundo ela, é o Rede Cegonha, uma programa de assistências a mulheres, recém-nascidos e crianças. “Na década de 1980. brigávamos pela saúde da mulher, porque naquela época tínhamos apenas a saúde materno-infantil, a mulher não existia para a saúde pública se não fosse no momento de ser mãe. Agora, quase duas décadas depois, regredimos novamente e até o nome do programa é de mau gosto: Cegonha não faz sentido para a nossa cultura, para a nossa realidade, e a mulher, a sua sexualidade, está ainda mais distante”, opinou.
Aids
Vera Paiva apontou ainda um dado alarmente: o índice de contaminação da AIDS vem crescento entre a população jovem homossexual. De acordo com ela, sete em cada 100 jovens homossexuais que frequentam espaços de sociabilidade em Sâo Paulo têm AIDS. A professora disse que isso também se deve ao estigma à doença, e, em consequência, à falta de diálogo e informação nos espaços públicos. “Tenho feito uma grande briga para implantar discussões sobre sexualidade nas escolas, mas isso é uma batalha seríssima. Os pais acham que com esse diálogo vamos estimular a prática do sexo, as diretoras das escolas têm medo de se confrontar com pais que são religiosos, e com isso os jovens vão fcando sem o direito de saber. É impressionante que se você ligar a televisão existem novelas em diversos horários que mostram tudo isso”, relatou e acrescentou: “Em certas situações, tenho que fazer um trabalho quase que pedagógico com essas pessoas e pergunto: qual é a religião que você mais abomina? Imagina se líderes dessa religião te impedissem ou impusessem suas crenças nos seus espaços de convivência? O que a gente quer, ao trabalhar a sexualidade, é respeitar os valores dos outros, não é impor valores, e também não é ser promíscuo”.
Além da saúde
Filha do desaparecido política, Rubens Paiva, a professora da USP Vera Paiva, ainda fez um apelo: Meu pai era um Amarildo, tinha cinco filhos, trabalhava com construção civil, foi condenado vomo bandido quando desapareceu e hoje sabemos que ele foi vítima de uma repressão do Estado. Repressão esta que existe. Vamos acabar com essa história de que direitos humanos é direito para bandido, vamos acabar com essa noção forjada”, pediu e lembrou: “A AIDs voltou a crescer, a mulher está sofrendo na sala de parto, outros Amarildos virão. Vamos aproveitar esse momento eleitoral e cobrar isso”.