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Fila única do SUS

Em um mês de lançamento, campanha Leito para todos + Vidas iguais fortalece debate no âmbito legislativo e na sociedade geral, mas enfrenta desafios, como a resistência da iniciativa privada, da ANS e a falta de dados para tomada de decisões
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 10/06/2020 13h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

A afirmação de que leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) são essenciais para salvar vidas, oriunda da campanha ‘Vidas Iguais’, da Itália, inspirou movimentos e pesquisadores a lançarem no Brasil a campanha ‘Leito para Todos + Vidas Iguais’ , que publicou seu manifesto há exatamente um mês (12/5). De lá para cá, a campanha recebeu apoio de mais de 40 entidades, como Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Justiça, Confederação Nacional de Municípios e pelo Consórcio Nordeste, transformou a pauta em seis projetos de lei que tramitam na Câmara Federal e um apresentado ao Senado, além de propostas protocoladas nas assembleias legislativas de estados como São Paulo,  Ceará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, tendo sido este último aprovado e sancionado pelo governador Romeu Zema (Novo/MG). Sobre o tema, foram apresentados também  dois projetos municipais, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Com mote principal de que o acesso a cuidados hospitalares durante a pandemia deveria ser universal e igualitário por meio do Sistema Único de Saúde, independentemente da condição socioeconômica e étnico-racial, a campanha se embasa juridicamente na Constituição, na lei orgânica do SUS e na lei da emergência sanitária, e defende que todos deveriam utilizar, a partir de uma fila única, todos os recursos disponíveis de saúde, sejam eles públicos ou privados.

Posição da ANS provoca reações

Apesar de o movimento estar em ascensão, a partir do dia 28 de maio, circulou na imprensa e nas redes sociais a informação de que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) havia publicado uma nota técnica (nº 4/2020), em que se posiciona contrária à requisição de fila única dos leitos de UTI, o que causou grande mobilização dos movimentos que apoiam a causa. A nota deixa claro que, com a aprovação da fila única, os consumidores de seguros de saúde se sentiriam desestimulados em  manter o pagamento de suas mensalidades. “Em caso de requisição dos leitos do setor privado de saúde para serem geridos pelas autoridades públicas de saúde, ou mesmo no caso em que requisições ocorram isoladamente, mas em volume tamanho que comprometam a capacidade dos hospitais privados de manterem os atendimentos aos consumidores dos planos de saúde, estes, mesmo tendo pago por anos suas mensalidades a fim de garantir acesso a serviços e estabelecimentos de saúde privados e específicos, poderão ver seu acesso impossibilitado, experimentando significativos prejuízos, ao arrepio de toda a legislação que vise lhes proteger”, argumenta o parecer, que também esclarece: “Como consequência da desassistência à saúde, é possível se inferir que o consumidor se veria desestimulado a manter o pagamento de suas mensalidades, o que poderia acarretar severo desequilíbrio econômico-financeiro de difícil reparação em todo setor de saúde suplementar”.

A origem do documento que circula nas redes é o site da ANS, encontrável na área de atas e documentos das reuniões, junto a  outros documentos utilizados como subsídio para a 11ª Reunião Extraordinária da Diretoria Colegiada  realizada no dia 27 de maio. Esse encontro tinha como intuito, entre outras pautas, discutir e responder ao pedido de consulta do Ministério da Saúde feito no dia 24 de abril sobre a Recomendação nº 26/2020 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que  incentiva gestores do SUS, em seu âmbito de competência, a requisitarem leitos privados, quando necessário, e procederem à sua regulação única para garantir atendimento igualitário durante a pandemia.

Como uma das reações, o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde (Geps) do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (GPDES), do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicou no dia 6 de junho um esclarecimento público intitulado ‘Documento da ANS contém erros’, que segundo o texto, pretendia esclarecer problemas de interpretação da legislação vigente mencionada no posicionamento da Agência. “A nota da ANS se ocupa, na sua maior parte, em rechaçar os dispositivos constitucional e legais que permitem o uso de leitos privados durante a pandemia, tentando demonstrar que essa previsão ameaçaria a segurança jurídica do setor de saúde suplementar e a manutenção da estabilidade econômica e financeira do mercado. Para isso, busca fundamentos em citações ‘de prateleira’ da área do direito e ignora argumentos baseados em conhecimentos e evidências da saúde. Termina, assim, por fazer divulgar uma peça retórica, vazia de conteúdos sanitários e repleta de convicções sobre a manutenção de negócios privados, fomentando ainda mais a segregação social no Brasil em meio a umas das maiores crises sanitárias da história”, afirma o esclarecimento.

No entanto, a ANS, ao ser procurada pela reportagem do Portal EPSJV/Fiocruz, informou que o documento que tem circulado não representa o posicionamento oficial da reguladora. Em nota enviada pela assessoria de imprensa, ela informa que foi um equívoco a interpretação da validade dessa nota. “É importante esclarecer que em reunião de Diretoria Colegiada realizada em 27/05/2020, de maneira eletrônica, o posicionamento aprovado foi o expresso no voto elaborado pela Diretoria de Gestão, que teve a aprovação dos diretores de Normas e Habilitação dos Produtos; de Normas e Habilitação das Operadoras; e de Fiscalização. Veja aqui o Voto nº 11/2020/DIGES, aprovado por maioria. O documento ao qual os pesquisadores referem-se no artigo divulgado é a nota técnica elaborada pela Diretoria de Desenvolvimento Setorial, que teve apenas um voto”, informa. Tal informação foi publicada no site da Agência no dia 28 de maio, em matéria de cobertura sobre a 11ª Reunião Extraordinária da Diretoria Colegiada da reguladora.

Na nota aprovada por maioria, a ANS também não  endossa a recomendação do CNS. Segundo o texto, a hipótese de gestão unificada dos leitos públicos e privados, pela via da requisição administrativa dependeria de uma regulação que equilibrasse oferta e demanda, considerando diferentes fatores e variáveis de modo a ocupar leitos efetivamente ociosos. “Para tanto, seria necessária integração de um conjunto de informações que, no curto prazo, talvez não se viabilizasse, de modo que não parece nítida a evidência técnica da eficiência dessa medida. Diante de um contexto de instabilidade e insegurança quanto ao porvir, supõe-se a possibilidade de se amplificar a regulação judicante das demandas tanto por beneficiários de operadoras, quanto por usuários do SUS. Nesse campo, vale ter em mente que a judicialização da saúde, dada a natureza da função jurisdicional, debruça-se sobre casos concretos, pontuais e isolados, impedida, pois, de visão sistêmica típica política pública, de modo que, apenas por essa razão, haveria o risco de se percorrer o caminho da iniquidade de acesso”, explica.

“A posição final da agência continua sendo muito ruim”, opina Mário Scheffer, coordenador do Geps/USP e um dos grupos responsáveis pelo esclarecimento público 'Documento da ANS contém erros'. Em nota publicada hoje (10/6) pelo Geps/Usp e Gepeds/UFRJ com o título ‘Sobre a Contestação da ANS ao Esclarecimento Público de Pesquisadores’, os pesquisadores afirmam que, embora sua resposta  avaliasse, de fato, o teor da nota técnica, o texto que recebeu o maior número de votos da diretoria colegiada reproduz os mesmos traços de ameaça da NT, ao insinuar que uma gestão coordenada de recursos estratégicos afetará o acesso de beneficiários a outras necessidades de saúde. “Ou seja, que a cooperação do setor privado com o SUS, em um contexto de emergência de saúde pública, é desaconselhável. Na sua posição final, a ANS acentua que poderão faltar leitos aos clientes de planos de saúde no futuro e deixa de lado, por considerar irrelevante, as mortes no presente”, afirma o texto assinado por pesquisadores.

Outras vozes

Para a professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e membro da Rede Solidária em Defesa da Vida de Pernambuco Bernadete Perez essa pressão que alega falta de embasamento legal tem sido recorrente. No entanto, afirma a pesquisadora, a campanha tem respaldo na Constituição, na lei orgânica da saúde e na lei de emergência sanitária e em leis que permitem a contratação de leitos privados quando necessário pelo setor público. “A questão é que o setor privado tem se recusado a ceder leitos ou aderir a editais, como em Pernambuco. É curioso pensar sobre essa resistência porque tem prerrogativa de uma indenização justa a ser pactuada entre os gestores estaduais e a iniciativa privada”, reflete e completa: “Enquanto queremos salvar vidas, o setor privado quer salvar as cifras”.

Em artigo publicado na Folha de São Paulo ‘Por que a fila única é a saída para salvar vidas?’, no dia 5 de junho, Bernadete, junto com os pesquisadores Anielle Franco, Fabiana Pinto, Leonardo Mattos e Marcelle Decothé, indicam que a própria ANS mostra em boletim que as receitas das empresas não foram afetadas pela pandemia, nem a inadimplência e a sinistralidade. “O que diminuiu foram despesas e taxa de ocupação hospitalar: 51% com a Covid-19 e 47% com outros agravos. Mesmo assim, o lobby empresarial busca barrar a fila única, mascarar suas insuficientes contribuições e a falta de transparência sobre o que se passa nos leitos de UTI privados”.

O sanitarista, pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ e membro da campanha Leitos para Todos Leonardo Mattos em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, informa que  a posição da ANS tem levado em conta apenas o lado da iniciativa privada. “A agência levantou, de fato, a bandeira dos prestadores privados e dos planos de saúde e adentrou nessa briga agora se posicionando contra a fila única. A justificativa é de que traria problema econômicos como a inadimplência. O que está em risco é a vida das pessoas e é muito sintomático e muito preocupante que a ANS demonstre uma preocupação maior com situações hipotéticas de pagamento ou não de mensalidades”, avalia.

Apagão de dados também nos leitos

No meio da discussão de dados sobre mortes por Covid-19, a falta de dados efetivos sobre a quantidade de leitos existentes no país e os disponíveis para doença também é uma questão que requer atenção - sobre isso, leia mais em 'Leitos exclusivos para Covid19' e 'Público e privado: contradições na estratégia de combate à pandemia'. De acordo com recente levantamento publicado no boletim 9 na última sexta-feira (dia 5) pela Rede de Pesquisa Solidária formada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e outras instituições, a falta de dados dificulta a tomada de decisões, inclusive no âmbito da mobilização para fila única. A pesquisa, que se debruçou nos dados disponíveis nas plataformas públicas do Ministério da Saúde (MS) e de 26 secretarias estaduais de saúde, além do Distrito Federal, chegou à conclusão de que as informações disponíveis apresentam lacunas e disparidades enormes. “Essa falta de transparência impede uma avaliação precisa da capacidade de atendimento da população e da viabilidade de medidas de flexibilização que estão atualmente em curso”, indica a pesquisa.

Para ilustrar a inconsistência, o estudo mostra, por exemplo, que o Rio de Janeiro e Tocantins não apresentam nenhuma informação sobre o número de leitos de UTI Covid-19 em suas plataformas. Por outro lado, somente cinco entes federadosinformam o número total de leitos de UTI Covid-19, tanto do SUS quanto do sistema privado: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo e Sergipe. E que a taxa de ocupação deleitos UTI Covid-19 do SUS só é publicada pelos estados de Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina e Sergipe. “A inconsistência generalizada dos dados de UTI sugere que as sinergias entre o sistema público e o privado não estão sendo plenamente exploradas. E levantam também dúvidas relevantes quanto à eficiência das políticas em execução”, aponta o estudo em suas conclusões.

Para Bernadete, todas essas disputas levam a uma lentidão maior na tomada de decisão num momento em que a curva ainda é ascendente. “Está mais do  que claro e divulgado em vários lugares que nós temos uma subnotificação muito grande, além do atraso das notificações. É uma dificuldade muito grande ter acesso ao que está disponível. A campanha, além da fila única, reivindica organizar também os dados sobre leitos, exigir da iniciativa privada que ela disponibilize seus recursos”, indica.

Leonardo informa que alguns estados já estão pedindo para que esses dados sejam disponíveis. “É tudo muito obscuro. Em vários estados o Ministério Público tem feito ações nesse sentido, de pedir para que os dados estejam disponíveis, mas, mesmo assim, são dados imprecisos. A iniciativa privada faz de tudo para não dar essa informação porque a grande questão é que ela considera uma informação estratégica para o negócio, e não para a saúde pública, para a saúde da população”, denuncia.

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