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O que está por trás da ‘Grande Renúncia’?

Pesquisadores analisam o fenômeno do crescimento das demissões voluntárias em meio à pandemia no Brasil e em países como Estados Unidos
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 09/11/2022 11h39 - Atualizado em 09/11/2022 15h38

Um fenômeno que eclodiu durante a pandemia de Covid-19 principalmente em países como os Estados Unidos e Inglaterra vem chamando atenção de analistas do mundo do trabalho também do lado de cá do oceano Atlântico. Chamado de ‘Great Resignation’, ou a Grande Renúncia, como foi batizada a demissão voluntária em massa de milhões de trabalhadores em meio à pandemia, o fenômeno repercute até hoje sobre os cenários de trabalho e emprego desses países, chegando a se espraiar por terras brasileiras. Para analistas ouvidos pela Poli, é necessário cautela ao traçar os paralelos entre o fenômeno nos diferentes países, e ressaltam que ele denota uma insatisfação de trabalhadores com as condições de trabalho em nível global, mas que vem sendo tratada de maneira contraditória por aqui, principalmente pela grande mídia.

Números aqui e lá

No país mais rico do mundo, números do Bureau of Labour Statistics dos Estados Unidos (a agência de estatísticas do trabalho do governo do país) apontam que, em média, 4 milhões de pessoas pediram demissão por mês ao longo de 2021, meio milhão a mais do que a média de 2019. Se em janeiro de 2019 o BLS registrou um montante de cerca de 7 milhões de vagas de trabalho sem serem preenchidas, em setembro de 2022 esse número havia aumentado para 10,7 milhões, um crescimento de mais de 50%. No Reino Unido, um levantamento realizado pela consultora Barnett Waddingham divulgado em junho apontou que 85% das empresas foram afetadas de alguma forma pela ‘Grande Renúncia’, sendo que 31% relataram dificuldades para reter trabalhadores e 32% relataram problemas para contratar novos funcionários ao longo de 2021, o que inclusive teria levado algumas empresas a oferecerem vagas com uma semana de trabalho reduzida, de quatro dias.

No Brasil, um levantamento de agosto produzido pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) a partir de dados do Ministério do Trabalho, mostrou que entre janeiro e maio de 2022 o número de trabalhadores com carteira assinada que deixaram seus empregos voluntariamente bateu recorde, chegando a 2,9 milhões. Isso significa que um em cada três contratos de trabalho encerrados no período se deu por iniciativa do próprio trabalhador, um volume 35,2% maior do que no mesmo período de 2021. A nota técnica da Firjan ressalta que o recorde anterior para o período havia sido em 2014, quando 2,6 milhões de trabalhadores com carteira assinada pediram demissão voluntariamente, em um cenário em que a taxa de desemprego medida pelo IBGE girava em torno de 7%, ou seja, menor do que o cenário atual, de cerca de 10% de desemprego.

É um movimento de uma juventude que tem entendido que as promessas do capitalismo, no sentido de que você desenvolve, estuda, trabalha, faz curso, se aprimora etc. e você tem um lugar ao sol, são falaciosas - Bruno Chapadeiro, pesquisador da UFF

Perfil dos trabalhadores revela jovens com escolaridade elevada

Segundo a Firjan, quase metade das demissões registradas no período se deu entre trabalhadores com ensino superior completo, responsáveis por 48,2% dos desligamentos. A nota técnica destaca ainda a prevalência de trabalhadores mais jovens entre os que pediram demissão: 38,5% dos pedidos de demissão se deram na faixa etária entre 18 e 24 anos, enquanto 36% foram entre os trabalhadores entre 25 e 29 anos. Ainda de acordo com a nota, os Profissionais da Informática foram o subgrupo ocupacional com maior proporção de desligamentos voluntários em 2022 (65,1%), seguidos pelos Técnicos em Informática (57,9%), Pesquisadores (57,0%) e Profissionais da Medicina (56,5%).

Para Bruno Chapadeiro, psicólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) que vem estudando a temática, os dados servem para ilustrar uma dimensão importante do fenômeno que tem se demonstrado em todos os países onde foi identificado, e que se mostra com ainda mais força no Brasil. “Tem um recorte muito importante de classe. A gente pode dizer que quem aderiu a essa ‘Great Resignation’ em todas as experiências até agora foram jovens de classe média”, destaca Chapadeiro, e complementa: “É um movimento de uma juventude que tem entendido que as promessas do capitalismo, no sentido de que você desenvolve, estuda, trabalha, faz curso, se aprimora etc. e você tem um lugar ao sol, são falaciosas. São jovens que se veem em empregos com salários precários que não vão levá-los a lugar nenhum e começaram a se demitir”, diz o pesquisador.

Segundo ele, o fenômeno vinha sendo identificado já antes da pandemia, em países como China e Japão, mas explodiram com a pandemia de Covid-19 principalmente nos Estados Unidos, país em que, como lembra Chapadeiro, não há um sistema público de saúde como o SUS. “Muitos trabalhadores, alguns sem acesso a planos de saúde, passaram a ver o risco de adoecer em um país sem um sistema público de saúde, começaram a ter medo de contrair e contaminar seus familiares com uma doença para a qual não existia vacina”, ressalta. Para o pesquisador, concorre também para a eclosão do fenômeno a chegada ao mercado de trabalho de uma geração nascida e conformada pelo ideário neoliberal. “A nossa pesquisa tem tentado entender em que medida essa juventude tem comprado, por exemplo, a ideologia do autoempreendedorismo e começaram a sair de empregos precários para tentar o próprio negócio virtual, sem patrões, com mais flexibilidade. Então a gente tem uma geração de filhos da classe média, que nasce com toda essa perspectiva neoliberal de mundo, que é familiarizada com tecnologias informacionais e que teve a pandemia como catalizadora pra essa reação”, resume Chapadeiro.

O que há de comum é o mercado de trabalho degradado pela precarização salarial que vem ocorrendo nos últimos 30 anos lá fora e que no Brasil veio com força a partir da Reforma Trabalhista de 2017, que colocou as pessoas em uma situação de insegurança salarial - Giovanni Alves, pesquisador da Unesp

Giovanni Alves, professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) vê a Grande Renúncia como um efeito do que ele chama de um “rebaixamento civilizatório por conta da crise estrutural do capital” sobre uma fração da classe trabalhadora que ele denomina de “precariado”. “São aqueles trabalhadores mais qualificados, mais escolarizados, em geral. Alguns até os 40 anos estão ainda morando com os pais. Uma parte deles têm uma margem de insumo familiar para poder operar escolhas com relação ao trabalho. Isso acontece muito nos Estados Unidos, na União Europeia. Em Portugal eles chamam de geração ‘casinha dos pais’, por exemplo”, diz Alves, chamado atenção para o que vê de comum entre Brasil e Estados Unidos nessa conjuntura. “O que há de comum é o mercado de trabalho degradado pela precarização salarial que vem ocorrendo nos últimos 30 anos lá fora e que no Brasil veio com força a partir da Reforma Trabalhista de 2017, que colocou as pessoas em uma situação de insegurança salarial. Além disso são países que na pandemia têm apresentado índices altos de contaminação e de mortes”, lembra o professor da Unesp. Ele ressalta que, principalmente no caso brasileiro, o fenômeno tende a ser mais marginal do que em outros países, justamente pelas características do mercado de trabalho e das condições sociopolíticas do Brasil. “Para a grande maioria dos trabalhadores brasileiros não há possibilidade de escolha: ou você trabalha ou morre de fome”, alerta Alves.

Mas o pesquisador destaca que é importante analisar o fenômeno para além de simplesmente um “luxo” reservado à classe média. “A Grande Renúncia talvez sirva para ocultar outros problemas que estão ocorrendo na economia capitalista e no mercado de trabalho, principalmente a degradação salarial dos empregos de classe média nos últimos 20 anos”, diz Alves, e completa: “Mas quando a gente lê matérias no [jornal] Valor Econômico, no UOL, é tratado como se fosse meramente um luxo. ‘A coisa está tão boa que essas pessoas estão pedindo demissão, podem escolher’. É a ideologia do capital, como se esse fosse um fenômeno da prosperidade do capitalismo. É justamente o contrário”, aponta.

Sindicalização na Amazon: outra face de uma mesma moeda?

Nesse sentido, ele chama a atenção para a recente vitória de trabalhadores da Amazon no estado de Nova York, que em abril conseguiram aprovar a criação do primeiro sindicato de trabalhadores da empresa que é a segunda maior empregadora privada do país. Para Giovanni Alves, a eclosão da Grande Renúncia e a luta pela sindicalização em uma das empresas que mais lucrou durante a pandemia, num país onde segundo ele é forte o “espírito antissindical” são questões interligadas, e mostram as diferentes respostas que os trabalhadores de diferentes setores e estratos sociais dos Estados Unidos têm apresentado como respostas ao cenário de precarização salarial no país. “Por que foi na Amazon? Porque ela é a própria representação da desigualdade que vem se aprofundando, uma empresa bilionária onde a diferença salarial entre o topo e a base é enorme, e que é de um dos maiores bilionários do mundo, Jeff Bezos, que inclusive agora quer ir para o espaço sideral. É uma situação muito indigna para o americano. Ele sabe que está dando muito lucro à empresa e está recebendo um salário baixo, então parte para a luta sindical, que é uma luta tremenda por lá”, pontua Alves. “São diferentes estratégias de sobrevivência tendo como pano de fundo esses processos mais estruturais, em um mundo do trabalho degradado: quem pode escolher pede demissão, quem não pode se organiza”, completa.

O professor da UFF Bruno Chapadeiro tem expectativa de que, assim como a Grande Renúncia, o movimento de organização coletiva de trabalhadores simbolizado pela sindicalização na Amazon possa ter influência por aqui também. “O que ele tem de comum ao Great Resignation é o fato de que essas ideias de sindicalização, de Apple, de Amazon, mesmo do Tik Tok, tem vindo da juventude. Arriscando uma imaginação sociológica, como tudo que começa lá no norte do mundo vem para cá, pode ser que essa seja uma ideia que a gente acabe importando também, de que essa juventude queira continuar se movimentando em termos do coletivo, se organizando coletivamente, de uma forma diferente do que foi o sindicalismo dos anos 1970 e 1980, que é uma forma considerada ultrapassada, que não dialoga com a juventude hoje”, aposta Chapadeiro.

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Reverter a Reforma Trabalhista, denunciar os males da terceirização, minimizar os problemas da “uberização” do trabalho: a verdade é que a ‘vida’ do movimento sindical brasileiro não anda nada fácil, restrita, em grande medida, à necessidade de reagir às crescentes perdas de direitos. Num contexto em que lutar para conter os retrocessos parece, cada vez mais, o limite, vão ficando para trás, e caindo no esquecimento, reivindicações com potencial de pressionar por avanços reais – a exemplo da histórica demanda por redução da jornada de trabalho sem redução de salário. Num país em que mais da metade da força de trabalho vive na informalidade – e, portanto, nem tem o que se pode chamar de ‘jornada’ –, uma conquista como essa parece fora do horizonte. Mas, segundo Ana Cláudia Cardoso, que é assessora sindical e pesquisadora do Grupo de Trabalho Digital da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista, a experiência de outros países, assim como a intensificação do uso de tecnologias e o agravamento da crise econômica que a pandemia de Covid-19 trouxe, está recolocando esse debate em pauta. Ela estava na França – onde fez parte do doutorado e o pós-doutorado – quando o país reduziu a jornada semanal de trabalho para 35 horas. Cardoso também trabalhava no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) no período mais recente em que essa demanda foi colocada na mesa pelas centrais sindicais, entre 2003 e 2011. Nesta entrevista, ela defende a importância do “tempo livre”, explica que a redução da jornada de trabalho seria capaz de gerar milhões de empregos e garante que existem condições objetivas para isso.