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Injustiças e distorções

Subsídio público aos planos privados e descompromisso da União com o financiamento da saúde são destaque do debate que denunciou um processo de desconstrução legal do SUS.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 03/12/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Apropriação privada do fundo público e desresponsabilização da União no financiamento da saúde: esse foi o fio condutor de um dos seis diálogos temáticos que aconteceram no segundo dia da 15ª Conferência Nacional de Saúde, como programação anterior aos grupos de trabalho. Intitulada ‘Direito universal à saúde, financiamento e relação público/privado’, a mesa contou com a participação de Ronald dos Santos, do Conselho Nacional de Saúde, Jurandir Frutuoso, presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) e Mauro Junqueira, presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems).

Ronald relembrou os trechos da Constituição Federal que tratam da saúde para mostrar que historicamente a luta tem se dado apenas em torno do artigo 198, que trata do financiamento. “Qual o destino do fundo público? E a quais interesses ele atende?”, perguntou, destacando que essas são as questões que precisam ser respondidas para se entender a falta de recursos para o SUS. Para começar, Ronald mostrou em números o quanto o modelo tributário do país protege os grandes empresários e penaliza o trabalhador. Segundo os dados apresentados, o sistema financeiro só contribui hoje com 2,1% dos tributos que formam o fundo público, enquanto a renda do trabalho entra com 25%. Por isso, alertou, não podemos, como “papagaios de pirata”, repetir o discurso do empresariado de que já existe imposto demais no Brasil. Segundo ele, é preciso entender como se forma o fundo público para impedir que os 65% da população que ganham até dois salários mínimos adotem as mesmas falas de uma minoria de cerca de 2% com renda superior a dez salários.

Público e privado
 
É exatamente em nome de grandes interesses privados que se está se dando, segundo o presidente do Conass, um processo de “desconstrução constitucional” do SUS. Segundo ele, três medidas atuais – duas já aprovadas e uma em tramitação – completam um pacote que asfixia o SUS e beneficia a saúde privada. Primeiro, disse, veio a Emenda Constitucional 86, que não só diminuiu ainda mais a participação do governo federal no financiamento do SUS como ainda tornou as emendas parlamentares obrigatórias, uma medida que, na sua avaliação, não só retira orçamento da saúde como onera o gestor local, que passa a ter que arcar com a despesa de custeio de hospitais construídos e outras ‘benesses’ que os parlamentares fazem por meio dessas emendas, sem que os gestores tenham pedido. No mesmo movimento, o Congresso Nacional também aprovou a entrada do capital estrangeiro na saúde, que beneficia grandes empresas com atuação na área. E, agora, tramita outra Proposta de Emenda Constitucional, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que torna obrigatória a oferta de planos de saúde privados pelos empregadores do campo e da cidade. De acordo com Frutuoso, uma medida como essa – que segundo ele certamente se apoiará em mais renúncia fiscal -, vai incluir cerca de 21 milhões de pessoas em planos privados. “Não é por acaso. Tudo isso foi negociado antes”, disse, destacando que todas essas mudanças, feitas diretamente na Constituição e por isso difíceis de serem revertidas, têm se dado em nome de interesses privados, contra o SUS. Relembrando a história do movimento sanitário, ele ressaltou que o SUS foi construído com um ideário socialista, “à moda” do Estado de Bem-estar Social europeu. O problema, destacou, é que o Brasil era um país capitalista, com um Congresso Nacional que representava isso muito bem. “Deram ao povo o sistema [de saúde] que nós pedimos, mas não deram o dinheiro”, explicou, exemplificando com cálculos segundo os quais o SUS sobrevive com pouco mais de um décimo do investimento público que existe no Canadá. “Nós valemos um décimo do que vale um canadense”, lamentou.

O presidente do Conasems mostrou, com números, que o SUS, universal e integral, sobrevive com um investimento de R$ 2,90 per capita por dia, o que totaliza R$ 1.063 por pessoa por ano, enquanto os planos privados dispõem de R$ 7,72 per capita/dia ou R$ 2.818 por pessoa/ano. “E tudo isso com isenção fiscal, empréstimo a juros subsidiados e sem cobertura integral”, ressaltou, conclamando as “lideranças” a atuarem junto ao Congresso Nacional para tentar frear a desconstrução do SUS que anda a todo vapor.

Quem paga a conta

A Emenda Constitucional 86 (do orçamento impositivo), que o presidente do Conass considera parte das mudanças que beneficiam o empresariado por enfraquecer o SUS, desonerou também ainda mais a União nos gastos com saúde. Mudando o cálculo do financiamento, a emenda, segundo os debatedores, fez com que a participação do governo federal no SUS seja menor em 2016 do que já tem sido nos últimos anos. A injustiça na distribuição de responsabilidades dos entes federados com o SUS, portanto, foi um dos problemas destacados por todos os integrantes da mesa.

De acordo com Mauro Junqueira, hoje municípios e estados estão investindo mais do que a exigência constitucional (15% e 12% respectivamente) na saúde, enquanto, para a União, “teto e piso são a mesma coisa”. É exatamente por isso, segundo Jurandir Frutuoso, que ainda não se sentiu tanto os efeitos da crise econômica na saúde. Mas isso vai mudar, garantiu, dizendo que esses entes federados já chegaram ao seu limite de gastos. “Estamos num ponto de não retorno”, concluiu.

A mesa de debates não deixou de situar todo esse problema crônico de subfinanciamento no contexto específico de uma crise econômica respondida com um ajuste fiscal. O presidente do Conasems explicou que os gestores da saúde estão preocupados ainda com o pagamento das despesas de dezembro deste ano. E que todo o esforço neste momento é para que a falta de repasse da União não aumente a insuficiência orçamentária de modo a comprometer os recursos para 2016. “O orçamento que nós estamos defendendo é para garantir o que tem hoje. Não dá para botar um leito a mais, nenhuma equipe de saúde da família a mais”, alertou.

O que fazer?

Como resposta mais imediata ao problema do financiamento da saúde, os debatedores destacaram a urgência de se aprovar a Proposta de Emenda Constitucional 01, um projeto de iniciativa popular, que formaliza as medidas defendidas pelo Movimento Saúde + 10. O principal ponto é uma nova mudança no cálculo de investimento da União, que passaria a ser responsável pela aplicação de 10% da sua Receita Corrente Bruta em saúde – hoje a base é a Receita Corrente Líquida, que é muito mais baixa. “A PEC 01 não é uma brastemp, mas é o que temos, o que já está discutido e aprovado em comissões do Congresso Nacional”, defendeu Mauro Junqueira, explicando que, se aprovada, ela traria imediatamente mais R$ 13 bilhões para o SUS. “É no Congresso que precisamos agir. Foi lá que aprovaram a Emenda Constitucional 86 e não o Saúde + 10”, disse.

O representante do Conselho Nacional de Saúde, Ronald dos Santos, destacou outras propostas que, junto com a defesa da PEC 01, formam as prioridades da Frente Nacional em Defesa do SUS, lançada em novembro deste ano. São elas a criação de uma contribuição sobre movimentações financeiras, nos moldes da CPMF, a taxação de grandes fortunas com destinação dos recursos para a seguridade social e a mudança da política econômica recessiva que está em curso.

No debate, o economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Áquilas Mendes – que, junto com Francisco Funcia, foi citado por todos os debatedores como uma referência para aquela discussão -, destacou quatro iniciativas que deveriam mobilizar imediatamente os delegados da 15ª Conferência Nacional de Saúde no seu papel de controle social. Uma é a proposta 25 do relatório que servirá de base para as discussões e votações da conferência, que trata da Lei de Responsabilidade Fiscal mas, nas opções de textos atuais, fala, no máximo, em “flexibilização” dessa legislação para a saúde. Ele defendeu que o texto votado pelos delegados fale em “eliminar” o limite de gastos com pessoal na saúde. “Não podemos cair na conversa do grande capital”, alertou. Outra sugestão foi incluir na proposta 57 o fim da renúncia fiscal de imposto de renda pessoa física e jurídica que hoje subsidia a aquisição de planos de saúde privados. Na proposta 60, ele lembrou da necessidade de se acrescentar a defesa do fim da Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo que permite ao governo manejar livremente 20% dos recursos da seguridade social. Por fim, Áquilas defendeu a importância de a Conferência se manifestar pela revogação da lei 13.067, que permitiu a entrada do capital estrangeiro na saúde. Ele sugeriu que se pensassem em formas de se fazer isso, já que não há qualquer referência a isso no documento que está sendo discutido e que, pelas regras estabelecidas, não pode haver propostas novas, que já não tenham vindo das etapas estaduais e municipais.