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Saúde e educação em Cuba: um panorama aos 50 anos da Revolução

Sistemas públicos de qualidade e indicadores se destacam positivamente no cenário mundial
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 01/11/2009 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Entrada do exército rebelde em Havana, no dia 8 de janeiro de 1959 Foto: reproduzida do livro 'Fidel Castro: uma biografia consentida', de Claudia Furiati

Na década de 1950, a maioria da esquerda mundial, orientada pelas formulações então hegemônicas entre os Partidos Comunistas, defendia que a revolução socialista nos países subdesenvolvidos latino-americanos aconteceria por etapas: esses países precisariam passar por uma primeira revolução, democrático-burguesa, para, processualmente, criarem as condições para a revolução socialista. Nesse cenário, uma pequena ilha do Caribe, historicamente dependente do imperialismo e muito próxima geograficamente da já principal potência capitalista mundial, os Estados Unidos, desenvolveu uma luta de libertação popular que rompeu com esse modelo. A surpresa virou fato consumado em 1° de janeiro de 1959, quando as forças revolucionárias unificadas pelo Movimento 26 de Julho triunfaram e o então ditador de Cuba, Fulgêncio Batista, abandonou a ilha. Cinquenta anos depois, em 2009, a análise desse processo pode ajudar a entender um pouco mais sobre o caminho seguido por Cuba no desenvolvimento de políticas sociais, especialmente de saúde e educação, reconhecidas mundialmente.

"O grande ponto é o fator exemplo: um país relativamente pobre, que não tem desenvolvimento industrial muito sofisticado e que, no entanto, consegue garantir à população padrões bastante avançados em saúde e educação"

Carlos Alberto Barão

Da erradicação do analfabetismo à universalização do ensino superior

Mesmo que, nos primeiros anos das lutas populares, o caráter da Revolução Cubana não fosse claramente socialista, já no início da década de 1960, com o desenvolvimento do processo, esse caráter foi definido. O Estado, composto pelo poder popular constituído em Cuba, passou a assumir, a partir de 1959, a responsabilidade pela garantia dos direitos básicos, e a política de educação cubana se voltou principalmente para a ampliação do contato da população com as políticas sociais. Em 1961, teve início a Campanha Nacional de Alfabetização, que percorreu todo o país e atingiu áreas remotas, sobretudo rurais. Dados do site da Embaixada de Cuba no Brasil apontam que, em 1958, 23,6% da população cubana era analfabeta. No campo, a taxa de analfabetismo era de 41,7%. Em dezembro de 1961, ao final do primeiro ano da campanha, a taxa de analfabetismo no país havia caído para 3,9%. Depois da erradicação do analfabetismo, se iniciou um processo de paulatina universalização da educação.

Para viabilizar o projeto de saúde cubano, grande parte das políticas de educação no país está voltada para a formação de profissionais para o setor. Miguel Márquez, médico equatoriano que participou da instituição do sistema de saúde cubano e vive há anos no país, destaca a relação da formação dos profissionais da saúde com as prioridades da Revolução: “Com o triunfo da Revolução, a saúde passou a constituir uma das prioridades do Estado. Com a criação do Sistema Nacional de Saúde, iniciaram-se programas crescentes e contínuos para a formação de pessoal auxiliar e técnico, baseados em princípios claramente estabelecidos: a articulação entre docência/serviço/pesquisa e entre estudo/trabalho e a concepção internacionalista e integral dos alunos, materializada através de sua incorporação programada ao longo da carreira a atividades culturais, políticas, linguísticas, esportivas e de defesa da pátria”, diz.

A formação dos trabalhadores da saúde em Cuba percorre uma série de etapas, que correspondem aos diferentes momentos da Revolução. “Em Cuba, em 1959, a disponibilidade de recursos humanos em saúde era muito precária e insuficiente. Dos 6 mil médicos que havia no país, 3 mil se foram para os EUA no primeiro ano da Revolução. A existência de outros profissionais da saúde era muito escassa ou nula”, conta Julio Portal, decano da Faculdade de Tecnologia da Saúde da Universidade de Ciências Médicas de Havana. Como resposta, logo após a Revolução implementou-se uma política de formação de técnicos de nível médio e auxiliares, capacitados para o atendimento das demandas mais urgentes da população. A política previa a gradativa elevação dos níveis de formação desses profissionais.

Na década de 1970, foram criados os institutos politécnicos da saúde. Construídos com modernos recursos de ensino, áreas esportivas, recreativas, culturais e laboratórios, eles objetivavam a oferta de uma formação técnica e profissional integral, que pudesse aumentar a qualidade do sistema de saúde. Décadas depois, Cuba iniciou a gradativa conversão desses institutos em faculdades ou polos universitários. Esse processo atende, segundo Julio Portal, à perspectiva de universalização do ensino superior através da integração com a formação técnica: “O programa de universalização do ensino superior idealizado por Fidel Castro começou em 2003 como uma expressão da massificação do ensino universitário em Cuba. A intenção não é substituir o ensino técnico, mas sim integrá-lo com a educação superior para garantir um egresso com maior nível de conhecimentos e cultura geral integral, que a todo o momento coloque em prática o pensamento científico e desenvolva novas competências profissionais”, explica.

Saúde universal: concepção para dentro e fora de Cuba

Nos primeiros três anos após a tomada do poder a política de saúde em Cuba foi dedicada à atenção aos principais problemas que atingiam a população, à extensão dos serviços a todas as áreas do país e ao início de um processo de integração que, na década de 1970, resultou no estabelecimento do Sistema Nacional de Saúde. As principais medidas nesse período foram a criação do Serviço Médico Social Rural, o aumento do orçamento estatal para a saúde e a nacionalização dos laboratórios farmacêuticos, farmácias, clínicas privadas e mutualistas.

Segundo Julio Portal, a universalização da saúde foi uma das principais concepções e conquistas da política formulada pela Revolução: “Entre os principais êxitos da saúde pública na etapa revolucionária de Cuba está a consolidação de um sistema gratuito, com cobertura a toda a população cubana e que contribuiu consideravelmente, através de sua vocação internacionalista, para melhorar os níveis de saúde de outros povos. Além disso, destacam-se o desenvolvimento de uma medicina preventiva encaminhada de modo a evitar que as pessoas adoeçam, a criação de programas de atenção especial a grupos sensíveis e de risco, o movimento de promoção e educação para a saúde, a introdução de tecnologia de ponta nos serviços de atenção primária e a consolidação de um potente sistema de formação e superação de recursos humanos que abarca jovens de outros países”, diz.

Exemplificando com a política internacionalista, Carlos Alberto Barão, historiador e integrante da Casa da América Latina , explica que a concepção de saúde que orienta a política cubana é determinada, em todos os seus aspectos, pelos princípios socialistas da Revolução: “O projeto de internacionalização da saúde está totalmente relacionado ao projeto revolucionário. Isso remonta à concepção de homem a ser criado, o ‘homem novo’ formulado por Che Guevara e, também, aos ensinamentos de Jose Martí, líder dos movimentos de independência do século 19 em Cuba. Isso faz parte da concepção de que o ser humano tem que agir em consonância com seu pensamento e, ao agir, reforça esse pensamento. Os cubanos vivem exatamente o padrão médio de vida dos lugares para onde vão e, ao fazer isso, realmente ajudam e compartilham o destino daquelas pessoas, beneficiando-as e saindo transformados de lá”, avalia.

Resultados e perspectivas

Dados das Estatísticas Sanitárias Mundiais de 2009, publicadas pela Organização Mundial de Saúde, mostram que, em Cuba, existem 59 médicos para cada 10 mil habitantes – no Brasil, o índice é de 12 médicos por 10 mil habitantes e, nos EUA, 26.  O número de leitos hospitalares por 10 mil habitantes também é mais expressivo em Cuba: são 49, enquanto o Brasil oferece 24 e os EUA, 31. No campo do financiamento, nota-se a disparidade entre as iniciativas pública e privada: em Cuba, 91,6% do investimento em saúde é feito pelo governo, enquanto essa taxa no Brasil é de 47,9% e nos EUA de 45,8%.

Na educação, os dados também correspondem às avaliações positivas. O levantamento do Anuário Estatístico de 2008, elaborado pelo Escritório Nacional de Estatísticas de Cuba, mostra que o número de formados em educação técnica profissional passou de 74 mil em 2004 para 84 mil em 2008. Os dados expressam também a política de universalização do ensino superior: em 2004, eram quase 20 mil os graduados e, em 2008, o número superou os 71 mil. Desses, mais de 3.500 eram graduados na área de Ciências Médicas em 2003; em 2008, esse número subiu para a casa dos 24 mil.

“Talvez em Cuba as expectativas tenham sido superadas. São movimentos em relação à educação, à saúde, se firmando ao longo do tempo no país e impactando toda a região. O grande ponto é o fator exemplo: um país relativamente pobre, que não tem desenvolvimento industrial muito sofisticado e que, no entanto, consegue garantir à população padrões bastante avançados em saúde e educação”, avalia Carlos Alberto Barão.

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