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Pronatec e os caminhos da educação profissional

Pronatec não prioriza a educação profissional integrada ao ensino médio e sinaliza com mais recursos para o Sistema S
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 13/05/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Muitas pessoas acreditam que a formação profissional é um caminho para a garantia do emprego. Exemplos como o do ex-presidente Lula, torneiro mecânico formado em uma escola do Sistema S, reforçam essa ideia. "Contra o apagão da mão de obra", dizia o título da
matéria do jornal O Globo a respeito do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), na semana em que ele foi lançado oficialmente. No último dia 28 de abril, um projeto de lei criando o programa foi enviado ao Congresso Nacional e começa a tramitar em
regime de urgência. Entretanto, como o Pronatec é um apanhado de várias ações, algumas iniciativas já estavam acontecendo, como o Brasil Profissionalizado. Pesquisadores entrevistados pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), ao analisarem o documento de criação do Pronatec, afirmam que a política proposta pelo governo reforça essa ideia de formação profissional para o emprego, ao custo de, muitas vezes, não garantir de fato uma educação de mais qualidade e mais completa às populações pobres. Já o MEC argumenta que as ações garantirão democratização do acesso à educação profissional. 

Além de congregar programas como o Brasil Profissionalizado, que aporta recursos para a criação de redes estaduais de educação profissional e o E-TEC Brasil, de educação profissional à distância, o Pronatec prevê iniciativas novas no campo da educação
profissional,
mas já utilizadas para o ensino superior . Uma delas é a oferta de bolsas a estudantes e trabalhadores para estudarem em cursos técnicos de instituições privadas ou do Sistema S, com os recursos sendo destinados a essas instituições. Outra é a mudança do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) que, após a aprovação do projeto de lei, passará a se chamar Fundo de Financiamento Estudantil, com a mesma sigla, e também poderá ser utilizado por estudantes e trabalhadores para custear suas formações em cursos técnicos, ou ainda por empresas para pagar cursos a seus funcionários. 

De acordo com a diretora de articulação e projetos especiais da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) do MEC, Patrícia Barcelos, o Pronatec é o resultado de uma política de investimento na educação profissional em curso desde 2003. "Há uma série de políticas que foram sendo realizadas para atender ao desenvolvimento do país, que implica termos profissionais com formação adequada para o mundo do trabalho. Então, o Pronatec é um conjunto de várias ações, entre elas o Brasil Profissionalizado, a expansão da Rede Federal de Educação Profissional, o E-TEC Brasil. E também de novas ações propostas, como o Fies técnico e o bolsa-formação, que vem no sentido de fazer uma grande ampliação na oferta de cursos técnicos para a concomitância do ensino médio e também para a qualificação do trabalhador assegurado pelo seguro desemprego e do beneficiário do bolsa-família", sintetiza.

Antes mesmo do lançamento do  programa, mas já com algumas das iniciativas que seriam contempladas pelo projeto de lei de criação do Pronatec anunciadas pelo MEC, pesquisadores da área da educação identificaram problemas no Programa. Com o lançamento oficial,
as análises se mantêm. Para a professora da EPSJV e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Marise Ramos, fica claro que o governo federal escolhe um caminho, entre outros possíveis, para o fortalecimento da educação profissional. "Todas as ações aqui induzem para a oferta da educação profissional de forma concomitante em todas as redes. Esse é um eixo forte do Pronatec. Outro eixo é o incentivo à participação do empresariado da educação, com uma dimensão estritamente privada junto com o Sistema S. Esses dois
caminhos são muito problemáticos", avalia.

Claudio Gomes, também professor-pesquisador da EPSJV, acredita que o governo federal "está tomando um atalho" ao expandir a educação profissional financiando a rede privada. Ele acredita que o problema está na forma como o governo e muitos setores da sociedade concebem a educação profissional. "Se a educação profissional for instrumento para conferir habilidades técnicas e cognitivas para capacitar a um emprego, então, o governo está fazendo o melhor. Se a educação profissional começar a ser entendida como um lugar de formação do trabalhador, aí precisamos de outra alternativa", afirma. E o professor acredita que, embora não seja fácil, é preciso fazer um esforço para entender a educação profissional de outra maneira. "A única forma de a educação profissional se legitimar numa perspectiva diversa desta instrumental é dizer que toda educação precisa ter educação profissional. Portanto, a educação profissional não é só o segmento que pensa a relação da educação com o processo produtivo imediato, com a demanda. Toda educação tem que pensar a formação do trabalhador. Toda educação básica tem que ser pensada à luz da compreensão de que aquele menino e aquela menina são trabalhadores, que vão, inclusive, em algum momento, ganhar a especificidade de formação", detalha.  Claudio reforça que é uma concepção complexa e inovadora, cujo entendimento precisa avançar bastante. Mas, para isso, diz, seria fundamental o aceno do MEC nessa direção.

Garantia de mão de obra qualificada?

Mesmo que se admitisse que o Pronatec seja um programa criado para solucionar o problema da falta de mão de obra, na análise de Claudio Gomes, o programa fracassará porque não é possível garantir trabalhadores qualificados no ritmo exigido pelo mercado. "A velocidade de incorporação tecnológica, de complexificação do trabalho simples, é muito superior à capacidade de formação desse trabalhador. É como se já estivéssemos inserindo esse trabalhador com data vencida. Ainda que se consiga inserir, não há nenhuma garantia de que amanhã este trabalhador já não seja incapaz, incompetente. Então, estamos inaugurando um processo contínuo e ininterrupto de qualificação profissional", destaca.

O professor da Universidade Feevale e pesquisador da área de educação e trabalho, Gabriel Gabrowski, também considera que o programa não resolve a falta de mão de obra. "O Pronatec é mais um programa que esperamos que dê certo, mas não resolve o problema do apagão de mão de obra, pois o país não precisa só de técnicos e de cursos de qualificação, mas de uma educação básica - especialmente um ensino médio de melhor qualidade -, e de uma educação superior de melhor qualidade. Neste sentido, esse problema nacional deve ser enfrentado de forma estratégica pelo novo PNE [Plano Nacional de Educação] e não por um programa isolado. Percebe-se que o MEC lança um projeto de lei de PNE para discutir, mas os programas continuam sendo o carro-chefe das ações. É muito pouco e frágil para o tamanho de nosso desafio educacional", opina.

Por que a concomitância?

Pelos dados do ultimo Censo Escolar, em 2010 havia mais de um milhão de matrículas na educação profissional. Destes, aproximadamente 240 mil estão matriculados no ensino médio integrado à educação profissional. Os mesmos dados mostram que houve um crescimento de 46% de 2007 a 2010 no número de matrículas gerais. Entretanto, as matrículas na educação profissional subsequente, oferecida aos alunos que já concluíram o ensino médio, representam 62% do total. Juntos, educação profissional integrada e concomitante ao ensino médio representam 38%.

Para Marise Ramos, a melhor forma de oferecer educação profissional é a modalidade integrada ao ensino médio, não apenas por uma questão de garantir ao estudante a formação propedêutica e profissional com apenas uma matrícula na mesma instituição, mas porque nessa concepção se trabalha uma perspectiva de integração curricular e formação integral. Marise explica que a critica à forma concomitante - em que o aluno faz ensino médio e educação profissional ao mesmo tempo, mas em instituições diferentes - está no fato de esta modalidade apresentar uma formação dual, que separa a teoria da prática, e além disso, no contexto brasileiro,  instituir formações diferentes para diferentes classes sociais. O quadro é agravado, segundo a professora, pela atual condição do ensino médio chamado propedêutico. "O aluno terá num turno uma formação básica, de perspectiva mais geral, e no outro uma perspectiva instrumental da formação, reiterando então uma dicotomia conceitual. Quem tende a procurar a educação profissional concomitante? Os filhos das classes trabalhadoras, de segmentos mais pobres, que têm a urgência de trabalhar e que vêm de um ensino médio que, em geral, não é o de melhor qualidade. Já aqueles que estão no ensino médio de boa qualidade e cujos pais são de um segmento mais privilegiado - até
da classe trabalhadora menos empobrecida - vão fazer só ensino médio e não o médio mais o profissionalizante", salienta. 

Marise reconhece que o ensino médio integrado à educação profissional não é a única forma de oferta. Segundo a professora, outras formas também podem ser consideradas, inclusive a concomitante. Mas, para isso, é preciso que haja uma coerência e um planejamento que assegure a não dissociação entre teoria e prática na formação dos trabalhadores. 

Uma das iniciativas do Pronatec é exatamente a oferta de bolsas e financiamento para os estudantes do ensino médio público se matricularem em cursos de formação profissional técnica de nível médio na modalidade concomitante em instituições privadas ou escolas do Sistema S. A diretora do MEC explica que apesar de ser uma prioridade do MEC incentivar o ensino médio integrado, é preciso possibilitar aos estudantes atualmente matriculados na rede pública propedêutica uma oportunidade de formação técnica. "Nós trabalhamos incentivando e fortalecendo sempre o ensino médio integrado, porque se olharmos os índices como os do Enem, veremos que os estudantes do ensino médio integrado têm melhor desempenho porque vivenciam a parte propedêutica; eles conseguem experienciar os conhecimentos das áreas das ciências. Porém não é possível deixar de oferecer aos milhões de alunos que nós temos no ensino médio propedêutico vagas no curso técnico. Entendemos que para chegarmos a um patamar de ensino médio integrado em larga escala há um caminho. Como tudo em educação, são processos de construção a longo prazo. Agora é importante ofertar aos estudantes de ensino médio público uma formação técnica concomitante", diz.

Para Claudio Gomes, no entanto, com o Pronatec, o MEC não sinaliza esse horizonte do ensino médio integrado a longo prazo. "Esse sinal não é dado. O Pronatec veio aperfeiçoar um projeto que talvez o governo Fernando Henrique não tenha conseguido, que é fazer essa cisão entre a educação básica propedêutica e a educação profissional. Porque toda a expansão se dá dessa forma, desintegrada. O governo federal não está dizendo com o Pronatec para as escolas fazerem educação profissional concomitante e integrada. Ele está falando que quer a modalidade concomitante para estimular a conclusão do ensino médio. Quem vai dar essa profissionalização é a escola de educação básica? Não. São as escolas profissionais estaduais, as escolas privadas e o Sistema S", observa.

Marise Ramos alerta ainda para os riscos de a dupla matrícula dos estudantes no ensino profissional concomitante ocasionar a migração dos estudantes de ensino médio para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). A professora faz a afirmação com base em estudos  realizados quando da edição do decreto 2.208/1997, que proibia a educação profissional integrada ao ensino médio, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. "O estudante migrava para a EJA porque o tempo era mais curto e considerado como uma modalidade que pode ser mais fácil. Como a obrigatoriedade do ensino médio vai até os 17 anos e a partir dos 18 ele pode se matricular na EJA, essa pode ser uma tendência. O que o país estaria fazendo é a consolidação de  certa modalidade de educação: a EJA com a educação profissional", diz.

Como o projeto de lei do Pronatec prevê também a transferência de recursos financeiros às instituições de educação profissional e tecnológica das redes públicas estaduais e municipais, Claudio destaca a autonomia dessas instituições para oferecer o ensino médio
integrado. "Nada impede que o gestor diga, por exemplo: ‘nós vamos abrir mais 20 escolas estaduais, dez delas exclusivamente concomitantes e dez integradas", acrescenta.

Os pesquisadores apontam que um aspecto positivo do Pronatec pode ser exatamente a abertura das instituições públicas para os trabalhadores, no sentido inverso. Pelo programa, também estão previstas ações de expansão da rede federal de educação profissional, bem como das redes estaduais. No caso das escolas estaduais, os recursos para construção, adequação da estrutura física e materiais pedagógicos virão por meio do Programa Brasil Profissionalizado. Assim, essas redes públicas, tanto a federal quanto a estadual, poderão receber estudantes do ensino médio propedêutico e trabalhadores para a realização de cursos de formação técnica de nível médio de forma concomitante ou de formação inicial e continuada. Nesses casos, as instituições públicas receberão recursos adicionais pelos estudantes ou trabalhadores atendidos por meio das políticas de bolsas (bolsa-estudante e bolsa-trabalhador). "Pelo tipo de instituição, conhecimento, infraestrutura, formação dos professores, história das instituições públicas, essa relação pode ser profícua porque pode gerar, inclusive, a contradição na rede estadual que oferece o ensino médio propedêutico. A formação de qualidade na educação profissional pode ser revertida em benefício da formação geral do estudante. Porque aí também eu estou considerando que a concepção dessas instituições pode ser disputada em benefício das necessidades dos trabalhadores. E ainda que trata-se de financiamento público para o fortalecimento da estrutura pública", diz Marise.

Gabriel Gabrowski também considera que a expansão das redes públicas seria importante para garantir mais qualidade na formação dos estudantes e trabalhadores. "O setor privado já é maioria em matriculas, estabelecimentos e cursos. A união deve priorizar, então, políticas públicas com os estados, já que estes podem garantir uma maior oferta pública em curto espaço de tempo. O gargalo maior está na contratação, valorização e qualificação dos professores, que são muito mal remunerados pelos estados. Este é um problema que a União e os Estados precisam enfrentar juntos, caso contrário, será mais um plano de pouca efetividade", alerta.

Sistema S

Para o MEC, é importante valorizar "todas as instituições que estão trabalhando com educação profissional". "É preciso valorizar em especial o Sistema S que são instituições já consolidadas de educação profissional, com grande qualidade. Não há motivo para não pontencializar também esses sistemas. O investimento no setor público continua muito forte, foram anunciadas novas 200 escolas pela presidenta. Além dessas, há a formação via E-TEC Brasil, que são vagas públicas, mais a expansão das redes estaduais. É um grande investimento articulado para conseguir chegar a todos os espaços", diz Patrícia.

Para Marise, entretanto, um grave problema quando se valorizam as instituições privadas num programa como o Pronatec é a dificuldade de a sociedade interferir na maneira como a formação será ofertada. "Na estrutura pública você disputa a concepção de educação,
enquanto na estrutura privada, apesar de ela ter que obedecer a lei geral, a lógica de funcionamento é de outra natureza", pontua. Um exemplo é o Sistema S, que tem destaque no Pronatec.  "A formação proporcionada pelas escolas do Sistema S é economicista porque tem uma vinculação direta e imediata com o mercado de trabalho. Pode-se argumentar que a educação profissional tem mesmo essa vinculação, mas nunca podemos esquecer que, além disso, há um corte de classe. Trata-se de um trabalho de natureza operacional, no âmbito de uma concepção de desenvolvimento brasileiro que é de desenvolvimento dependente. Então, é sempre a formação dos trabalhadores para tecnologias mais simples e obsoletas", explica. E completa: "É também uma formação tecnicista porque processa a organização curricular e a seleção dos conteúdos com base nas competências a serem demonstradas no mercado de trabalho. A ênfase nos métodos e nas técnicas para aprendizagem é pragmática", completa.

O financiamento do Sistema S, que recebe recursos considerados públicos - advindos da contribuição compulsória das empresas, que repassam esse custo ao consumidor - já era uma polêmica antes do lançamento do Pronatec. E o Programa, que dá destaque a essas instituições como executoras, é ambíguo em relação a esse problema. "Falta demonstrar qual será a participação exata do Sistema S, mas, sem dúvida, o sistema S será o maior executor, receberá mais recursos e será o agente prioritário no Pronatec. É sim transferência maior de recursos para o sistema S", afirma Gabriel Grabowski.

De fato, nos materiais divulgados sobre o Pronatec, o MEC afirma que, por intermédio desse Programa, será dada celeridade ao acordo, firmado em 2008, segundo o qual dois terços dos recursos dessas entidades devem ser aplicados em cursos oferecidos gratuitamente. Entretanto, na página do MEC dedicada ao Pronatec e no projeto de lei está previsto mais aporte de recursos para o Sistema. Tanto a bolsa-formação estudante, voltada para alunos da rede pública estadual, quanto a bolsa-trabalhador, voltada para quem já está no mercado de trabalho, por exemplo, serão financiadas com recursos públicos específicos e não com o aproveitamento dos recursos que o Sistema já tem e que ainda não são aplicados em vagas gratuitas. Patrícia Barcelos, da Setec/MEC, confirma que as iniciativas do Pronatec não estão no âmbito do acordo de gratuidade. "Há o acordo de gratuidade, que é uma coisa, o bolsa-formação e o Fies: são três ações separadas. O acordo de gratuidade irá continuar, tem metas a alcançar e, com a aprovação do projeto de lei, terá a possibilidade de ampliação das vagas do Sistema S [para os estudantes de escolas públicas, para os trabalhadores e para os jovens que já tenham concluído o ensino médio público] pelo Fies e pelo bolsa-formação", diz .

Pronatec no Congresso

Como o projeto de lei que cria o Pronatec foi encaminhado ao Congresso em regime de urgência, o prazo de tramitação da proposta é de três meses. De acordo com o MEC, a expectativa é que ainda em 2011 as ações do programa comecem a ser desenvolvidas. "Há várias
ações que serão decorrentes do projeto de lei, mas é necessário ter a lei para, a partir daí, iniciarmos os trabalhos. Algumas iniciativas já têm ações em andamento, como o Brasil Profissionalizado e a expansão da rede federal, e há projetos complementares, decretos e outros instrumentos que decorrerão da lei", afirma Patrícia.

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