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Mais técnicos, mais saúde

Faltam trabalhadores técnicos no SUS e incentivo a estes profissionais, ao mesmo tempo em que sobram demandas para eles em todo o país.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 12/09/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

"Ele tem ensino superior em Enfermagem, acabou de passar pelo exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que precisava para exercer sua segunda graduação, o Direito, e hoje atua como técnico em enfermagem. Ele estava buscando outros caminhos e tinha na família estrutura para isso". 

"Ela já conseguiu terminar o ensino médio com muita dificuldade, após ter se separado do marido, e seguiu para o ensino técnico. Uma profissional competentíssima, mas só de ver a maneira como ela se expressa verbalmente, percebemos a tragédia que é o sistema de ensino no pa

Dois personagens completamente distintos e dois caminhos que se entrelaçam. Este é um pequeno exemplo do que é a realidade dos trabalhadores técnicos em saúde no Brasil, um misto de múltiplas realidades e necessidades compartilhadas. Entre as dificuldades a serem enfrentadas estão o levantamento de dados sobre estes profissionais, remuneração, valorização do trabalho e vínculo empregatício. Segundo o Ministério da Saúde (MS), cerca de 60% do corpo de trabalhadores da saúde é formado pelos técnicos.

Para as professoras-pesquisadoras Mônica Vieira e Filippina Chinelli, da Escola Politécnica da Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que relataram os casos acima, por conta da pesquisa ‘Trajetórias educacional e ocupacional dos trabalhadores técnicos em saúde no Brasil', em desenvolvimento por elas e outros pesquisadores da Fiocruz, esses profissionais são as peças-chave para a implantação dos programas de saúde pública e do Sistema Único de Saúde (SUS). "Quem coloca em prática a saúde pública e as prioridades que vêm sendo desenhadas são esses trabalhadores. Quando olhamos a Estratégia Saúde da Família, a Atenção Básica, do Norte e Nordeste, são eles que estão lá", opina Mônica e completa: "Não é à toa que a nossa pesquisa está focando em quatro categorias desses trabalhadores que são centrais: Enfermagem, Saúde Bucal, Agente Comunitário de Saúde e Vigilância em Saúde", informa. Esses trabalhadores, focos da pesquisa, representam 80% do quadro dos trabalhadores técnicos da saúde e a maior parte deles trabalha no sistema público, segundo as pesquisadoras.

O coordenador geral de Ações Técnicas em Educação na Saúde do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Deges/Sgtes), Aldiney Doreto, informa que um dos principais problemas dos trabalhadores técnicos do SUS é a questão do levantamento de dados sobre eles, mas, mesmo neste contexto, já existem problemas que são latentes e apontados pelos trabalhadores, pesquisadores e usuários do SUS. "O problema dos técnicos é muito parecido com o dos médicos em relação à distribuição. Nos grandes centros temos mais concentração deste tipo de profissionais e, no interior, faltam técnicos por uma série de motivos", explica.

De acordo com o coordenador, o Programa Mais Médicos levou estes profissionais aos lugares onde havia a equipe da saúde da família quase completa - formada por enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde e, quando ampliada, dentista, auxiliar de consultório dentário e técnico em higiene bucal - faltando apenas o médico. "Houve um cuidado de mapear as equipes da saúde da família que estavam completas. Sabemos que um médico não trabalha sozinho e onde tem equipe formada, principalmente por profissionais técnicos, temos serviços mais eficientes e eficazes", explica Aldiney.

Formação

Os esforços de formação de profissionais técnicos do SUS começaram na década de 1980 com o Projeto Larga Escala, seguido pelo Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae), entre a década de 1990 e os anos 2000. Atualmente, entre 2009 e 2011, o Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps) está encarregado de qualificar e/ou habilitar 745.435 trabalhadores em cursos de Educação Profissional para o setor saúde, já inseridos ou a serem inseridos no SUS, no período de oito anos.

De acordo com a pesquisa ‘As ocupações técnicas nos estabelecimentos de saúde: um estudo a partir dos dados da pesquisa AMS/IBGE', realizada pelo Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV, a formação dos trabalhadores técnicos se concentra nas regiões Sudeste e Sul - cerca de 80% dos cursos oferecidos estão nessas regiões e têm forte presença do setor privado. ‘No setor público, a esfera estadual é a principal prestadora de serviços educacionais na área de saúde, exceto nas regiões Norte e Nordeste, onde predomina a esfera federal. Os municípios têm pequena participação nessa modalidade de ensino, talvez porque, prioritariamente, são responsáveis pela oferta de educação infantil e fundamental e também devido à baixa tradição dessa esfera pública na promoção de projetos de desenvolvimento regional vinculados à implantação de Escolas e/ou Centros Públicos de Educação Profissional', diz a pesquisa concluída em 2003.

A professora e pesquisadora do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais (Nescom/UFMG), Cristiana Carvalho, acredita que desde o Profae não houve muito incentivo na formação de trabalhadores técnicos em saúde. "O número de escolas pra formar trabalhadores da saúde ainda é muito pequeno para atender a uma demanda que é muito grande. Temos que retomar o movimento de fortalecimento das escolas do SUS, além disso, mesmo as escolas privadas que já têm uma capacidade instalada, devem ser acompanhadas e ligadas ao SUS com estágios. Hoje a educação privada concentra a maior parte da formação, o que deveria ser suplementar virou hegemônico", destaca.

Os técnicos da saúde, de acordo com Mônica Vieira da EPSJV, são os que têm a maior faixa etária, superior ao da média da formação técnica no país, e a maior parte deles é formada em cursos privados e no período da noite. A professora explica que a área da saúde é que a mais concentra profissionais formados em ensino técnico e superior em todo o país.

Pronatec e Sisutec

Atualmente, o Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos, no eixo Meio Ambiente e Saúde, descreve 18 cursos, entre eles, o Técnico em Agente Comunitário de Saúde, de Análises Clínicas, Citopatologia, Técnico em Registros e Informações em Saúde, Técnico em Saúde Bucal e Técnico em Vigilância em Saúde.

Baseado neste catálogo, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), em parceria com diversas instituições privadas, entre elas o Sistema S, tem oferecido formação nesta área. Além disso, o Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (Sisutec) permite que instituições públicas e privadas de ensino superior e educação tecnológica ofereçam vagas de cursos técnicos para candidatos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que não alcançaram nota para cursar o ensino superior.

Aldiney acrescenta que a formação por meio dessas instituições é de responsabilidade do Ministério da Educação. "O que podemos nos responsabilizar é pelas Escolas Técnicas do SUS (ET-SUS), que prima pelo trabalho e pelo serviço de qualidade. O aluno que é formado por essas escolas tem seu saber construído em cima da realidade dele. Ele visualiza sua realidade e constrói junto com o professor e o material didático o seu conhecimento", explica.

Regionalização

A pesquisa ‘Dimensionamento da Demanda de Educação profissional Técnica em Saúde', desenvolvida pelo Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais, aponta entre os principais problemas de contratação em diversas regiões, principalmente Norte e Nordeste, a falta de profissionais com formação técnica e com experiência na área. A pesquisa consultou diferentes estabelecimentos como hospitais, clínicas, postos de saúde e laboratórios, entre outros.

Para Aldiney, o aumento de escolas técnicas do SUS e de vagas em determinadas regiões poderia ajudar a solucionar dois problemas: o ensino de qualidade e a falta de profissionais no interior. "Os profissionais são formados em grandes centros e a tendência é que eles permaneçam nos grandes centros porque no interior não tem o mesmo acesso que teriam nos grandes centros. As características da vida social tem prioridade no lugar da profissional. O ideal seria o profissional que mora na localidade receber essa formação, porque já está culturalmente ambientado com aquela localidade", analisa. Atualmente, são 319 escolas técnicas, entre públicas e privadas, no Brasil. São cerca de 40 escolas públicas em todo o país, destas, 12 se encontram no sudeste.

Precarização

Desde a descentralização oriunda do SUS, os municípios tornaram-se os principais responsáveis pela contratação dos trabalhadores técnicos e pelo gerenciamento dos serviços. Atualmente, um dos grandes problemas é a contratação desses profissionais por meio de terceirização, que é cada vez mais crescente. Este tipo de contratação se dá em sua maioria em parceria com organizações sociais (Os) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) , além de cooperativas.

Outro fator agravante para Filippina é que estão inseridos desde trabalhadores em situação de "superqualificação", com ensino superior completo e especializações, até trabalhadores que atuam sem a formação específica. "Essas pessoas fazem um sacrifício monumental para fazer uma graduação. Se fizermos um recorte dos alunos da EPSJV do curso de ACS, 20% dos alunos têm ensino superior e continuam ACS. Esta é uma realidade dos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo", exemplifica e acrescenta: "Ele se qualifica, mas não há substâncias na vida dele e da família que acompanha, não há mudança significativa. E em termos subjetivos é frustração em cima de frustração", explica.

Filippina lembra ainda da superexploração do trabalhador que tem uma formação melhor. Mesmo exercendo o papel dessa formação, sua contratação e a remuneração não acompanham esse crescimento. "Parece que a estrutura está montada de uma forma que melhora um pouco a educação dessas pessoas, mas elas nunca vão sair do lugar, vão ficar onde estão. A gente tem verificado que esses trabalhadores, mesmo quando conseguem se qualificar, sua inserção se mantém, continuam como trabalhadores subalternos. Por um lado, eles acreditam que talvez saiam daquela situação, e isso dá um alento, mas, do outro lado tem a dureza da realidade. É sempre esta contradição da frustração e da esperança", avalia.

Outra questão que Filippina e Mônica apontam como preocupante é que esses profissionais têm a mesma origem social das pessoas que eles atendem. "A tentativa de resolver o problema fica dentro da mesma classe social. É uma responsabilização muito grande para essas pessoas. Em nossa pesquisa, estamos percebendo o desgaste com o trabalho, por conta disso e de outros fatores. Isso é assustador. As pessoas estão doentes, cansadas, com doenças psicosomáticas. Isto tem a ver também com as novas relações de trabalho e o modelo de gestão implantado pelas OSs", avalia Mônica.

Mônica explica ainda que não há como falar da trajetória de estudos destes profissionais sem atrelar ao trabalho, que, na maior parte das vezes, é feita concomitantemente e, em muitos casos , interrompida por conta de condições financeiras. "A maior parte dos trabalhadores da saúde, principalmente os técnicos, são de camadas desprivilegiadas, e suas profissões consideradas de menor importância. Além disso, a sua atuação e carreira ficam invisíveis, por conta dos processos de terceirização, que fragmentam o trabalho, e as contratações que se dão de maneira muito precarizada, instável e fragilizada. Os técnicos em saúde são os mais afetados com a terceirização", aponta a professora da EPSJV.