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Formação docente para a Educação Profissional: falso consenso?

Debate abordou diferentes perspectivas sobre a formação de professores e trouxe à  tona necessidade de aprovação das diretrizes curriculares nacionais, paradas no Conselho Nacional de Educação
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 28/05/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Entre a política, a epistemologia e a tecnologia. Diferentes pontos de vista marcaram o debate sobre “Os desafios para a formação docente na Educação Profissional e Tecnológica, incluindo a mediação tecnológica”, promovido na quarta-feira, 27 de maio, pelo 3º Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica. A plateia lembrou a necessidade da aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação Docente na Educação Profissional e da implantação de uma política pública que abarque a questão. Segundo o conselheiro Francisco Cordão, presente no evento, há impasse sobre necessidade de formação específica para a área, o que revelaria um falso consenso em torno do tema.  

Participaram como debatedores, Eliezer Pacheco, secretário municipal de Educação de Canoas (RS) e ex-secretário da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC), Olgamir de Carvalho, da Universidade de Brasília (UNB), e Araci Hack Catapan, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Formação política

Para Eliezer Pacheco, o desafio da formação docente é político. Baseando sua reflexão na realidade dos Institutos Federais (IFs), ele relembrou a concepção que lançou as bases para a criação da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica e identificou o risco de abrir mão desse projeto na direção de uma mimesis da universidade. “Os Institutos Federais não são universidades. Isso não significa que são melhores ou piores; são outra institucionalidade que se propõe a outro papel na sociedade brasileira”.

Segundo Pacheco, os IFs foram criados pelo governo federal para subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas na esteira de um projeto de desenvolvimento centrado na inclusão social. Isso porque, afirmou ele, o governo não pôde contar com a universidade, cujo “discurso de autonomia” por vezes traria embutido “um descompromisso com a concretização das políticas do país”: “A universidade se distanciou da vida do povo. Costumo dizer que é como um Boeing sofisticado e confortável, voando a dez mil metros de altura”, ironizou. Eliezer Pacheco creditou esse “distanciamento” à penetração ideológica do neoliberalismo. “Ninguém ficou incólume a esse pensamento. Isso se reflete num certo individualismo pequeno-burguês que, na universidade, redunda em departamentalização e disputas internas”.

Contudo, lembrou, é a universidade que forma os professores dos Institutos Federais. Na avaliação do ex-diretor da Setec, esses docentes muitas vezes tentam reproduzir a lógica universitária. “A primeira leva de professores concursados dos Institutos muitas vezes entravam perguntando onde era o ’meu laboratório’, queriam realizar o ’meu projeto’. Acontece que o laboratório é do Instituto e o projeto integra uma concepção de desenvolvimento nacional”, disse. De acordo com Pacheco, a verticalização também provocava choques. Uma vez que os Institutos oferecem pós-graduação, bacharelado, cursos tecnológicos, técnicos, formação inicial e continuada, havia resistência em lecionar nos três últimos. “Não há demérito algum no fato de um doutor ser professor do Proeja, do Pronatec. Só pode dar aula no mestrado e no doutorado?”, questionou.

Nesse sentido, Eliezer Pacheco afirmou que a formação acadêmica não o preocupa. “Nossos professores precisam é de formação política, precisam entender que essa instituição não existe para satisfazer projetos individuais, mas para sustentar um projeto nacional de desenvolvimento que inclua milhões de brasileiros”.

Episteme própria

Se há um consenso em torno da necessidade de formação específica para os saberes da docência, hoje o debate gira em torno da pergunta: “há especificidade na docência da educação profissional?”. Para Olgamir de Carvalho, a resposta é sim. “É uma modalidade distinta, com uma forma própria de aprender e ensinar”. Reconhecendo que esse debate tem gerado questões importantes, mas respostas ainda inconclusivas, a pesquisadora parte da hipótese de que os professores que atuam nos IFs, quer sejam licenciados, quer sejam bacharéis, compartilham certa inadequação em relação ao campo da Educação Profissional e Tecnológica (EPT).

“De fato, a minha pergunta é se as licenciaturas respondem adequadamente à especificidade do exercício da docência na educação profissional”, disse, completando: “É um desafio fundamental compreender a epistemologia da EPT e suas consequências para a prática docente, até porque não vamos romper com o dualismo apenas com política. Isso pode virar retórica”.

Segundo Olgamir, a perspectiva epistemológica supõe “identidades do ofício ou profissão, singularidades dos modos de conhecer das diferentes disciplinas”. Essa perspectiva também iria além da história da educação profissional, vinculada à classe trabalhadora, ou das diferentes concepções e disputa, como a de que a educação profissional se destina a inserir gente no mercado de trabalho.

A pesquisadora parte de um modelo teórico que compreende quatro polos dessas profissões e especialidades técnicas, que seriam: tradição ou tecnociência; trabalhar com coisas ou pessoas. As profissões e especialidades técnicas mais tradicionais, como aquelas ligadas à produção artesanal e à arte, teriam em comum uma identidade resultante de um empirismo longo e compartilhado. Já os cursos da tecnociência teriam em comum a objetividade, a impessoalidade, o rigor metodológico. Situados em polos opostos estariam as profissões que envolvem o trabalho com pessoas, como os cursos da área da saúde, com valores que estabelecem cuidado, convívio, atenção; em contraposição à precisão técnica, raciocínio lógico, etc. “Obviamente, esses polos são um recurso didático que evidencia características singulares, com consequências pedagógicas das diferentes formas de lidar com o conhecimento”.

Recursos tecnológicos

Estudiosa da Educação a Distância (EaD), Araci Catapan defendeu que a formação docente da educação profissional precisa levar em conta as inovações tecnológicas no mundo da comunicação. “O que isso implica no cotidiano do professor? Conhecimento é mediação entre coisas, pessoas e escolhas: políticas e epistemológicas. Como utilizar essa inovação para avançar um pouco mais nessa inserção no mundo do trabalho, da produção da existência humana?”.

Segundo ela, “educação é essencialmente comunicação” e na metade do século 20, houve uma transformação radical no modo de comunicação. “Se mudou o modo de comunicação e o que faço, essencialmente, é comunicação, o que fazer agora?”, provocou. Catapan defende que em um período onde as relações são instantâneas, na velocidade de um clique, o “dilúvio de informação” precipitado pela internet impacta o acesso ao saber e o próprio “modo do saber”. E, consequentemente, transformam ensino e aprendizado.

“Há três poderes hoje: o Estado, o capital e a comunicação, sendo que o poder do Estado e do capital se alimenta do poder da informação. E quem alimenta as informações? Nós”. Segundo ela, a escola pode contribuir para a configuração de um contrapoder, discutindo a autonomia e escolhas diante do fluxo incessante de informações. Mas o problema estaria justamente nas instituições de ensino, que estão “de costas” para os recursos tecnológicos. “Quando se fala em tecnologias da informação, isso desinstala o saber como poder nas relações pedagógicas, desconstrói nossos modelos didáticos, coloca o professor despido na tela e isso nos assusta”.

E as diretrizes?

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Docente na Educação Profissional não foram lembradas pela mesa, mas estiveram presentes no debate. Domingos Leite Lima, professor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), observou que se existe um consenso sobre a necessidade de uma formação específica para a educação profissional. O Brasil nunca teve uma política para responder ao problema e há décadas trabalha na base de programas emergenciais. “Não existe regulamentação específica. Há 20 anos, a discussão está parada no Conselho Nacional de Educação (CNE)”.

Eliezer Pacheco afirmou que, quando ainda era diretor da Setec, o órgão enviou ao CNE uma proposta que envolvia licenciaturas, mas “desconhecia” os motivos da discussão não ter avançado. Já Olgamir Carvalho, afirmou existirem vários estudos que demonstram que a licenciatura geral não resolve o problema. “Nada é dito na licenciatura que abarque a educação profissional, e os professores que já atuam no campo se ressentem disso”.

Francisco Cordão, conselheiro de Educação Básica do CNE e relator do parecer sobre as DCN para a formação docente na educação profissional estava na plateia. Questionado pelo Portal EPSJV sobre em que pé está a discussão, Cordão foi sintético: “Desde 2008 o texto do parecer vai e volta. Já apresentei mais de uma dezena de versões. A última delas há um mês”. Segundo Cordão, contrariamente ao que se disse na mesa, o principal entrave para a aprovação das diretrizes é justamente a falta de consenso. “A academia não consegue ser convencida de que a educação profissional tem uma especificidade que requer uma formação docente específica”.