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Reforma do Ensino Médio: votação na Câmara reforça caráter privatista da MP

Modificações feitas na Câmara tornam ainda mais claras as possibilidades de parceria com instituições de ensino privadas para educação a distância. Deputados delegaram sociologia, filosofia, artes e educação física para BNCC
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 15/12/2016 12h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Manifestação de professores durante audiência pública sobre a MP 746 no Congresso Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Pelo novo texto da MP 746, “os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento” para o cumprimento das exigências curriculares do ensino médio. A redação, aprovada na última quarta-feira pelos deputados, difere da original ao deixar claro já no caput do parágrafo a possibilidade dos convênios, antes tratada de forma mais genérica. Os deputados já haviam aprovado o texto-base da reforma no dia 7 de dezembro e rejeitaram, no dia 13, quase a totalidade das emendas apresentadas, entre elas, as que garantiam, por exemplo, o retorno da obrigatoriedade das disciplinas de filosofia e sociologia nos três anos do ensino médio. Em contrapartida, foi aprovada uma emenda que garante a presença dessas disciplinas e também de artes e educação física entre os conteúdos da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), ainda em elaboração. Um destaque que impedia o repasse de recursos no âmbito da política de fomento às escolas de tempo integral para organizações sociais assumirem a gestão das escolas também foi rejeitado. Os deputados descartaram ainda a modificação ou supressão de trechos da MP como o que garante a admissão de profissionais com notório saber para ministrarem disciplinas.

Para o secretário de assuntos educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, o texto aprovado na Câmara continua trazendo consequências muito sérias para a educação básica e mostra ainda mais as contradições do projeto. “A proposta é fazer escolas de tempo integral, mas quando coloca propostas de complementar o conteúdo a distância, perde-se a característica de uma formação integral. Isso seguramente foi influência dos estados, colocando que não têm escolas com condições adequadas para que o aluno fique o dia todo. E também, com certeza, foi fruto da pressão do setor privado, que passará a receber recursos públicos também para aplicar esses conteúdos”, observa.

Para o professor, a discussão do projeto na Câmara e a votação final, sobretudo no debate acerca da reinclusão das disciplinas de filosofia e sociologia, mostrou, mais uma vez, o conservadorismo do parlamento. “Essa é uma característica dessa legislatura. São pessoas ligadas a setores que têm uma visão muito restrita do Estado e da perspectiva de formação integral das pessoas e trabalham de forma corporativa. Eles têm clareza de que essas são disciplinas importantes para a formação humana e sabem que elas podem contribuir para o processo de conscientização e atuação política e querem desmontar tudo isso para continuar o domínio”, destaca, apontando também a existência de outros projetos dessa legislatura que caminham no mesmo sentido, como o que institui o programa Escola sem Partido.

Durante a discussão da redação final da reforma, parlamentares contra a inclusão de sociologia e filosofia acusaram os deputados favoráveis de quererem a doutrinação de esquerda dos estudantes. “Estão propondo a obrigatoriedade de sociologia e filosofia no ensino médio em função de doutrinação. Por que não estão preocupados com física, com química ou biologia?”, disse Rogério Marinho (PSDB-RN), autor do projeto que institui o Escola sem Partido na Câmara federal. O deputado Chico Alencar (Psol-RJ) rebateu com ironia: “Eu fico espantado de ouvir dizerem aqui que filosofia e sociologia é doutrinação. Quem sabe Emile Durkheim ou Max Weber, que estão no panteão dos sociólogos, são de esquerda agora? Hegel, na filosofia, Platão, Aristóteles, também? Essas declarações comprovam a urgência premente no ensino médio de (ensinar) filosofia e sociologia para a gente não ser tacanho, tecnocrata, redutor. Aliás, o sociológico Fernando Henrique, que é um homem muito estudado, há de concordar”.

Carga horária

Pelo texto aprovado, a carga horária anual do ensino médio deve passar das atuais 800 para mil horas nos próximos cinco anos e deverá ser ampliada progressivamente para 1.400 horas. Da mesma forma como previa o projeto enviado pelo Executivo, a formação passa a ser dividida em duas partes: os conteúdos previstos na BNCC e os chamados itinerários formativos que devem ser escolhidos pelos estudantes – linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas. A diferença agora é que a BNCC ocupará uma fatia um pouco maior – até 1800 horas contra 1200 anteriormente. A nova redação também inclui a integração entre o itinerário e a Base a critério dos sistemas de ensino, sem, no entanto, explicitar como se daria esse processo.

Heleno Araújo destaca que a modificação no tempo destinado à Base é pouco efetiva. “As escolas não conseguirão ter condições adequadas para oferecer os itinerários, muito menos a formação profissional, então, provavelmente, vão fazer uma composição repetindo conteúdos para oferecer o tempo integral. Foi o que aconteceu em Pernambuco, e o ministro da educação é de lá: os alunos tinham todas as disciplinas pela manhã e à tarde um reforço de química, matemática e português para melhorar a nota do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]. Então, na verdade, a intenção é melhorar o Ideb, não garantir uma formação integral”, critica.  Para o professor, também é inócua a parte do texto aprovado na Câmara que aumenta o período de repasse de recursos do governo federal para os estados de cinco para dez anos a fim de fomentar as escolas de tempo integral, sobretudo no contexto de aprovação da PEC do teto de gastos. “Esse repasse está condicionado ao orçamento da União e a cada ano isso será decidido pelo Ministro da Educação. Com a PEC 55, o orçamento do Ministério da Educação vai ser reduzido e a tendência é esse repasse ir escasseando. Corre-se o risco até mesmo de o governo falar que não haverá condições de repassar esses valores”, pondera.

Política excludente

Segundo o diretor da CNTE, a entidade continuará mobilizada contra a reforma no Senado e vai também orientar as escolas para que a comunidade escolar se recuse a aderir à política de tempo integral.  “É um crime contra a população o governo ficar propagandeando um novo ensino médio, porque a reforma vai atingir a princípio muito poucas escolas. O discurso é que com o passar do tempo vai chegar em todas, mas essas políticas nunca chegam. A escola do Anísio Teixeira nunca chegou, as escolas polivalentes nunca chegaram, a do Brizola também nunca chegou para todo mundo”, afirma Heleno. Ele lembra que a portaria que regulamenta a política de fomento às escolas de tempo integral estabelece um número máximo de unidades por estado que podem aderir ao programa e essa quantidade varia entre oito e 30 escolas, no total de apenas 572 em todo o país. Heleno explica que, na prática, as escolas não contempladas com a política de ampliação do tempo de aula, vão ter muitas dificuldades para realizarem as mudanças previstas na MP. “Não tem como a escola que não ampliar o tempo estabelecer, por exemplo, os itinerários formativos, que precisam da jornada ampliada. Até porque essas unidades vão continuar com três turnos, com alunos do ensino médio na manhã, tarde e noite e não haverá como colocar, por exemplo, o itinerário no contra turno. Então, é uma política limitada, que retira direitos porque, inclusive, essas escolas que aderirem à política de tempo integral vão ter que reduzir o número de alunos atendidos”, reforça, lembrando que ainda há cerca de 600 escolas ocupadas pelos estudantes contra a PEC do teto dos gastos e também contra a reforma do ensino médio.

A MP 746 agora segue para o Senado e precisa ser aprovada até o dia 2 de março, caso contrário perde a validade. “Vamos manter a resistência. O PNE [Plano Nacional de Educação] diz que o prazo para que todos os sistemas de ensino criassem leis sobre gestão democrática era junho deste ano e isso não foi cumprido. É um objetivo nosso porque, com essa lei, você tem um conselho escolar deliberativo e uma condição melhor de as escolas tomarem o rumo em suas mãos de acordo com cada realidade. É isso que tem que acontecer”, defende.

 

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