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O que setor privado quer para a saúde do Brasil?

Em ano de eleições, representantes do empresariado renovam suas propostas para o setor e focam a entrada na Atenção Primária, produção e compartilhamento de dados. Pesquisadores lembram que o setor privado é diverso, mas todos querem participar das decisões dos rumos do SUS
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 30/11/2022 14h57 - Atualizado em 30/11/2022 15h05

Entra ano, sai ano e muitas coisas permanecem iguais. Representantes do setor privado querem mais dinheiro do Estado, em linhas de crédito especiais, maior participação nas esferas de decisão sobre o setor público e se colocam como a solução, elencando a flexibilidade e o maior uso de tecnologias como argumentos para serem entendidos como exemplo na prestação de serviços. Essas demandas estão no ‘Livro Branco: Brasil Saúde 2019’ lançado pela Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), lançado pela primeira vez em 2014, e renovadas em 2022. As metas da Anahp incluem frear as reivindicações de aumento de salário e diminuição da carga horária de categorias como trabalhadores da enfermagem e farmacêuticos que “trazem exorbitantes impactos financeiros para o setor de saúde público e privado”, como argumenta a Associação em documento sobre as pautas de interesse do setor divulgado em março de 2022.

Já o Instituto Coalizão Saúde (Icos) quer maior integração nas atividades público-privadas e desburocratização das agências reguladoras, assim como o investimento na digitalização e integração de dados em saúde, e reafirma que o setor privado tem muito a oferecer ao sistema público em relação à tecnologia e inovação. O Instituto coloca como sua missão “propor soluções que contribuam para a qualidade, a equidade e a sustentabilidade do sistema de saúde brasileiro” e reúne diversas associações e sindicatos da iniciativa privada. Dele fazem parte a própria Anahp, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Confederação Nacional de Saúde (CNS), Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), entre outras.

Mesmo sem atuar diretamente no setor de saúde com a oferta de serviços, o Instituto de Estudo em Políticas de Saúde (Iesp) foi outro que e apresentou propostas para a área em ano eleitoral, em vários documentos e estudos. O instituto tem como sócio fundador o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga Neto e se declara apartidário. O financiamento do instituto vem de dinheiro privado filantrópico e a instituição não aceita recursos de instituições governamentais brasileiras, segundo informações divulgadas por seu próprio site. No primeiro caderno da publicação ‘Agenda Mais SUS’, divulgada em julho, o Iesp é explícito no que defende: “a Agenda Mais SUS defende o caminho de expansão do SUS e consolidação do modelo beveridgiano, através do aumento relativo de recursos direcionados à saúde pública, do fortalecimento da regulação ao mercado privado e da qualificação transversal da gestão”. O modelo beveridgiano é adotado em países como Reino Unido, países nórdicos, Portugal e Espanha. Nele convivem o sistema público e suplementar, mas há uma forte cobertura universal financiada por impostos gerais e o Estado “desempenha papel central de programação, controle e prestação direta de serviços de atenção primária, secundária e terciária”, detalha o documento.

O que as propostas dessas entidades tem em comum? O fortalecimento da Atenção Primária, o maior investimento público em saúde e a convicção de que a saúde suplementar deve trabalhar em conjunto com o SUS. Diante de tantos pedidos, o pesquisador José Sestelo, vinculado ao Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Iesc/UFRJ) faz um alerta. “Não tem ninguém querendo destruir o SUS [Sistema Único de Saúde], mas existem interesses que querem instrumentalizar o sistema de saúde brasileiro, e assim tem sido feito, no sentido de se relacionar com ele de uma forma muito conveniente. Evidentemente que isso só pode ocorrer na ausência de uma iniciativa pública ou na falta de projetos estruturantes”, defende Sestelo. Ele também pontua que o setor privado não é homogêneo e é formado por um conjunto complexo de agentes que inclui grupos econômicos, empresas, indústrias, corporações profissionais e que tem ganhado um protagonismo cada vez maior nos últimos anos. Atualmente, dos 9,6% do Produto Interno Bruto (PIB) gasto em saúde, dois terços são destinados ao setor privado, de acordo com o Iesc. A necessidade de um maior investimento público em saúde é um consenso, mas as prioridades divergem, mesmo entre agentes do setor privado.

Atenção Primária e dados na mira

Falar sobre o maior gasto privado na saúde não é algo novo e vem sendo detalhado pelo Iesc/UFRJ há muitos anos, seja por conta da financeirização da saúde e formação de oligopólios na área de planos de saúde e diagnóstico, quanto pelas renúncias fiscais realizadas pelo Estado para apoiar o setor privado. Já entre as transformações mais recentes em curso está o avanço da iniciativa privada sobre a Atenção Primária, o segmento de maior expansão do SUS. Essa inserção é dupla: de um lado há uma incorporação de parte dos serviços oferecidos nesse modelo pelos planos de saúde e, de outro, a inserção desses agentes na prestação de serviços ao setor público. “Agora a Atenção Primária, que é um termo caro ao setor público, está na boca, por exemplo, do candidato [à presidência pelo partido] do Novo. E ele fala muito explicitamente que o setor privado precisa participar do SUS, precisa participar da Atenção Primária”, exemplifica Angélica Fonseca, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A fala do candidato Luiz Felipe D’avila incluiu a defesa das parcerias público-privadas, do avanço do uso de dados na saúde e da telemedicina. Proposições que aglutinam as principais demandas apresentadas em documentos divulgados pela Anahp e Coalizão Saúde nos últimos anos e reiteradas em ano de eleição.

Em seus documentos de propostas, tanto a Anahp quanto o Icos defendem a ampliação da Atenção Primária no setor público e no privado, inclusive dando ênfase à necessidade de equipes multiprofissionais, um dos pilares do SUS. No entanto, defendem que essa expansão seja acompanhada do avanço da telessaúde. Em 2020 o Projeto de Lei (PL) 696, de autoria da deputada Adriana Ventura (Novo-SP) foi aprovado em caráter emergencial. A deputada também apresentou o PL 1.998/2020 para autorizar a prática da modalidade de forma permanente. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em abril deste ano e agora está no Senado. Os projetos estão na lista de pautas prioritárias em documento da Anahp divulgado em marvço deste ano.

A defesa da proposta aparece no Livro Branco de 2019, em que a Anahp defende a integração dos dados para possibilitar “o desenvolvimento de estatísticas populacionais de saúde para o planejamento e execução de ações”, diz o texto. A entidade também defende que a “concentração de serviços em plataformas digitais e pontos de acesso físico (serviços integrados) melhora a interação eficiente do paciente e o trajeto através do sistema de saúde. A triagem apropriada em um nível de atenção primária evita cuidados desnecessários e caros. Para que isso aconteça, organizações dos setores públicos e privados devem trabalhar em conjunto”.

Já o Icos reuniu em documento lançado em 2022 o que considera bons exemplos no atendimento remoto vindos do Reino Unido. De acordo com depoimento de Nav Chana, diretor clínico da Associação Nacional da Atenção Primária (NAPC, na sigla em inglês) presente no relatório Diálogos Brasil-Reino Unido em Saúde Digital, as 7,5 mil Clínicas da Família britânicas levaram quatro dias para se adequar ao sistema de atendimento remoto (telefone, vídeo e mensagem de texto) e realizar a triagem daqueles que necessitam de atendimento presencial. Um feito realizado na pandemia, diz o diretor, que levaria alguns anos para virar prática comum. A empresa responsável pela mudança, Capita, calculou que a economia do NHS seria de 200 milhões de libras por ano com a adoção da triagem remota de pacientes. Outro exemplo citado é o oferecimento por parte do hospital Albert Einstein de assistência médica especializada em 120 municípios da região Norte (especialmente no estado do Pará) em diversas especialidades: Cardiologia, Endocrinologia, Reumatologia, Pneumologia, Neurologia, Neuropediatria e Psiquiatria. O projeto foi realizado por meio do Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), financiado com recursos de renúncia fiscal por parte do governo. “Na Saúde, com o uso das ferramentas digitais, temos a oportunidade de agregar recursos, simplificando processos e reduzindo a necessidade de pessoas, o que amplia a transparência. Isso também permite que o tema “redução de custos”, que preocupa não apenas as fontes pagadoras, mas a sociedade de forma geral (que não vem suportando o incremento dos custos assistenciais), seja abordado de forma muito criteriosa”, escreve o presidente institucional do Icos, Cláudio Lottemberg.

O documento do Ieps coloca que não há consenso sobre como deva funcionar o telessaúde entre os especialistas consultados e afirma que na disputa entre os modelos público e privado, duas propostas impulsionariam o privado: a criação de planos de saúde a baixo custo – e sobre o qual o Ieps tem posição contrária por não garantir equidade – e o Open Health, um sistema que agruparia os dados de todos os usuários do sistema de saúde – especialmente privada – de modo a oferecer planos específicos para os usuários, da mesma maneira como funciona o Open Banking.

O oferecimento de serviços de telessaúde ao lado de outro movimento das entidades privadas em defesa do compartilhamento de dados dos usuários, que poderiam levar ao Open Health, pode trazer grandes mudanças na oferta de serviços em saúde na visão de Luiz Vianna, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). “Eu vejo um movimento dentro do mercado, um interesse forte na Atenção Primária, que era uma área que não havia interesse antes justamente por ser uma área de serviços de relação entre sujeitos, equipes de saúde”, comenta. Essa grande virada se daria pela possibilidade de venda de serviços de novas estruturas e de gestão não só da saúde como dos dados dos usuários. “As estruturas de saúde digital permitem a venda de serviços através de algoritmos, de callcenters, de serviço padronizado. Transforma uma coisa que é atenção em insumos que podem ser vendidos. Virou o novo eldorado dos planos de saúde. E todos têm falado nisso”, relata. Vianna compara as mudanças vindas na pandemia, com a autorização da telessaúde por parte do Conselho Federal de Medicina e a liberdade para a compra de serviços de saúde por parte dos municípios sem que exista regulação. “Uma coisa é o telessaúde como era feito antes, vamos dizer assim de 2015, 2016, que é transmissão eletrônica de prontuários, imagens e assessoria e teleconsulta, teleatendimento e interconsulta, suporte para áreas distantes. Outra coisa é você começar a ter atendimento por robôs e inteligência artificial, atendimento a partir de profissionais que nem são profissionais de saúde, você colocar callcenters gigantes e usar o argumento de estar dando assistência àqueles que estão distantes, está dando assistência aos rincões”, projeta.

O pesquisador da UFRJ Arthur Monte, também vinculado ao Iesc, observa com cautela os movimentos da iniciativa privada na Atenção Primária sob o argumento que há dificuldade de obtenção de lucro. No entanto, vê com pessimismo essa entrada. “Então a Atenção Primária, assim como a telemedicina, só poderia prosperar com negócios rentáveis, nos parece, se elas esvaziarem esse conteúdo da atenção básica”, opina. E na avaliação das professoras-pesquisadoras da EPSJV/Fiocruz Márcia Valéria Morosini e Angélica Fonseca é exatamente isso que está acontecendo.

Antecedentes

Para elas, o marco da virada na Atenção Primária foi a nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2017. Mudanças que já vinham sendo sinalizadas pelas declarações do então ministro da Saúde Ricardo Barros que davam ênfase ao controle de gastos e a necessidade de economia na saúde naquele mesmo ano. Uma das principais alterações realizadas pela política foi o novo cálculo de previsão do número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), anteriormente incentivado quanto maior fosse a vulnerabilidade do território. Com as novas regras, passou a ser indicado por “de acordo com base populacional”, o que poderia levar a composição de equipes com apenas um ACS. “O Agente Comunitário de Saúde é um trabalhador que não combina com o setor privado, toda a estrutura do trabalho dele está centrada na compreensão da determinação social do processo de saúde e doença. Isso significa olhar para o território e para o modo de vida daquela população. Então a gente percebe uma desconstrução de princípios norteadores de uma Atenção Primária à Saúde compromissada com os princípios do SUS: universalidade, integralidade, equidade”, argumenta Morosini.

Outra crítica foi a previsão de decomposição das equipes, uma vez que a PNAB divide ações entre “essenciais” e “ampliadas”, na contramão do princípio de integralidade preconizado pelo SUS, defendem Fonseca e Morosini. “Ao fazer isso você está definitivamente se aproximando do modelo de cuidado que os planos privados passaram a oferecer nos seus serviços, incorporando alguns preceitos da Atenção Primária, mas como forma de reduzir custos e evitar o maior uso do plano. Este é um modelo sem a interdisciplinaridade”, defende Fonseca. A portaria nº 2.539 de 26 de setembro de 2019 é citada pelas pesquisadoras como mais um elemento dessa fragmentação, pois permite que as equipes de saúde sejam formadas apenas por médicos e enfermeiros, em detrimento da equipe multiprofissional.

Em 2019, o governo mudou a forma de repasse dos recursos para os municípios com a criação do Previne Brasil, sob a portaria nº 2.979. O programa acaba com o repasse fixo, calculado a partir dos números de habitantes calculados pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e passa a ser feito a partir do número de pessoas cadastradas nas unidades de saúde e a orientação de repasses passa a se dar pelos critérios de captação ponderada [que depende das metas alcançadas]; o pagamento por desempenho e o incentivo para ações estratégicas. Para Angélica e Márcia Valéria, a nova forma do cálculo de repasses não só reduz o montante de repasses como muda a forma de atuação da Atenção Primária.

“A ênfase na pessoa cadastrada ou assistida desperta a preocupação quanto ao enfoque no indivíduo, em detrimento da perspectiva comunitária e da atenção territorializada. Agrava a ruptura com o princípio da universalidade, admitindo que parte da população não será atendida na atenção básica, e evoca a ideia de cobertura universal, com direcionamento de recursos escasseados para os segmentos mais pobres da população, promovendo um modelo de APS focalizante”, escrevem em artigo. Um exemplo desse impacto da nova gestão é que o cálculo dificulta a manutenção das equipes de Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) que inclui assistente social, educador físico, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional entre outros. “A gente percebe [com essas mudanças] uma perda de centralidade da Estratégia Saúde da Família, que era o modelo com uma clínica ampliada e que aponta para uma composição múltipla daquilo que se entende como organização do cuidado em saúde, não simplesmente centrado no saber biomédico, nas práticas biomédicas, no médico e enfermeiro”, argumenta Márcia Valéria.

A crítica à forma de financiamento do Previne é compartilhada em parte pelo diretor de políticas públicas do Ieps, Arthur Aguillar, que defende a reformulação dos cálculos do programa. O primeiro ponto elencado é que o novo cálculo não trouxe mais investimentos para a Atenção Básica. “Então é como se você tivesse um jogo de soma zero, quando está todo mundo disputando para não perder dinheiro, não para melhorar”, diz. O outro problema é o aumento de financiamento estipulado por metas e não por variação e ele exemplifica: “Uma coisa que a gente propõe na ‘Agenda Mais SUS’, é que tenha indicadores de nível, mas tenha indicadores da variação, para premiar esses municípios que mediam 2% da hemoglobina aplicada da sua população diabética e agora está medindo 30, esse é um grande avanço e precisa ser reconhecido pelo programa”, defende. Apesar de defender a existência de novas métricas, Aguillar argumenta que faltam parâmetros para medição de qualidade no SUS. Um assunto para os quais o instituto não tem respostas prontas, mas quer participar da discussão.

Entre os desdobramentos da nova PNAB e o processo de privatização da Atenção Primária, as pesquisadoras da EPSJV elencam a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), em 2021, e o primeiro programa colocado em prática por ela, o Médicos pelo Brasil. As ações da agência têm supervisão do Ministério da Saúde, mas é definida como “serviço social autônomo, na forma de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de interesse coletivo e utilidade pública”. A composição de seu Conselho Deliberativo é formada por seis representantes do Ministério da Saúde, um do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e outro Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), três representantes de entidades médicas e um representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS). As pesquisadoras entendem que com a criação da Adaps “foram criadas condições para que uma entidade privada assuma a gestão da atenção básica, incluindo a captação de recursos de outras fontes” e se constitui como “uma nova e ampla porta de entrada para o setor privado no SUS”.

A primeira chamada do Médicos pelo Brasil aconteceu no começo de 2022, possibilitada pela criação da Adaps.  O lançamento do programa, ainda em 2019, foi comemorado pelo presidente da Unimed, Alexandre Ruschi, por permitir a entrada da saúde suplementar. “O Médicos pelo Brasil deixa aberta a oportunidade para que o Sistema Unimed e a própria saúde suplementar possam ser parceiros do Estado nessa iniciativa”, escreveu em nota publicada no site do grupo que integra o Instituto Coalizão Saúde.

Mesmo diante de um cenário de abertura maior comercialização de serviços para a Atenção Primária, Angélica Fonseca concorda com Arthur Monte de que ainda é cedo para falar sobre o que de fato irá se concretizar. “Eventualmente, o setor privado quer abrir oportunidades e depois identificar como se aproveitar melhor dessa abertura. O que a legislação faz, o que as normativas fazem, é estabelecer essas oportunidades no modelo que pode ser apropriado ou não, depende de como se figurar posteriormente”, avalia.

Gestão do dinheiro e serviços

Em abril o Poder Data realizou uma pesquisa encomendada pela Anahp que identificou que a maior dificuldade dos usuários do SUS está em conseguir marcar consultas e exames, além de internações.  Ainda assim, o grau de satisfação com o SUS e a saúde privada são similares, cerca de cinco em cada dez brasileiros considera que teve um atendimento ótimo/bom quando procurou um sistema de saúde. A média aumenta com a renda. A porcentagem de satisfação de bom/ótimo sobe para 70% entre os que ganham mais de dez salários mínimos e utilizam plano de saúde. A resposta para a melhoria do setor público é unânime: mais investimento do Estado. A forma que esses investimentos seriam aplicados é que trazem divergências. Agentes privados como a Anahp e Icos querem maior financiamento via bancos públicos tanto para suas estruturas quanto para a aquisição de medicamentos, além da diminuição de impostos.

Já o Ieps tem uma proposta menos setorizada. O primeiro ponto levantado pela Coordenadora de Advocacy e Relações Governamentais do Ieps, Rebeca Freitas, é que a saúde suplementar deveria estar provendo mais serviços para o SUS e deveria haver uma harmonia maior. “Mas não existe porque há um desequilíbrio e uma competição, tanto por recursos do orçamento, recursos financeiros, quanto também uma disputa pela mão de obra, por recursos humanos. Hoje também a gente vê não só essa discrepância de destinação de recursos, como também uma maior participação do setor privado na gestão do SUS”, diz. A meta estipulada pelo Ieps para o crescimento do investimento público em Saúde é que ele saia de quase 4% do Produto Interno Bruto (PIB) – um terço do total investido – para 6% até 2030. Essa porcentagem é a estabelecida pela Organização Panamericana da Saúde (Opas). Atualmente o investimento público em saúde é um terço do total, os outros dois terços têm como fonte empresas e pessoas físicas.

José Sestelo concorda que é preciso aumentar o investimento em saúde, pequeno em relação a outros países de renda média, como a Argentina e Colômbia. Nesse segundo caso, ele pondera que apesar do gasto público ser elevado, o setor privado tem um grande controle sobre a destinação dos recursos. “Então, é claro que é importante a gente ter mais recursos públicos, mais gasto público em saúde, mas não apenas isso, é preciso ponderar qual é o padrão de articulação público-privada que deve prevalecer no nosso sistema de saúde”, diz e complementa: “Na prática, o nosso padrão de articulação público-privado se assemelha ao de um país como os Estados Unidos, que é reconhecidamente um sistema que tem características privatistas. É um paradoxo. Como é que pode um país como o Brasil ao mesmo tempo que tem uma política pública bem estruturada como é o Sistema Único de Saúde, ser o segundo maior mercado de plano de saúde do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos? É difícil de entender”, questiona. O pesquisador critica também o que chamou de “nova institucionalidade” que se criou desde o começo da pandemia do coronavírus, com a criação de fundos de doações privadas que arrecadaram bilhões para cestas básicas, medicamentos e equipamentos de proteção individual. “O montante de doações rivalizou com o montante adicional que o próprio governo federal disponibilizou. É mais dinheiro? É, é claro. É útil, ajudou muitas pessoas? Ajudou. Mas agindo assim fugimos totalmente da compreensão do que seria um sistema republicano em que se define democraticamente a gestão dos recursos públicos. Por que não se paga imposto, e aí dos recursos dos impostos se decide democraticamente o que fazer com isso?”, pergunta.

Arthur Monte, também pesquisador do Iesc, concorda. Ele lembra que em muitos países o sistema público é o organizador do sistema de saúde e isso garante o acesso da população, caminho que o SUS deveria seguir para se tornar verdadeiramente universal. “O SUS deveria atuar como o pagador e regulando os fluxos de acesso, regulando o pagamento. Por outro lado, nós precisamos fortalecer os serviços públicos que já existem e ampliar a gama de serviços públicos oferecidos”, finaliza.

*O Instituto Coalizão Saúde não respondeu o pedido de entrevista e a Anahp informou que não teria disponibilidade de agenda

 

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