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Escolas rurais no Brasil: um retrato

Demandas e projetos para escolas de zonas rurais são discutidos por movimentos sociais, trabalhadores, estudantes, pesquisadores e poder público
Leila Leal, Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2010 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Raquel Torrres

Segundo dados do Censo Escolar de 2009, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), há no Brasil mais de 80 mil escolas de educação básica localizadas em áreas rurais. A situação estrutural dessas escolas, a oferta dos variados níveis e modalidades de ensino, a elaboração de seus projetos político-pedagógicos, a formação e valorização dos profissionais que nelas atuam, sua relação com crianças e jovens acampados e assentados da reforma agrária e muitos outros itens são tema de debates constantes entre pesquisadores, constam da pauta de reivindicações de movimentos sociais do campo e são objeto de políticas públicas elaboradas pelo Estado.

Essas questões motivam, por exemplo, a organização de crianças e jovens do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os chamados Sem-Terrinhas realizam encontros e atividades periodicamente para discutir as formas de luta pela terra e por uma educação de qualidade no campo e, neste ano, realizam sua Jornada Nacional na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). No contexto de discussão das pautas da Jornada, que acontece em outubro, a revista Poli traça um panorama da situação das escolas rurais no Brasil. Dados nacionais, projetos de políticas públicas, pesquisas acadêmicas e reivindicações de movimentos sociais são complementados com a apresentação da realidade encontrada nas escolas rurais, acampamentos e assentamentos da reforma agrária dos municípios de Piraí, Nova Iguaçu, São Francisco de Itabapoana e Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, visitados pela reportagem.

Cenário nacional

Se os dados do Censo Escolar de 2009 apontam a existência de mais de 80 mil escolas localizadas em áreas rurais no Brasil, a Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pnera), realizada em 2004 pelo Inep e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), demonstra que apenas 8.679 atendem a alunos residentes em assentamentos – sejam elas localizadas nos próprios assentamentos ou em seu entorno. A mesma pesquisa, que é a que traz dados específicos mais recentes sobre a educação em assentamentos, aponta que no Brasil cerca de 980 mil estudantes integram uma população assentada que ultrapassa 2,5 milhões de pessoas.

Os dados também evidenciam as limitações da oferta dos diferentes níveis e modalidades de ensino nas escolas que atendem aos estudantes assentados: enquanto 84,1% delas oferecem o primeiro segmento do ensino fundamental, apenas 26,9% têm o segundo segmento e 4,3% o ensino médio. No que se refere à educação profissional, os índices são ainda mais baixos: 0,2% dessas escolas oferecem educação profissional na modalidade de formação inicial e continuada, e 0,3% a educação profissional de nível técnico. 

Outra questão que se destaca no cenário nacional das escolas rurais e que não se restringe à realidade dos acampamentos e assentamentos é o fechamento dos estabelecimentos de ensino. Em reportagem publicada na Agência Brasil em julho deste ano, Mônica Melina, coordenadora do curso de licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília, afirmou que entre 2005 e 2007 foram fechadas oito mil escolas rurais no Brasil. Armênio Schmidt, diretor de Educação para a Diversidade da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC), explica que dados como esse, também utilizados pela Secad, são obtidos através da leitura do Censo Escolar. “O Inep tem um código para cada escola, e através do Censo é possível averiguar se permanecem funcionando ou não. Mas nós não temos dados oficiais. E isso mereceria uma pesquisa sobre as razões do fechamento dessas escolas, que são as mais variadas possíveis”, diz.

Em muitos casos, fecham-se as escolas rurais com o argumento de que a demanda de alunos é pequena. Entretanto, de acordo com o Sindicato dos Profissionais da Educação (Sepe) de Campos, uma das cidades nas quais o poder público municipal fechou escolas rurais, este argumento não pode ser válido. “Já consultamos o MEC diversas vezes sobre isso e não existe um número mínimo de alunos para que se mantenha uma escola”, diz Graciete Santana, diretora licenciada do sindicato. Como afirma a educadora Roseli Caldart, se a educação é um direito humano, o acesso a ela tem que ser facilitado. “Ter acesso à escola não pode ser uma coisa extraordinária, que precise mover céus e terras, andar quilômetros, usar transporte para ter acesso. O acesso à escola tem que ser uma coisa ordinária na vida”, afirma.

 

Reivindicações dos movimentos sociais

É preciso que os estabelecimentos de ensino tenham projetos que se relacionem à realidade dos alunos do campo e, especificamente, dos assentados da reforma agrária

“Falta de estradas; não temos transporte escolar; não temos salas de aula; não temos material didático (lápis, caneta, papel, mesa, cadeira, bolas, etc.); faltam atividades culturais e esportivas e está acontecendo fechamento de escolas nas nossas áreas”. Esses foram os principais problemas apontados na carta aprovada no XI Encontro Estadual dos Sem Terrinha do Rio de Janeiro, realizado em 2008. As resoluções do Encontro, que reuniu crianças de todos os acampamentos e assentamentos do estado coordenados pelo MST, expressam questões de abrangência nacional. O fechamento de escolas em áreas rurais, a falta de estrutura nos estabelecimentos de ensino e em seu entorno e a carência de projetos político-pedagógicos elaborados a partir da realidade do campo são problemas apontados pelos movimentos sociais, trabalhadores da educação e reconhecidos pelos governos.

Segundo Armênio Schmidt, há um esforço de valorização das escolas do campo que se materializa através de uma série de programas específicos: “Desde 2007, as escolas do campo recebem 50% a mais da verba do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que destina um valor específico por aluno para as escolas da educação básica. E, neste ano, foi implementado o PDDE Campo, que destina R$ 12 mil às escolas do campo que oferecem o primeiro segmento do ensino fundamental e têm até 50 alunos. Ainda atuamos através do Plano de Ações Articuladas para, junto aos estados e municípios, evitar o fechamento das escolas do campo”, disse, destacando que a intenção da Secad é transformar esses programas específicos em uma Política Nacional de Educação do Campo.

Acompanhe, abaixo, a situação da educação nas zonas rurais do Norte Fluminense, Nova Iguaçu e Piraí, visitadas pela reportagem.

Raquel Torres

Norte Fluminense: vizinhos, mas diferentes

Depois de um grande engenho, dobra-se à direita, e depois de passar por um pequeno povoado, chega-se à estrada de terra. Pergunta-se a um e a outro onde é a localidade chamada Floresta e depois onde é Cajueiro, local onde se encontra o assentamento Zumbi 5. Em um descampado se avista uma pequena casa verde e branca onde está escrito: “Escola MST”. Na porta, a diretora Leidemaria, junto às duas funcionárias Marlene e Wilma, esperam a reportagem. A escola existe há nove anos e está localizada na zona rural do município de São Francisco do Itabapoana, no norte fluminense.

Raquel TorresEstudam ali 23 crianças com idades entre cinco e 12 anos – filhos dos assentados do Zumbi 5, um dos cinco assentamentos resultados da desapropriação das terras da antiga usina açucareira São João. A escola funciona em cinco cômodos: uma sala onde fica a direção, três salas de aula e uma cozinha, além de dois banheiros. Apesar de pequena, é bem organizada e bonita. “É preciso conhecer a realidade de cada escola, de cada região, eu não posso chegar de fora e colocar a minha visão”, comenta Leidemaria Pereira, que é professora da rede municipal de São Francisco do Itabapoana e está na escola desde que foi inaugurada.

Durante dois dias do último mês de julho, a Revista Poli pôde acompanhar um pouco das atividades da Escola MST e também como estudam as crianças e jovens dos assentamentos e áreas rurais próximas ao Zumbi 5. De acordo com o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) – Núcleo Campos, só em 2010, foram fechadas mais de 12 escolas rurais em Campos dos Goytacazes. O Sepe denunciou o fato ao Ministério Público. “Fizemos algumas vistorias nas escolas e, na verdade, a demanda existe. Alguns alunos têm que se deslocar por uma distância muito grande para conseguirem estudar. O município deixou de investir há muito tempo nestas escolas”, afirma Ângela Barbosa, diretora do Sindicato.

A Secretaria Municipal de Educação de Campos confirmou o fechamento de 11 escolas e, por meio da assessoria de imprensa, declarou: “As escolas foram desativadas por uma série de razões, tais como difícil acesso, não possuir transporte, falta de professores e orientadores pedagógicos, e prédio necessitando de reformas”. Ainda de acordo com a secretaria, todos os alunos foram transferidos para outras unidades de ensino da rede municipal; em dois dos casos, as novas escolas estão distantes dois e três quilômetros das unidades desativadas. A Secretaria não informou a distância dos locais de moradia dos estudantes até as outras 14 escolas para as quais foram transferidos, mas, segundo o documento protocolado pelo Sepe junto ao Ministério Público, há situações nas quais crianças estão tendo que se deslocar 12 quilômetros. “Quando o município toma uma atitude como esta, dizendo que fechou porque as escolas estavam precárias, está assumindo uma desobediência da lei. É um desrespeito profundo com a infância, porque é preciso trabalhar com sua cultura, favorecer ao máximo a permanência da criança e não colocá-la no ônibus para uma hora de viagem até a escola. Quando o município faz isso ele tenta cumprir a lei burlando os requisitos educacionais e da infância. Desta forma, se está quase condenando estes estudantes a uma evasão escolar”, questiona a pesquisadora Isabel Brasil, doutora em educação e diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Segundo a Secretaria Municipal de Educação de Campos, há 104 escolas rurais no município. Destas, apenas 20 oferecem o primeiro e o segundo segmento do ensino fundamental. Em 81 delas, só há o primeiro segmento. “Este número não é suficiente, percebemos que a demanda é muito maior do que a oferta em todos os níveis. No caso da escola de segundo segmento, que também é atribuição do município, ela não está ali. Inclusive, existe muita demanda de Educação de Jovens e Adultos, porque os jovens não conseguem se deslocar para estudar em outros locais, e também por se inserirem no mercado de trabalho terminam evadindo. Só mais tarde com 16, 17 anos, quando percebem que vão precisar de qualificação e começam a fazer outros projetos de vida é que buscam a escola novamente para o Educação de Jovens e Adultos e aí esbarram em outro problema porque também não há escolas suficientes de EJA para atendê-los”, detalha a professora licenciada do Sepe, Graciete Santana. Ela lembra que o município de Campos tem o menor Índice de Educação Básica (Ideb) do Estado do Rio.

Multissérie no Zumbi 5

As aulas na escola MST começam às 7h30, com um café da manhã, e terminam às 11h30. Os estudantes também almoçam na escola. O corpo administrativo da instituição é composto por quatro pessoas: a diretora, duas merendeiras e mais uma professora. De acordo com Leide, não existe evasão na unidade e os alunos faltam pouco. A escola oferece educação infantil e as séries iniciais do ensino fundamental. Na primeira sala, estudam as crianças da educação infantil e nas outras duas se dividem os alunos do fundamental. A escola trabalha com multissérie, ou seja, alunos de séries diferentes em uma mesma turma. “No 2º ano, só temos dois alunos, no 3º ano, apenas um aluno, então, não tem como acabar com a multissérie”, diz.

Para Roseli Caldart, do setor de educação do MST, o modelo multisseriado não é o ideal, mas, segundo ela, o Movimento também não vê nas séries uma boa proposta para a educação. Ela explica que a educação por ciclos etários tem sido trabalhada com bons resultados em algumas escolas de assentamentos e escolas itinerantes. 

Leide conta que neste ano, a escola recebeu um material didático novo, do programa Escola Ativa, do Ministério da Educação. Ela mostra os livros e elogia o material por ser mais próximo da realidade dos alunos. “O que víamos nos livros didáticos? Apartamentos, carros. Eles têm que conhecer os assuntos da cidade, mas do campo também. Alguns exemplos falam de hortas, cooperativas agrícolas”, observa.

Para a diretora, é importante que os estudantes consigam estudar no campo, já que na cidade, muitas vezes, existe uma visão distorcida da realidade rural. De acordo com Leide, a ampliação da escola para atender as outras séries é um desejo das crianças e dos pais do assentamento. Ela acredita ser viável que a escola continue a oferta de ensino, desde que o prédio seja adequado com melhores condições para receber os alunos – a estrutura atual já é bastante apertada.

Entretanto, de acordo com a secretária municipal de educação de São Francisco do Itabapoana, Iara Nogueira, não existe a possibilidade de o segundo segmento ser implementado no Zumbi 5. “É algo totalmente inviável, mesmo porque teríamos que ampliar a escola e manter dez professores para menos de 30 alunos. Aí depois o próprio aluno não vai querer ficar mais lá: é o que acontece nas outras localidades. Como o nosso município oferece transporte em todo o município, ele acaba indo para outras escolas”, diz. Isabel Brasil, no entanto, acredita que a relação é inversa: é a não oferta da continuidade dos estudos no campo que favorece o êxodo rural. “O jovem está saindo dali porque quer melhores condições de vida, inclusive escola, isso denuncia que não há uma política de fixação do jovem no campo na qual a questão da educação é central, bem como da cultura e geração de emprego”, alerta.

Sem escola no Zumbi 4

Enquanto no Zumbi 5 as crianças podem estudar dentro do próprio assentamento – pelo menos enquanto estão no primeiro segmento do ensino fundamental –, no Zumbi 4, a poucos quilômetros dali e onde vivem cerca de 136 famílias, existe uma escola abandonada. A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro informou que a Escola Estadual Bartholomeu Lysandro oferecia até 1996 o antigo primário (primeiro segmento do ensino fundamental) a 53 estudantes. Em 1997, a escola parou de funcionar e os alunos foram matriculados em outras instituições.

De acordo com os moradores do local, a escola atendia aos filhos dos trabalhadores da antiga usina São João. A assentada do Zumbi 4 Viviane Ramiro lembra a história de uma moradora do local que foi aluna da instituição e precisa pegar o histórico para comprovar a conclusão do antigo primário, mas não consegue. “A justificativa para não reabrirem a escola é a de que há pouco aluno, mas não são tão poucos. O transporte escolar que leva para a cidade sempre dá problema, sem falar na qualidade do ensino lá que é terrível. Tem gente que está na 5ª série e não sabe escrever o nome”, reclama Viviane.

De acordo com a Secretaria de Educação do estado do Rio, os históricos dos antigos estudantes da escola desativada foram levados para as instituições para onde foram transferidos. No caso dos alunos que não continuaram os estudos, os documentos podem estar na coordenadoria regional da educação localizada em Campos. Ainda segundo a Secretaria Estadual, reabrir a escola não é uma prioridade, já que o primeiro segmento do ensino fundamental, que era oferecido antes do fechamento, desde a LDB é considerado responsabilidade prioritária do município.

Raquel TorresEnquanto o poder público não cria condições para que a escola do Zumbi 4 funcione, os próprios assentados, com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Projeto Mova-Brasil, mantêm uma escola de Educação de Jovens e Adultos no período noturno: é a Escola Popular Zumbi dos Palmares. Para as aulas, é utilizada uma parte do antigo prédio abandonado da escola. A iluminação na sala é precária, o quadro foi doado pelo Cefet de Campos, alguns dos bancos pela CPT e a mesa pela própria comunidade. Em dias de aula e outras atividades, os bancos da igreja próxima também são emprestados para a escola.

Viviane explica que o Mova-Brasil, um projeto da Petrobrás de estímulo a habilidades de leitura e escrita, é responsável pelo pagamento dos professores e pelo material didático utilizado durante as aulas, das quais participam cerca de 20 alunos. Em outros turnos, também funcionam na escola oficinas de artesanato e um grupo de teatro. Thamires, Marcell, Natália e Jéssica, do coletivo de teatro, já têm duas peças de teatro montadas – uma que conta a história de Zumbi dos Palmares, que dá nome aos assentamentos, e outra sobre o itinerário dos cortadores de cana. Trata-se, segundo Isabel Brasil, de uma mobilização que preenche o vazio da falta de atenção do poder público. “O Estado deveria perceber que se trata de uma denuncia contra a ausência de políticas para o campo”.

Marimbondos tomaram conta da escola

Do lado oposto da rodovia ao que ficam os assentamentos da antiga usina São João (Zumbis 1, 2, 3, 4 e 5), uma estrada leva ao acampamento do MST Madre Cristina e ao assentamento Dandara. É neste caminho que fica a Escola Municipal Flor de Maio, pertencente ao município de São Francisco do Itabapoana. Segundo os trabalhadores rurais do acampamento e assentamentos próximos, a escola está fechada desde 2008.

O mato já está grande o suficiente para cobrir quase toda a frente da escola. Os desenhos pintados e gravuras de papel com letras e números afixados nas paredes revelam que ali já houve atividade escolar e não faz muito tempo, mas os marimbondos tomaram conta do prédio. São tantos, que praticamente impedem a entrada no local. Os trabalhadores rurais contam que a escola foi furtada duas vezes, o que teria feito com que a prefeitura desistisse de manter as aulas ali.

De acordo com a secretária de educação do município, Iara Nogueira, a escola já estava desativada quando a gestão atual assumiu o governo e não há planos para reativá-la, já que o número de estudantes próximos à escola é pequeno e o transporte escolar os leva para outras localidades. Para ela, mais cedo ou mais tarde, o estudante terá mesmo que sair do campo. “Sabemos que ele um dia terá que sair desta escola. Principalmente o que identificamos é que os alunos não querem estudar nestas localidades, querem ter o convívio com outras pessoas e hoje uma das grandes funções da escola é socializar”, argumenta. Viviane Ramiro, educadora da escola popular do Zumbi 4, alerta para o risco desse pensamento, que naturaliza o êxodo rural. “Às vezes, até a escola de dentro do assentamento não garante uma boa formação. Muitos professores dizem: ‘ah, vocês têm que estudar para saírem daqui’. Para muitos deles, ser desenvolvido é ser da área urbana”, critica.

Para Roseli Caldart, o número de alunos também não pode ser um argumento para se fechar uma escola. “É evidente que há um prejuízo se há uma socialização pequena com turmas de cinco, quatro alunos. Este não é o nosso ideal de educação, mas é preciso analisar isso de um ponto de vista maior: o que está acontecendo neste local para ter tão poucas crianças? O que temos discutido enquanto Movimento é que a análise não pode ser estritamente econômica, administrativa. Há situações em que o fechamento da escola representa, do ponto de vista da comunidade, uma perda que é mais do que a questão da escola, que é uma perda de referência”, analisa.

Há cerca de 30 estudantes no acampamento Madre Cristina, no assentamento Dandara e nas redondezas. Ana Carolina Pereira, de 16 anos, está cursando o 3º ano do ensino médio em uma escola de São Francisco do Itabapoana. A estudante toma o ônibus escolar e faz baldeação em Floresta, povoado mais próximo do acampamento. De lá, segue para São Francisco. Na volta, Ana Carolina não pode se descuidar do tempo porque corre o risco de não conseguir pegar de volta o último escolar que sai de Floresta em direção ao acampamento às 12h15. “Já aconteceu de eu perder o ônibus e ter que vir andando: demorei umas quatro horas e meia”, conta a estudante. Ana Carolina relata que na escola da cidade os outros alunos são curiosos sobre a condição dela de acampada. “Ser Sem Terra não é vergonha. Às vezes algum colega diz: ‘ah, vocês estão invadindo’. Aí eu explico: ‘não, a gente está ocupando, é diferente”.

Em Nova Iguaçu, projetos esbarram em problemas estruturais

A luta das famílias do acampamento Campo Alegre, em Nova Iguaçu, baixada fluminense, remonta às primeiras mobilizações pelo direito à terra do estado do Rio de Janeiro, na década de 1980. Os trabalhadores que ocuparam uma fazenda da região, em 1984, serviram de exemplo para famílias de todo o estado, que iniciaram ocupações em outras regiões reivindicando o acesso à terra. No entanto, mais de 20 anos depois da ocupação de Campo Alegre, a situação das famílias que moram e trabalham no local ainda é indefinida.

Por mais que lotes de terra já tenham sido divididos e muitas famílias estejam instaladas na região há muitos anos, a emissão oficial de posse aos moradores ainda não aconteceu. Existindo praticamente como um assentamento, Campo Alegre ainda é definido pelo Estado como um acampamento, não sendo considerado oficialmente como uma das iniciativas de distribuição de terra da reforma agrária no Brasil. Além das implicações legais, essa situação tem reflexos também para a garantia dos direitos das famílias de Campo Alegre, que não têm acesso a incentivos e políticas públicas para o desenvolvimento da agricultura  destinados aos assentamentos como parte da política de distribuição de terras. Mas os problemas de reconhecimento legal não atingem apenas os moradores de Campo Alegre, e sim o conjunto da população rural de Nova Iguaçu. O Plano Diretor da cidade, aprovado em 1997, não reconhece sequer a existência de áreas rurais no município. Como o Plano Diretor é o instrumento oficialmente responsável por definir a existência ou não de áreas rurais, a população rural de Nova Iguaçu foi considerada inexistente. Somente em 2006 foi aprovada uma Lei Completar (n° 016) que revisou esse tema do Plano Diretor e voltou a reconhecer as áreas rurais do município. Atualmente, está em debate na Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu uma nova proposta de Plano Diretor da cidade, que confirma o reconhecimento dessas áreas.

Raquel TorresNo que se refere à educação, a situação de Campo Alegre combina avanços importantes com uma série de limitações. Dados da Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu mostram que, das 125 escolas da rede municipal, apenas 12 estão em áreas rurais, atendendo a quase 3 mil alunos. Das escolas rurais, apenas quatro recebem recursos do Programa Mais Educação, do governo federal, que incentiva a oferta de atividades complementares de esporte, lazer, arte, reforço escolar e outros. Isso porque uma das exigências do Programa é que as escolas tenham, no mínimo, 100 alunos, o que não é a realidade de dois terços das escolas rurais de Nova Iguaçu.

Nesse contexto geral, a situação de  Campo Alegre se destaca: o acampamento conta com uma escola em seu território, a Escola Municipal Campo Alegre, que oferece o primeiro segmento do ensino fundamental e tem 66 alunos – e, portanto, não é uma das contempladas com os recursos do Mais Educação. Num cenário nacional em que muitas escolas rurais são fechadas e diversos assentamentos não contam com escolas, a existência de uma escola em Campo Alegre é apontada como um avanço para a garantia do direito à educação. No entanto, os problemas enfrentados pelos alunos, pais, professores, funcionários e a comunidade do acampamento de uma forma geral fazem lembrar que a existência física de uma escola não é suficiente para a garantia plena do direito à educação.

Segundo Cláudia Lacerda, coordenadora político-pedagógica da escola, um dos principais problemas é o transporte: “A estrada é muito precária e, quando chove, os ônibus não entram aqui. A área do acampamento é muito grande para ser percorrida a pé e os alunos dependem de uma única linha de ônibus, que é do município de Queimados, que passa em horários definidos. Neste ano, os horários do ônibus não coincidem com os horários da escola, o que faz com que as crianças tenham que ir embora a pé”, conta. Ela ainda alerta para outra situação, que prejudica a implementação do horário integral, prevista pela prefeitura de Nova Iguaçu para todas as escolas da rede municipal, em Campo Alegre: “Tivemos que acabar com o horário integral porque temos problemas com o recebimento da merenda escolar. Isso inviabiliza a permanência das crianças aqui”.

Janete Aníbal, professora da escola, credita os problemas estruturais à falta de recursos. E pondera: “O argumento de que temos um número menor de alunos e que por isso teremos menos recursos precisa ser repensado. A realidade é que aqui não teremos o mesmo quantitativo de alunos de uma escola urbana, porque aqui a concentração de famílias é menor. Mas esses recursos são muito necessários para garantia da qualidade da educação aqui. Precisamos reformar o teto, porque a chuva cai dentro das salas de aula, mudar a fiação elétrica da escola, colocar novas portas, porque muitas não fecham, adquirir materiais que faltam e muitas outras coisas”, analisa.

Outro problema apontado é a ausência de oferecimento do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio na escola: “Os alunos têm que ir para Queimados ou outros municípios, e muitos acabam deixando de estudar. A secretaria de educação exige que comprovemos a demanda de alunos para passar a oferecer esses níveis de ensino, e solicita que façamos um levantamento do número de alunos que concluíram o primeiro segmento aqui. Estamos elaborando esse levantamento, mas isso não é suficiente. Há famílias que chegam aqui com crianças já no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio, que nem passam pela nossa escola. O levantamento deveria ser feito em toda a região”, diz Cláudia.

Mesmo diante das dificuldades, a educação em Campo Alegre tem avançado em alguns aspectos. Assim como na Escola MST, as duas professoras participam do projeto Escola Ativa, vinculado à Secad, que oferece formação aos profissionais de turmas multisseriadas da educação do campo e elabora materiais didáticos específicos para a realidade rural. Elas contam que o  Escola Ativa é positivo por apontar a formulação de um projeto de educação identificado com a vivência prática das crianças, e destacam o desenvolvimento da leitura e da escrita como uma das maiores necessidades dos alunos de Campo Alegre: “A partir da identificação dessa realidade, desenvolvemos na escola uma oficina de incentivo à palavra. Ela foi pensada principalmente para horário integral, mas hoje acontece também no horário regular com um tempo de  50 minutos  para cada turma. Trabalhamos textos clássicos e diversos gêneros, como cantigas de roda e outros. E a biblioteca fica aberta para que os alunos façam empréstimos. Eles podem levar os livros para casa e trazer uma semana depois”, conta Janete.

Política de Estado?

No contexto de omissão do Estado e precariedade para a garantia de direitos, iniciativas da sociedade em Campo Alegre acabam cumprindo papéis importantes. É o caso do Projeto Pequeno Lavrador, que existe na região há 12 anos por iniciativa de uma Organização Não Governamental alemã. O projeto, que funciona na parte da tarde, quando as crianças saem da escola, oferece aulas de reforço escolar, desenvolve atividades de agricultura e reserva um tempo para atividades lúdicas. Aparecida de Oliveira Santos, uma das professoras do projeto, destaca a importância de incentivo à agricultura na região: “Com a falta de recursos, muitos moradores não conseguem sobreviver apenas da agricultura e precisam procurar trabalho fora daqui. Queremos que as crianças aprendam a lidar com a terra, e que com isso possam incentivar seus pais a plantarem também”. Isabel Brasil lembra que situações como essa são comuns em todo o país e evidenciam uma questão de fundo: “O Estado deixa de fazer o seu papel e cada território resolve da sua maneira. Isso expressa a falta de política para a educação do campo, já que isso é uma função do Estado. É justo que a população tente resolver, porque não vai ficar esperando. Mas o Estado tinha que entender que esta iniciativa é uma reivindicação por escola”, avalia.

Piraí: assentamentos não têm escola

Em 8 de março de 2006, durante a Jornada Internacional de Luta das Mulheres organizada pelo MST e pela Via Campesina, trabalhadores ocuparam uma fazenda no centro-sul do estado do Rio de Janeiro, na área rural do município de Piraí. Depois de seis meses de ocupação, uma ação de despejo retirou os trabalhadores do local. A saída encontrada para continuar organizando as mobilizações pela terra foi montar um acampamento à beira da estrada. O processo de desapropriação da fazenda avançou e, no final de 2006, a área foi reocupada pelos trabalhadores sem-terra, que permanecem até hoje lá.

O local, chamado de Assentamento Roseli Nunes – uma homenagem à militante do MST morta em uma marcha pela terra no Rio Grande do Sul –, foi oficialmente desapropriado e hoje os trabalhadores discutem a organização dos lotes que compõem o assentamento. No entanto, mesmo depois da desapropriação da área e do início do processo de assentamento, as 45 famílias que moram e trabalham no Roseli Nunes ainda não contam com uma escola que as atenda. Segundo Marcelo Luiz de Souza, militante do MST e assentado do Roseli Nunes, a falta de escola é um dos mais graves problemas que expressam a precariedade material enfrentada pelos moradores do assentamento, mas não o único: “Desde que saímos da beira da estrada e voltamos para cá, enfrentamos muitas dificuldades. A falta de estrutura é geral: as casas são precárias, não temos energia elétrica e nem saneamento básico. E as nossas crianças não têm uma escola aqui no assentamento. Precisam ir estudar fora daqui”, conta.

A realidade não é muito diferente em uma área localizada a apenas seis quilômetros dali. Um outro assentamento de trabalhadores rurais sem-terra, o Terra da Paz, enfrenta dificuldades muito semelhantes às que foram relatadas por Marcelo. As famílias do Terra da Paz, que também não contam com uma escola na área do assentamento, iniciaram sua mobilização pela terra em 2004. A ocupação começou em uma fazenda localizada no município de Pinheiral, vizinho a Piraí. Quando uma ação de despejo retirou os trabalhadores de lá, a ocupação foi reorganizada em Piraí. Dessa vez, a luta obteve conquistas: há cerca de quatro anos, a área foi desapropriada e entregue às famílias pelo Incra. No entanto, segundo os trabalhadores, os problemas estruturais persistem: além da inexistência de escolas, ainda faltam os créditos agrícolas para obtenção de ferramentas, sementes para plantio e para construção das casas no Terra da Paz. Além disso, só neste ano de 2010, passados quatro da conquista da terra, foi iniciado o processo de parcelamento – a organização do espaço do assentamento.

As crianças do Roseli Nunes e do Terra da Paz estudam, hoje, em escolas cujo tempo de distância dos assentamentos varia de 30 minutos a 1,5 hora. Duas delas, a Escola Municipal Hugo Lemgruber Portugal e a Escola Estadual Coronel Camisão, ficam em Santanésia, um distrito de Piraí. A primeira oferece educação infantil e o primeiro segmento do ensino fundamental, e a segunda oferece o segundo segmento do ensino fundamental e o ensino médio. A outra escola frequentada por alunos do assentamento é a Escola Municipal Rosa Carelli, localizada no Varjão – um bairro de Piraí. Ela oferece o primeiro e segundo segmentos do ensino fundamental. Dados da Secretaria Municipal de Educação de Piraí evidenciam a demanda por escolas rurais na região: a rede municipal de ensino tem 20 escolas, sendo seis rurais e 14 urbanas. As escolas rurais atendem a 267 alunos, e as urbanas, a 5.384. No entanto, do total de alunos das escolas urbanas, 326 são moradores de áreas rurais que precisam deslocar-se até as escolas da zona urbana.

Transporte é problema

O transporte das crianças assentadas até as escolas, assim como a volta das escolas para os assentamentos, é feito através de ônibus disponibilizados pela prefeitura de Piraí. No Roseli Nunes, as crianças são buscadas e levadas em suas casas. Mas, no assentamento Terra da Paz, o transporte busca e deixa as crianças em um ponto único. O percurso entre o ponto de ônibus e as casas, que chega a um quilômetro e trezentos metros, é feito a pé pelas crianças.  E mesmo isso foi conquistado recentemente: até o ano passado, o ônibus não entrava no assentamento, obrigando as crianças a andarem até a beira da estrada para esperá-lo.

Segundo Rafaela, 13 anos, assentada do Terra da Paz e estudante da Escola Municipal Hugo Lemgruber Portugal, o problema persiste: “O ônibus só entra quando o tempo está bom. Quando chove e a estrada fica com lama, ele não entra no assentamento e temos que pegá-lo na estrada”, conta. E completa: “Normalmente, quando o ônibus entra, acordamos às 5h, e quando chove temos que acordar mais cedo ainda. Se atrasarmos um pouco, ficamos sem o transporte escolar. Aí precisamos pedir carona nos ônibus de linha. Seria muito melhor se tivesse uma escola aqui. É muito cansativo ir pra longe e acordar tão cedo assim”, avalia.

Joyce, de dez anos, também mora no Terra da Paz e estuda na mesma escola de Rafaela. Ela conta que as duas são da mesma turma, que reúne alunos dos quarto e quinto anos do ensino fundamental, e que, apesar de todas as dificuldades estruturais, gosta da escola e de estudar. “A nossa escola é pequena, e o pátio é pequeno também. Temos só três salas. As aulas de educação física acabam acontecendo na maioria das vezes no pátio, porque o campo, que fica fora da escola, tem muito carrapato. Acordo 5h para ir à escola, e fico cansada por acordar tão cedo. Mas a escola é maneira. Na minha sala, que tem 15 alunos, tem três aqui do assentamento. Mas é como se todo mundo fosse do mesmo lugar, nos damos muito bem”, explica.

Da construção do prédio à elaboração do projeto pedagógico

Uma conversa na sede do Assentamento Roseli Nunes com os trabalhadores do local foi suficiente para constatar não apenas a amplitude dos problemas enfrentados pelas famílias sem-terra, mas também das reivindicações por elas construídas. Marcelo lembra que a construção de uma escola não atenderia apenas às demandas dos assentamentos, mas também de famílias de pequenos agricultores da região que moram e trabalham muito perto dos assentamentos. Eles destacam, no entanto, que a escola a ser criada nessa área precisa estar integrada não apenas à realidade rural, mas também às especificidades dos assentamentos.

Simone, moradora do  Roseli Nunes e integrante de um de seus núcleos de organização – que dividem por áreas o funcionamento do assentamento –, explica que muitas vezes as escolas não estão adaptadas à realidade dos moradores dos assentamentos: “Temos um grande problema em relação aos trabalhos escolares. Os professores pedem que eles façam trabalhos em computador, de um dia para o outro. Aqui não temos nem energia elétrica, como as crianças farão esse tipo de trabalho?”, questiona.

Por esse motivo, as famílias explicam que as reivindicações não são apenas estruturais. Segundo elas, não basta construir o espaço físico da escola. É preciso que os estabelecimentos de ensino tenham projetos que se relacionem à realidade dos alunos do campo e, especificamente, dos assentados da reforma agrária. É o que explica Nelson, também assentado do Roseli Nunes e integrante de um de seus núcleos: “Quando falamos que queremos uma escola, dá a impressão de que estamos reivindicando um prédio. O problema vai  muito além disso.  A preocupação maior tem que ser com as pessoas que vão trabalhar nessa escola, com o que vai se ensinar nessa escola, com que método... Queremos um projeto comprometido com a construção de uma nova sociedade, que esteja inserido na realidade rural e problematizando questões da cultura camponesa”, sintetiza. 

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