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O direito à assistência social

Lei aprovada no Congresso garante a consolidação do Sistema Único de Assistência Social. Aumentar recursos, realizar concursos públicos e expandir a cobertura com qualidade são indicados por pesquisadores como principais desafios
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 21/06/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Na Constituição brasileira, a assistência social está ao lado da saúde e da previdência formando o tripé da chamada seguridade social. O conceito de seguridade social foi incluído por pressão dos movimentos populares na Constituição de 1988, e significa justamente o conjunto das ações do poder público na garantia dos direitos relacionados a essas três áreas.  Na saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) é responsável por garantir a universalidade deste direito. Já na assistência social, só recentemente, no último dia 9 de junho, um sistema único virou lei e aguarda a sanção da presidente Dilma. É o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que apesar de já existir, agora pode ser consolidado como política pública de Estado. Segundo a Secretária Nacional de Assistência Social, Denise Colin, a lei aprovada pode garantir mais recursos para a assistência social, que em 2010 ficou apenas com 2,74% do orçamento da União.

O Suas é considerado um sistema descentralizado e participativo, cofinanciado pelo governo federal, estados e municípios. Também integram o Suas os conselhos de assistência social nas três esferas de governo e as entidades e organizações de assistência social. Os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) são apontados na legislação como as principais referências na garantia da proteção social. “A importância dessa legislação é que o Suas se torna um direito reclamável. Todas as previsões que estão na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) são passíveis de serem exigidas. E há órgãos responsáveis e com a obrigação de prestar o atendimento para um conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios que integram a Política Nacional de Assistência Social. Ele cria os principais equipamentos públicos, que são os Cras e o Creas, que agora passam a ser de implantação obrigatória em todos os municípios”, explica Denise Colin. A secretária ressalta também a importância de a legislação do Suas criar o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que tem como objetivo contribuir para a retirada de crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos em situação de trabalho, ressalvada a condição de aprendiz, a partir de 14 anos.

São nos Cras e Creas que as famílias ou pessoas em condições de vulnerabilidade recebem atendimento. Os Cras são responsáveis pela assistência básica e são considerados a principal porta de entrada do Suas. São esses equipamentos que oferecem atendimento às famílias que possuem pessoas com deficiência ou idosos, bem como aquelas em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, além de crianças e jovens em potenciais situações de exclusão ou risco social, entre outras funções. Já os Creas realizam trabalhos com famílias que vivenciam violações de direitos, crianças vítimas de trabalho infantil e exploração sexual, pessoas em situação de rua, entre outras situações consideradas especiais.

Antes do projeto de lei 189, que institucionaliza o Suas, ser aprovado, em 1993, a Loas regulamentou o atendimento. A lei expressa os objetivos da assistência e afirma como princípio a universalização dos direitos sociais. A nova lei de criação do Suas modifica vários artigos da Loas acrescentando, por exemplo, entre os objetivos da assistência social, a vigilância socio-assistencial, ou seja, a análise dos territórios quanto a vulnerabilidades, ameaças e danos, bem como a defesa de direitos. Outras modificações especificam quais são e como funcionam as entidades e organizações de assistência social.  

A professora do departamento de política social da faculdade de serviço social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Elaine Behring, analisa o caminho que antecedeu a criação do Suas. “Tivemos a Constituição de 1988, depois a Loas de 1993. Logo após a Loas, quando assumiu Fernando Henrique Cardoso, não houve um forte investimento na institucionalização da assistência como direito de seguridade social no Brasil. Só a partir de 2004 é que houve um grupo com efetivo compromisso com a construção da assistência social dentro do tripé da seguridade social. A partir de 2004, esse grupo dentro do governo federal começa a impulsionar uma política nacional de assistência e a construção do Suas”, analisa.

Principais desafios

Os assistentes sociais, em geral, acham que a lei do Suas pode garantir mais força à assistência social e, consequentemente, um melhor atendimento à população. Entretanto, eles identificam desafios importantes para que este tripé da seguridade social se concretize de fato. Para Elaine, o principal desafio é orçamentário. “O Suas promove uma alteração significativa em relação ao que se tinha antes, porque passa a ser uma política sistêmica e abrangente. O que vem limitando a política, em que pese todo esse esforço regulatório, é o constrangimento orçamentário”, opina. A professora afirma que os programas de transferência de renda, embora sejam muito importantes, consomem grande parte dos recursos da assistência social. “Juntando todos os programas de transferência de renda, o que sobra para a rede de serviços é muito pouco, aproximadamente 8% dos recursos do fundo de assistência social. Todo o resto é transferência de renda. Cerca de 92% vão para o Benefício de Prestação Continuada [BPC] e para a Renda Mensal Vitalícia [RMV]”, diz. O BPC é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem pessoas na família que possam se responsabilizar por isso. E a RMV, de mesmo valor e destinada ao mesmo público, é paga apenas para os beneficiários que já a recebiam antes de 1996, quando ela foi substituída pelo BPC.

Elaine explica que o pagamento do Bolsa Família também faz parte dos recursos da assistência social, que engloba o fundo de assistência social – de onde sai o dinheiro para custeio da rede de serviços e os benefícios (BPS e RMV) – e os gastos do Ministério de Desenvolvimento Social e combate à fome (MDS) – que custeiam o Bolsa Família. Juntos, Bolsa Família e benefícios, consomem, segundo ela, a maior parte dos recursos. Para a professora, é preciso modificar as prioridades da política econômica. “Foram criados o sistema e os serviços, mas a implantação tem sido dificultada por uma política econômica que tira recursos não só da saúde e da previdência, mas da assistência social também, para financiar uma política econômica que transfere recursos para o capital financeiro. Então, é paradoxal, porque temos um avanço na constituição de uma nova institucionalidade, com a assistência social como uma política sistemática de seguridade, mas ao mesmo tempo as condições para que isso aconteça de fato não são as melhores”, avalia.

Para o professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Cézar Maranhão, a aprovação do Suas como lei também é fundamental para consolidar uma visão da assistência social como política pública de Estado. Ele considera que o principal desafio para o Suas é a luta contra a desigualdade histórica brasileira, que passa também por fortalecer toda a seguridade social. “E para lutar contra a desigualdade no Brasil é preciso mexer na tributação, principalmente no quadro que vem se concretizando de Desvinculação das Receitas da União [DRU]. Há receitas importantíssimas para o desenvolvimento da seguridade, mas hoje 20% delas estão sendo desvinculadas para pagamento da dívida pública. Então, seriam necessárias ações do governo que estabelecessem, por exemplo, uma tributação de impostos progressiva, taxando as grandes fortunas e o capital especulativo no Brasil”, destaca.  

Cras e Creas

Consideradas estruturas centrais no programa Brasil sem Miséria , lançado recentemente pela presidente Dilma, os Cras e os Creas ainda não estão totalmente disseminados pelo país. De acordo com dados divulgados na página eletrônica do Ministério de Desenvolvimento Social, ainda há cerca de 790 municípios que não possuem esses serviços. A situação do Amapá, por exemplo, é uma das piores, com 56% dos municípios sem essas estruturas, seguido por Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul.  Estados como Alagoas, Rio de Janeiro e Sergipe possuem pelo menos um Cras em cada município. O governo federal destina recursos para os centros, entretanto, os Cras são criados pelos municípios, e os Creas podem ser regionais, criados pelos estados, ou municipais. Pela lei, as três esferas de governo devem financiar os serviços de assistência social, entretanto, grande parte dos recursos é proveniente do governo federal. “Existe uma dependência muito grande dos recursos federais, também porque a maior parte da arrecadação da carga tributária brasileira é concentrada no governo federal. A Constituição repassou tarefas para os demais entes federativos, principalmente para os municípios, mas não repassou as condições de financiamento. Isso faz com que existam dificuldades dos municípios aportarem recursos”, explica Elaine.

De acordo com Denise Colin, a proposta do MDS é atingir a universalidade desses serviços. “Queremos ter no mínimo um equipamento desse em cada município e também queremos atingir o total necessário de equipamentos de acordo com a estimativa do número de pessoas em condição de vulnerabilidade”, afirma. Ela explica que o cálculo da quantidade necessária de Cras e Creas é feito com base no levantamento do número de famílias pobres e a localização delas no município. Assim, chega-se ao cálculo de um equipamento para no máximo cinco mil famílias chamadas ‘referenciadas’, ou seja, que têm algum acompanhamento do estado – seja por meio de bolsas, programas de saúde, etc – e mil famílias efetivamente atendidas a cada ano. Já nos municípios maiores, a regra é de um equipamento para cada 500 quilômetros quadrados. Entretanto, Denise reforça que essas condições não querem dizer que municípios com menos de cinco mil famílias, por exemplo, não devem ter equipamentos. “Cinco mil famílias é um número limite. Mesmo os municípios pequenos precisam ter no mínimo um equipamento”, diz. A secretária informa ainda que está em curso uma avaliação proposta pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) sobre a estrutura, atividades desenvolvidas, trabalhadores e funcionamento dos equipamentos da assistência social, o que pode subsidiar melhorias na área.

Cézar Maranhão afirma que de fato há uma expansão em curso do número de Cras e Creas, mas alerta para a necessidade de que esses equipamentos estejam em melhores condições. Segundo o professor, uma pesquisa no estado da Paraíba revelou unidades em condições bastante precárias. “Essa ampliação está se dando de uma forma muito precarizada, com locais que não têm inclusive telefone e outros aspectos básicos para garantir o funcionamento adequado. Essa ampliação tem sido realizada, mas a infraestrutura para o funcionamento ainda deixa muito a desejar”, comenta. Outro problema, segundo o professor, é a contratação precária de trabalhadores. “A contratação da maioria dos trabalhadores tem sido por via de terceirização. Isso acarreta que muitos trabalhadores desenvolvam inclusive mais de uma atividade nos Cras e Creas, em mais de um município. A ausência de concursos públicos está mexendo muito com a qualidade dos serviços”, observa.

Para Denise, a lei do Suas pode garantir que os municípios realizem concursos públicos. “A lei autoriza que recursos do governo federal possam ser utilizados para o pagamento de pessoal do quadro próprio. Porque o que ocorre hoje é que os municípios, por conta da lei de responsabilidade fiscal e de outras dificuldades, não conseguem realizar os seus concursos e também os recursos de outras esferas não podem ser utilizados para isso. A legislação irá autorizar esse pagamento”, garante.

Elaine reforça que a situação dos trabalhadores e das instalações dos centros interfere muito no atendimento das pessoas. “Há uma precariedade na contratação de pessoal e nos equipamentos físicos disponíveis. Muitas vezes o assistente social tem que fazer atendimento sem nenhuma condição de sigilo para atender o usuário. E os problemas das pessoas são, em geral, bastante complexos, que acabam envolvendo outras dinâmicas também, como a violência doméstica, o alcoolismo, a miséria, o desemprego, que geram outras sequelas”, ressalta. “Não adianta termos uma institucionalidade nova muito interessante, com uma enorme potencialidade, e por dentro dessa possibilidade, constituirmos uma política pobre para os pobres”, completa.

Controle social

Para Elaine, é preciso também aprimorar os mecanismos de controle social dentro do Suas para que a lei de fato seja cumprida. “Os conselhos têm dificuldades de atuação. Muitos gestores pensam que o Conselho só deve opinar, e, com isso, têm uma relação muito de cima para baixo com os conselhos, não os reconhecendo como uma instância que interfere de fato no processo da política”, afirma.

Em dezembro de 2011 será realizada a VIII Conferência Nacional de Assistência Social, com o tema ‘Consolidar o Suas e valorizar os seus trabalhadores’. Para Denise Colin, a conferência é uma oportunidade importante para debater essas questões. A secretária destaca que, para garantir um lugar de mais destaque da assistência social no orçamento, é preciso mudar a concepção que se tem sobre a área. “Podemos mostrar um resultado positivo do atendimento e mudar essa cultura de que se trata de uma política de pobre para pobre. Agora não é, é uma política pública para todo mundo, uma demanda e necessidade da população brasileira. Aí será possível conseguirmos uma centralidade da área e uma destinação de recursos um pouco mais volumosa para corresponder a essas demandas”, aposta.

As conferências municipais e estaduais antecedem a Conferência Nacional de Assistência Social. As conferências municipais devem ser realizadas até o dia 7 de agosto e as estaduais até o dia 14 de outubro.