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Dois mundos, um planeta

O que dizem os empresários e entidades do setor privado reunidos no Fórum Mundial da Água e como o que foi discutido se vincula ao cenário atual do Brasil
Maíra Mathias (Enviada à Brasília) - EPSJV/Fiocruz | 16/05/2018 10h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Foto: Jorge Cardoso/8º Fórum Mundial da Água

Os ‘campeões’ subiram no palco, mas o auditório de quase 900 lugares estava praticamente vazio. Para não ficar mal na foto, as recepcionistas que se postavam na entrada do local saíram à cata das pessoas presentes, pedindo educadamente que mudassem de assento rumo à fileira central. Era véspera de 22 de março, quando se comemora o Dia Mundial da Água, mas o clímax havia passado. Mais cedo, o chefe de sustentabilidade da AB Inbev, Tony Milikin, tinha abandonado o painel do qual participava para chegar ao aeroporto a tempo do seu voo. Quem ficou, porém, só recebeu boas notícias.

Os organismos internacionais e empresas estavam no caminho certo. Bastava que continuassem a estabelecer metas e a monitorar seu progresso, como haviam feito nos três últimos anos, para que sua “ousada visão” de um futuro em que a humanidade vivesse dignamente com segurança hídrica se tornasse realidade. Era essa a mensagem que os ‘campeões’ – como se autodenominaram entidades como a Federação Internacional dos Operadores Privados de Água, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) – tinham para transmitir naquele fim de tarde com jeito de fim de festa. E assim se encerrou a sessão dedicada ao balanço das ações implementadas entre o 7o e o 8o Fórum Mundial da Água, que aconteceu de 18 a 23 de março deste ano em Brasília.

De fato, os que causam e os que sofrem os impactos ambientais parecem habitar dois mundos diferentes dentro do mesmo planeta. As empresas reunidas no Fórum anunciaram que estão fazendo um bom trabalho. Acreditam que se a água fosse valorizada como uma moeda, não seria desperdiçada. Mirando nos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, os ODSs, defendem mudanças nas legislações dos países para que se incentive mais a participação do setor privado no saneamento.


Urgência direcionada

Dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) a serem alcançados em 2030, um tem relação direta com a água. É o ODS 6, que visa assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos os seres humanos. E é com base nele que se articula uma argumentação justificada pela urgência. No Fórum, a todo momento os mediadores questionavam a plateia se seria possível atingir a universalização nos próximos 12 anos. As mãos levantadas em resposta indicavam que a maioria dos participantes estava pessimista em relação ao cumprimento da meta. Era a senha para sublinhar a importância da participação de ‘todos’ – mas, principalmente, do setor privado.

De acordo com o Conselho Mundial da Água, 4,5 bilhões de pessoas não têm acesso ao saneamento e 2,1 bi não têm acesso à água potável no mundo. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que será necessário investir US$ 1,7 trilhão para concretizar o ODS 6 – e esse valor superlativo não engloba nem os custos da operação, nem a manutenção dos serviços. A conclusão do FMI, hegemônica no Fórum, é que não será possível universalizar o saneamento sem a “ajuda” das empresas. “Precisamos que o setor privado embarque”, disse um representante da entidade no painel dedicado aos bancos de desenvolvimento, concluindo: “Para isso, precisamos que ele encare a água como uma oportunidade”. A receita do organismo inclui o “redesenho” das condições de retorno para o investidor. Em outras palavras, o aumento das tarifas. O mediador de outro debate e autor do relatório do Conselho Mundial da Água, Jon Lane, resumiu a linha de raciocínio: se as pessoas têm dinheiro para comprar um celular caro, então também podem pagar mais pelo saneamento.

Perguntada em outro painel sobre o que sua instituição está fazendo para atingir o ODS 6, a diretora do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), Marilene Ramos, afirmou que o país precisaria investir R$ 20 bilhões por ano até 2033 para universalizar o serviço. E embora tenha dito que os bancos públicos disponibilizam, hoje, um valor menor (cerca de R$ 12 bi), ela afirmou que o problema do Brasil não é financeiro: “A fonte não é o fator limitante. A capacidade de tomar o financiamento, sim”. Para Marilene, o essencial é a capacidade que as empresas têm de gerar caixa. “No país, 75% do serviço é prestado por companhias estaduais, 15% por companhias municipais e apenas 5% por concessionárias privadas”, disse, e defendeu: “É preciso modificar o quadro de atores”.

A Caixa Econômica Federal é a principal instituição a financiar o saneamento no Brasil, informou ela, acrescentando que dos R$ 85 bilhões do FGTS disponíveis em 2018, apenas R$ 6 bi foram para saneamento. “É porque a Caixa prefere habitação ou porque há incapacidade dos atores de tomarem o financiamento?”, questionou. Já no caso do BNDES, continuou, 45% do desembolso foi para apenas quatro companhias estaduais: Embasa, da Bahia; Copasa, de Minas Gerais; Sanepar, do Paraná; e Sabesp, de São Paulo (que é uma sociedade de economia mista, em que o estado detém 50,26% das ações, enquanto 49,74% estão em mãos particulares). O resto foi para as concessionárias privadas.

Perguntada no debate se não seria papel de um banco nacional de desenvolvimento assessorar e incentivar as estatais e questionada sobre o porquê de o BNDES recusar financiar obras importantes para municípios pequenos sob a justificativa de que custam muito barato, ela reforçou: “É preciso que o ente tenha capacidade de pagamento. No início dos anos 2000, quando estava fazendo doutorado, estudei tarifas de saneamento. Na época, os países desenvolvidos cobravam US$ 4 por metro cúbico de água e esgoto tratados, enquanto o Brasil cobrava US$ 1. Hoje, estamos em US$ 2. A nossa capacidade de gerar caixa para fazer tanto a operação quanto o excedente que banque o serviço de uma dívida é restrita. Daí se explica por que os recursos vão para o setor privado e mais dificilmente para municípios de 25 mil habitantes. Outra coisa é a crise fiscal brasileira, que traz uma limitação para que empresas estatais tomem financiamento”.


Mudanças à vista

Para o FMI, os países precisam “colocar seus marcos regulatórios no lugar” com reformas nas políticas nacionais de água e saneamento. Já o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) vai além: Henry Moreno, especialista da instituição, afirmou que de 15% a 25% dos custos adicionais dos projetos de saneamento vêm da corrupção – mas que nada menos do que 60% são consequência dos atuais marcos regulatórios. “Estamos trabalhando junto aos países para que isso mude”, informou.

No Brasil, essas mudanças começaram a caminhar a partir do governo Michel Temer. O primeiro ato do presidente foi editar uma medida provisória para criar o Programa de Parcerias em Investimento (PPI) que, no braço de saneamento, se voltou para o incentivo da substituição da gestão direta dos serviços por parcerias público-privadas e outros arranjos do gênero. O BNDES disponibilizou recursos para que os estados interessados tivessem acesso a consultorias que analisariam que forma de contratação empresarial deveriam optar. Ao mesmo tempo, nos bastidores o governo assinalou que faria uma remodelação no marco regulatório brasileiro. Segundo informações de fontes que acompanharam a movimentação, a ideia inicial, defendida pela Abcon – associação que representa as maiores empresas do setor, como Aegea, Águas do Brasil, BRK Ambiental, Suez e Veolia –, era que as mudanças fossem feitas por medida provisória. Mas a resistência interna de pastas como Planejamento e Meio Ambiente, e a grita das entidades que representam os prestadores municipais e estaduais, fizeram com que o governo optasse pelo caminho tradicional, via projeto de lei, embora numa tramitação em regime de urgência – que significa que Câmara e Senado têm 45 dias cada para examinar o texto. Caso contrário, o PL tranca a pauta do Congresso. “Estamos em estado de alerta. O envio desse PL pode acontecer a qualquer momento”, afirma o especialista em saneamento Luiz Roberto Moraes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A minuta do PL foi analisada por Abelardo de Oliveira, assessor da diretoria técnica da Embasa, a companhia estadual da Bahia, que vê risco de desestruturação do setor. Isso porque um dos principais vetores de alteração diz respeito à gestão associada de serviços públicos, prevista no artigo 241 da Constituição, regulamentado pela lei 11.107 de 2005. Em termos concretos, a legislação vigente assegura que o município, esfera administrativa responsável pelo saneamento, faça um contrato com uma empresa estadual ou consórcio público para que prestem o serviço em seu lugar. Nesses casos, não precisa haver licitação. E, em caso de privatização da estatal, o contrato é automaticamente extinto.

A proposta do governo muda tudo isso: as prefeituras que não quiserem prestar o serviço diretamente terão que realizar um chamamento público para verificar se existe interesse do mercado. Caso haja empresas privadas de olho na operação do serviço, o município será obrigado a fazer uma licitação. E, se uma companhia estadual for privatizada, os diversos contratos de gestão com as cidades que atende não serão cancelados, ao contrário: passam automaticamente para mãos particulares. Com isso, se ‘resolvem’ impasses como o da Cedae, companhia estadual do Rio, cuja privatização foi autorizada no ano passado. Quem comprar a estatal, na verdade, está de olho na operação dos serviços da capital, responsável por 87% do faturamento.

Essa última mudança vai impactar o desenho que dá sustentação à operação dos serviços de saneamento. “As companhias estaduais trabalham com a lógica do subsídio cruzado”, diz Moraes, dando o seguinte exemplo: a Bahia tem 417 municípios, a Embasa opera em 366 – destes, apenas 20 são superavitários e cobrem o déficit de 346. “À iniciativa privada interessa abocanhar as cidades que dão lucro, deixando o prejuízo com o poder público”, alerta.

Foi o que aconteceu no Tocantins. A empresa estadual Saneatins foi privatizada em 1998 – caso que até a data de fechamento desta reportagem, seguia como o único no país (a privatização da Cedae está suspensa graças à contestação judicial). A Empresa Sul-Americana de Montagens (Emsa) começou com a compra de 35% das ações, passando a ter o controle acionário da empresa em 2002. “E em 2010, a Emsa desistiu de operar em todas as cidades, ficando com 47 dos 78 municípios. O estado foi obrigado a criar uma autarquia, a Agência Tocantinense de Saneamento, para operar os serviços nas cidades que não interessavam mais à empresa”, conta Moraes. Esse acordo foi assinado em 2010 e, nele, o governo estadual concordava também em assumir o saneamento nas áreas rurais, justamente as mais custosas, em todos os municípios. À empresa coube só a área urbana de 47 cidades que abrigam 60% da população do estado.

Eis que no ano seguinte, a Odebrecht Ambiental comprou as ações da Emsa na Saneatins (76,3%), passando a controlar a companhia. E depois que o acordo assinado em 2010 foi efetivamente concretizado, em 2013, a Odebrecht partiu para a compra do restante da empresa (23,5%) que ainda estava sob controle do governo do Tocantins. A maior parte (70%) da Odebrecht Ambiental foi vendida em 2017 por US$ 908 milhões para dois investidores estrangeiros: o fundo canadense Brookfield e o grupo japonês Sumitomo. A empresa hoje se chama BRK Ambiental. Os 30% restantes pertencem ao FI-FGTS (Fundo de Investimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), administrado pela Caixa Econômica. Os negócios do FI-FGTS relacionados à Saneatins estão sendo investigados pela Operação Lava Jato e aparecem em delações premiadas como tendo como principal beneficiário o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ).


Cenário internacional

“Com a Lava Jato, muitas das grandes empresas que estavam no negócio da água acabaram vendendo ou se associando a grupos estrangeiros”, observa Luiz Roberto Moraes. Em 2015, a terceira maior empresa japonesa, Itochu, comprou 49% da participação da construtora Queiroz Galvão na Águas do Brasil, terceira maior concessionária privada do país. Matérias na imprensa dão conta de movimentações do capital chinês, espanhol e francês no Brasil. Os ventos parecem ser favoráveis para o setor privado por aqui.

Ao mesmo tempo, várias capitais importantes, como Paris e Berlim, passaram pelo processo inverso, com a volta da prestação direta dos serviços de saneamento pelo Estado. O processo, conhecido como remunicipalização, atinge 267 cidades em todo o mundo, segundo levantamento da Internacional dos Serviços Públicos (PSI na sigla em inglês). O país campeão é a França, com 106 casos, seguido por Estados Unidos, com 61 e Espanha, com 27.

No início de março, o ministro do Meio Ambiente do Reino Unido, Michael Gove, fez duras críticas à atuação do setor privado no saneamento e ameaçou estatizar os serviços caso o quadro em que as empresas “empurram com a barriga” os investimentos e têm, praticamente, “licença para imprimir dinheiro” não mude. “Isso aconteceu no país onde nasceu a privatização e foi dito pelo membro de um governo conservador: é um sinal para nós. Estão exportando um modelo derrotado para cá”, diz David Boys, do PSI. E acrescenta: “A remunicipalização é uma tendência porque os contratos são péssimos para a população. Uma prefeitura vai assinar uma vez um contrato de concessão de 25, 30 anos. Já as empresas firmam milhares de contratos, assessorados pelas maiores consultorias do mundo. Não é preciso adivinhar quem sai ganhando”.

Por isso tudo, Leo Heller, relator especial da ONU para o direito à água e ao saneamento e pesquisador da Fiocruz, acredita que o governo brasileiro está errado. “Quais são as evidências que o governo tem para dizer que esse é o melhor caminho? Que estudos acadêmicos indicam tomar a contramão da tendência mundial de remunicipalizar os serviços? É uma decisão ideológica sem sustentação científica e empírica. O diagnóstico talvez não esteja incorreto – temos problemas e muito por fazer – mas o remédio da privatização é equivocado”, afirma. 


Por trás do Fórum

Foi na década de 1990, junto com o embalo da agenda ambiental no mundo, que o tema da água começou a chamar atenção. A abordagem que nasceu e se hegemonizou, contudo, é bastante específica e trata o meio ambiente como “recurso” a ser “gerido” segundo a racionalidade econômica. Dessa forma, a água se transformou em “recurso hídrico”. O Conselho Mundial da Água, que promove o Fórum, foi criado em 1996. Em sua tese sobre a entidade, o pesquisador Rodrigo Espinoza, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), o define como “mais uma peça” a compor a narrativa predominante, junto com Banco Mundial, FMI e outras instituições vinculadas às cartilhas de privatização dos serviços de saneamento. Mas, também de acordo com ele, a organização tenta se distinguir das outras e funcionar como um “guarda-chuva” para o debate da água no mundo. E, por isso, Espinoza considera que há dois discursos em jogo: o explícito e o implícito. O Conselho precisa se posicionar publicamente como um espaço aberto ao debate e à ampla participação da sociedade, e, ao mesmo tempo, fazer avançar a ideia de que a água é um ativo econômico.    

“O nome engana, dá a entender que se trata de um órgão ligado à ONU, quando é uma ONG criada para colocar em pauta a agenda das corporações. As pessoas não têm influência nenhuma, trata-se de um ambiente de negócios que é vendido como um espaço político democrático onde vai se discutir a questão da água em nível mundial. Não tem nada de neutro, não tem nada de técnico; é o lócus de uma agenda política do mercado”, considera Luiz Roberto Moraes.

Em entrevista ao jornal Valor (30/01), o brasileiro Benedito Braga, que desde 2012 preside o Conselho – e também é secretário estadual de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo –, afirmou que o Fórum “não é um evento onde há uma ideologia já estabelecida e pretende fazer proselitismo em torno de determinado ponto” e que é “absolutamente equivocado” pensar no evento como um espaço dominado pelas empresas. “O Fórum é uma plataforma onde se discutem ideias”, disse. Entre os três membros fundadores do Conselho, figura René Coulomb, à época vice-presidente de uma das maiores empresas do setor do saneamento no mundo, a francesa Suez, que tem negócios nos cinco continentes do planeta.

Em 2010, as Nações Unidas reconheceram o acesso à água potável como um direito humano (embora tenha sido uma votação marcada pela ausência ou abstenção de 70 países, incluindo os mais influentes). Desde dezembro de 2016, o saneamento ganhou o mesmo status. A discussão de fundo é se, diante disso, a água pode ser tratada como uma commodity ou se, sendo condição essencial à vida no planeta, deve ser vista como um bem comum. “Ainda se discute em Genebra, na Comissão de Direitos Humanos da ONU, como esse direito vai ser exercido. Se será um direito fundamental, como a liberdade, ou um direito humano econômico e social. E aí existe uma questão relacionada aos custos”, disse Braga na mesma entrevista, como quem não assume uma posição. 

Contudo, não há muito espaço para o contraditório no Fórum oficial. E a sua programação é recheada de discussões que partem do princípio de que a água deveria ser uma espécie de moeda. É famosa a defesa do presidente da Nestlé, Peter Brabeck, que vincula projeções de falta de água no mundo à “necessidade” de dar valor financeiro a ela, pois, monetarização levaria a um menor desperdício. Por isso, as organizações ligadas à visão da água como bem comum optam não por ocupá-lo, mas por fazer um evento paralelo, o Fama – Fórum Alternativo Mundial da Água, na mesma cidade, no mesmo período.

“Nos horroriza que organismos das Nações Unidas e governos de todo o mundo emprestem credibilidade ao Fórum como uma plataforma para a tomada de decisões ao participarem do evento”, escreveu Maude Barlow, conhecida ativista canadense e uma das vozes que pressionou a ONU a aprovar a resolução da água como direito humano, em carta pública em que explica sua recusa a aceitar o convite do Conselho para participar da etapa ‘cidadã’ do evento em Brasília. “As corporações multinacionais cujas ações são responsáveis pela destruição das bacias hidrográficas e pela negação do acesso à água às populações mais vulneráveis não devem ser recompensadas com um assento na mesa de decisões”, disse ela.

Movimentos sociais e empresas têm diagnósticos muito diferentes sobre a água. Enquanto os primeiros denunciavam no Fama os episódios mais recentes de contaminação de rios causados pela mineração no país, as últimas lançavam uma carta-compromisso com a segurança hídrica, tornando possível que, em um mesmo dia, a multinacional Anglo American aparecesse em dois contextos absolutamente distintos: como responsável pelos vazamentos de minério de ferro no rio Casca em Santo Antônio da Grama (MG) e como uma das signatárias da iniciativa de sustentabilidade dos empresários. 

Mas nem a realidade pode com o otimismo corporativo que reinou no Fórum Mundial da Água. “As empresas sozinhas não podem fazer tudo”, disse Marina Grossi, presidente da CEBDS, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, ao lançar a carta. Assinada pela Anglo e outras 17 corporações, o nível de comprometimento não era, digamos, total. Basta concordar com dois dos seis compromissos e a empresa se torna signatária. Fundado em 1997, o CEBDS reúne 54 empresas, como Monsanto, Aegea, Coca-Cola, Ambev, Arcelor Mittal, Braskem, BRK Ambiental, Eletrobrás, Heineken e Unilever. 

“Qual é o papel das empresas? É sobre liderança e inspirar”, sentenciou o chefe de sustentabilidade da AB Inbev, Tony Milikin, frisando que não é bom negócio água poluída. “Estamos dando um passo além”, anunciou, por sua vez, Henrique Braun, presidente da Coca-Cola Brasil, detalhando: “Estamos abrindo nossas fontes de água cristal para a população, comunidades vizinhas das nossas fábricas”. 

Para o pesquisador Gerardo Cerdas, analista de políticas da Action Aid, que assistiu a vários painéis do Fórum, por trás da máscara de sustentabilidade e responsabilidade social, estão as práticas de sempre. “O modelo de desenvolvimento continua o mesmo e tem como vetor a apropriação dos bens comuns da natureza pelo capital, para usufruto das corporações. As relações sociais continuam iguais e reproduzem de uma nova maneira a mesma relação histórica de exploração que tem como um de seus muitos resultados o acesso desigual à água potável de qualidade e ao saneamento”, reflete.

O evento, analisa Gerardo, é mais uma prova de que o capitalismo está tentando se reinventar. “O sistema está passando por uma crise muito grande. E isso significa não apenas reinvenção no modo de acumulação, mas legitimação que passa por incorporar ao jargão um conjunto de conceitos como economia circular, economia verde e agora as ‘soluções baseadas na natureza’. Nós da sociedade civil, dos movimentos sociais não deveríamos passar ao largo disso, mas entender melhor, de uma maneira crítica, o que está sendo feito em termos de remodelagem do capitalismo. Essa tentativa de deixá-lo, digamos, mais ‘potável’ para a população”.


Rumo ao mercado de água?

Desde dezembro passado, tramita no Senado um projeto de lei que cria o mercado de água no país. De autoria de Tasso Jereissati, o PLS 495 permitiria a empresas comprarem e venderem as outorgas de água concedidas pelos estados, no caso das águas subterrâneas. A notícia acendeu o alerta: será possível privatizar o Guarani e outros aquíferos? A apropriação das águas brasileiras por grupos econômicos já existe, esclareceu Ricardo Hirata, vice-diretor do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo (Cepas/USP), num debate do Fama que discutiu o PLS 495. 

O Guarani é o aquífero mais conhecido, mas o país tem vários outros, inclusive com maior volume de água, caso de Alter do Chão, que fica na Amazônia. Mas o Guarani está sob regiões economicamente dinâmicas, como Sudeste e Sul do país, estendendo-se por uma área de 1,1 milhão de km2. “A qualidade da água é excelente em quase toda sua extensão. É um corpo d´água confinado por rochas que o protegem de contaminações”, ensinou Hirata. O Guarani tem seu próprio tempo. “Se você liga o cronômetro a partir do momento em que a água infiltra, na borda norte do Guarani, e acompanha seu curso até que chegue à cidade de São Paulo, terão se passado 120 mil anos. E para chegar ao outro extremo do aquífero, 400 mil anos. Só temos uma oportunidade de retirada dessas águas e isso deve ser feito com inteligência”, afirmou.

De acordo com Hirata, a privatização de um corpo d´água desse porte tem várias dificuldades. “A impressão que dá é que alguém terá a propriedade do aquífero. Mas quem quiser ter esse controle teria que monitorar todos os usuários”. E isso não é fácil, explica ele, devido ao grande número de poços irregulares no país. A estimativa do Cepas é que existam 1 milhão dessas instalações, e que de 60% a 70% sejam ilegais. O artigo 26 da Constituição de 1988 prevê que os aquíferos são bens dos estados. Para mudar isso, seria necessário aprovar uma PEC. Outra dificuldade é que, segundo a política nacional da água, o abastecimento de populações é o uso prioritário desse bem. A legislação teria de ser mudada também.

“Mas tem um ponto interessante: embora privatizar seja praticamente impossível, e tenha um custo político de mudar a Constituição, a verdade é que já existem formas de ter acesso e controle econômico das águas subterrâneas. Basta o empreendedor apresentar um ‘bom’ estudo para obter uma outorga”, disse Hirata. E emendou: “Se você tiver qualquer tipo de empreendimento, bebidas, é muito fácil ter a outorga de um ou vários poços. Então por que privatizar?”.

A resposta, diz ele, é que hoje o empreendedor pode fazer uso da outorga concedida pelo poder público mas não pode vendê-la ou alugá-la. “Ou seja, um agricultor com disponibilidade de água poderia vender sua concessão a quem oferecer o maior preço. Não será o agricultor vizinho, mas uma indústria instalada por ali. Isso é a mercantilização da água”, explicou. Segundo o PLS 495, em momentos de crise hídrica, seria possível cancelar as outorgas. “Isso abre um horizonte de judicialização. Se o empresário decide instalar uma fábrica em algum lugar e, para garantir a operação, compra todas as concessões de água do local, o que acontece se o Estado decide suspendê-las? Quem vai pagar os milhões investidos?”, questionou Hirata.

A assimetria de poder político e capacidade econômica já foi demonstrada na crise hídrica de São Paulo, quando a Sabesp continuou dando descontos para grandes consumidores, como shoppings, enquanto cortava água nas periferias. No Fórum, uma história contada por um diretor da Braskem ilustra bem os riscos da criação de um mercado de água no país.

A empresa brasileira, maior produtora de resinas termoplásticas das Américas, com faturamento de R$ 55 bilhões em 2016, tem 41 plantas industriais espalhadas por Brasil, Estados Unidos, Alemanha e México. Jorge Soto, diretor de desenvolvimento sustentável, disse que a empresa tem uma análise que inclui nada menos do que 149 cenários de riscos climáticos a suas operações. Nas 29 fábricas do Brasil, a escassez hídrica foi o principal problema identificado. Com isso, a empresa decidiu que cada cenário de alto risco deveria ser acompanhado pela ação necessária para mitigá-lo. Trata-se de um plano de adaptação de longo prazo, que mira 2040, e chega ao nível de investigar quem são os consumidores de água das bacias hidrográficas onde as fábricas estão instaladas. Segundo ele, por mais que a Braskem planeje, como não tem o controle total da bacia, muitas vezes outros consumidores se tornam variáveis imprevisíveis. Não é difícil de imaginar como companhias desse porte podem se beneficiar da criação de um mercado que lhes permita, via compra de outorgas, ter previsibilidade para suas operações.

As transformações no saneamento e na água preocupam os movimentos sociais e entidades ligadas à sociedade civil que, juntas, lançaram no dia 25 de abril um observatório nacional para acompanhar um cenário cada vez mais dinâmico. “É uma luta muito grande, mas precisamos construir formas de produção do conhecimento para sair da bolha e informar a sociedade para, quem sabe, daqui a algumas décadas, ver difundida uma forma de pensar a questão da água diferente de sua apropriação enquanto mercadoria. O Fórum Mundial e o Conselho que organiza o evento estão, a cada edição, alargando sua influência sobre chefes de Estado, ministros, parlamentares...”, conclui Luiz Roberto Moraes.

“Atingimos plenamente nosso objetivo”, disse, por sua vez, Benedito Braga, o presidente do Conselho Mundial da Água, no encerramento da edição brasileira do evento. O próximo Fórum acontece no Senegal, em 2021, e tem como tema a segurança hídrica.

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O Ministério Público Federal (MPF) e do Estado do Pará (MPPA) apresentaram na segunda-feira (26/03) um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) à empresa norueguesa Hydro para que ela apresente ações emergenciais para diminuir os riscos e danos causados pela refinaria Hydro Alunorte, em Barcarena, no Pará. Em fevereiro, moradores da região denunciaram o que era até então uma suspeita de vazamentos de rejeitos de bauxita, utilizados na produção de alumínio, em rios da região. Vazamentos que foram inicialmente negados pela empresa, mas que foram confirmados por um laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC) divulgado no dia 22 de fevereiro. Nele, o IEC afirma ter identificado altos índices de alumínio e chumbo em amostras de água dos rios da região. Com base nos resultados, o Tribunal de Justiça do Pará determinou que a empresa suspendesse sua produção pela metade e proibiu o funcionamento de um dos depósitos de rejeitos da mineradora, o Depósito de Rejeitos Sólidos nº 2, que estava em pleno funcionamento, de maneira irregular, uma vez que a empresa possui apenas o licenciamento para testes. Ainda assim, a Hydro Alunorte atualmente briga na Justiça para retomar suas atividades. Nesta entrevista, concedida durante o Fórum Alternativo Mundial da Água, Mario Assunção do Espírito Santo, quilombola, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e morador de Barcarena, descreve os impactos para o meio ambiente e para a saúde das populações das comunidades da ilha atingida pelo vazamento de rejeitos de bauxita causados pela Hydro, e denuncia que os vazamentos são corriqueiros na época de chuvas na região.
A cidade de Correntina, no oeste da Bahia, ganhou as manchetes dos jornais no final do ano passado, depois que mais de 10 mil pessoas – cerca de um terço da população do município – saíram às ruas para protestar contra o uso da água de rios para irrigação de grandes propriedades rurais da região. O protesto aconteceu nove dias depois que um grupo de mil pessoas ocupou uma fazenda, a Igarashi, que os moradores acusam de ser responsável pela queda na vazão de rios da região, principalmente o Arrojado e o Correntina. Segundo as comunidades ribeirinhas e de fundo de pasto, a fazenda vem extraindo muito mais água do que permitem as outorgas concedidas pelo órgão ambiental baiano, o Inema, para irrigação de culturas extensivas como soja, café e algodão. Os moradores acusam o Inema de falta de fiscalização sobre a extração de água da região, que vem gerando conflitos com as comunidades da área. A maneira como a ocupação foi retratada pela mídia e por políticos da região, que acusaram de “vândalos” e “terroristas” os trabalhadores que participaram da ação na Fazenda Igarashi, foi o estopim para o ato que tomou as ruas da cidade. Nesta entrevista, realizada durante o Fórum Alternativo Mundial da Água, que aconteceu de 17 a 22 de março em Brasília, a moradora de Correntina e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Andreia Neiva, fala sobre os conflitos pela água na região, que segundo ela vêm de longa data, e envolvem, como em muitas outras fronteiras de expansão do agronegócio no país, grilagem de terras, assassinatos de lideranças camponesas e ribeirinhas e o desrespeito aos territórios de populações tradicionais.
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No Dia Mundial da Água (22 de março), o engenheiro sanitarista Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, aponta que o manejo das águas é um dos determinantes sociais da saúde. “Do ponto de vista das políticas públicas, seria importante estar claramente prescrito na Constituição Federal, nas constituições estaduais, na lei de saneamento básico e nos planos municipais de saneamento, que assim como a saúde, a água é um direito de todos e é um dever do Estado provê-la de forma adequada. Considerar a água enquanto direito e não como mercadoria se faz cada vez mais necessário, diante da crise hídrica e das diversas formas, atualmente em curso, de privatização das águas, um componente de iniquidade em saúde. E diante da crise econômica, política e ambiental, vejo com grande preocupação a atual restrição dos recursos públicos para a saúde e o saneamento, mesmo em uma situação de crise sanitária em decorrência da zika. Nesse sentido, considero urgente resgatar o ideário de um projeto de país que precisa se sustentar pelos 4 Rs: reforma sanitária, reforma urbana, reforma agrária e reforma hídrica”, destaca. Em comunicado divulgado no dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que há um forte vínculo entre sistemas de saneamento deficientes e o surto atual do vírus zika, assim como a dengue, febre amarela e chikungunya, todas doenças transmitidas por mosquitos. Segundo o comunicado, além de buscar soluções tecnológicas, os governos também devem lembrar do péssimo estado de acesso à água e ao esgotamento sanitário das populações menos favorecidas.