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Rumos da Educação Profissional

Versão final do Pronatec, sancionada pela presidente Dilma, mantém as principais polêmicas do projeto original
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 19/01/2012 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram, a presidente Dilma Roussef sancionou, o Ministério da Educação defende com unhas e dentes. Mas boa parte dos pesquisadores e militantes da educação tem desconfianças em relação ao projeto ou o consideram um total recuo na política de educação profissional brasileira. Esse é o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), que promete investir R$ 24 bilhões em educação profissional até 2014 — embora, desse recurso, apenas R$ 2 bilhões financiem novas iniciativas, como as bolsas-formação: o restante diz respeito à continuidade de ações que já existiam, como o Brasil Profissionalizado e a expansão dos Institutos Federais.

Quem oferta

Uma das maiores novidades da versão final do Pronatec foi a inserção do Sistema S no sistema federal de ensino. Essas instituições estavam previstas como ofertantes de vagas no Programa desde o início, mas agora elas passam a compor um sistema que até hoje abrigava apenas instituições públicas. E o que muda com isso? Como explica o artigo 20 do projeto de lei, os “serviços nacionais de aprendizagem” passam a ter “autonomia para a criação e oferta de cursos e programas de educação profissional e tecnológica”. Isso significa que seus cursos não precisam mais ser submetidos aos conselhos estaduais de educação, passando a depender apenas da autorização “do órgão colegiado superior do respectivo departamento regional da entidade”. Outra mudança seria a possibilidade de o MEC exigir prestação de contas direta dessas instituições. “Estamos resgatando o caráter público do Sistema S, que foi se perdendo nas últimas décadas”, explica Nilva Schroeder, coordenadora geral de desenvolvimento e monitoramento da educação profissional do MEC. Gabriel Grabowski, professor da Universidade Feevale e pesquisador da área de educação e trabalho, concorda: “Do meu ponto de vista, o governo está fazendo dois movimentos: um é de favorecê-los, dando autonomia didático-pedagógica, e incluindo-os no sistema público para receberem mais verba pública. Esse é o bônus. O ônus é a prestação de contas pública para o MEC”, opina. 

Os critérios e orientações para a transferência de recursos para o Sistema S no âmbito do Pronatec estão estabelecidos na resolução 61, de novembro de 2011, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Como agora faz parte do sistema federal de ensino, o repasse de recursos será direto, sem, portanto, necessidade de convênio, contrato ou qualquer outro instrumento. De acordo com a resolução, a transferência será feita ao departamento nacional dos serviços de aprendizagem — e não às instâncias estaduais. Cabe ao Sistema S, entre outras coisas, registrar, no sistema de gestão do Pronatec, todas as turmas e vagas oferecidas, a confirmação de matrículas e a situação final de todos os beneficiados pelo Programa, além de “prestar contas dos recursos financeiros recebidos para a implementação das ações relativas à oferta de vagas”.

Tudo isso vale apenas para as ações desenvolvidas no Pronatec. Paralelamente, continuam em vigor os decretos emitidos pelo ex-presidente Lula, em 2008, estabelecendo um percentual mínimo de vagas gratuitas que o Sistema S deve oferecer para estudantes da rede pública. “Não há nenhuma relação de transferência de oferta entre o que foi acordado como gratuidade e a oferta do Pronatec”, garante Nilva Schroeder.

Além do Sistema S, o Pronatec vai financiar cursos oferecidos por escolas privadas cadastradas no Fies (financiamento estudantil) Técnico e outras instituições de ensino “sem fins lucrativos”, por meio de convênio ou contrato. O Programa delega ao poder executivo a definição de “critérios mínimos de qualidade” para que essas entidades possam receber verba do Programa. Para Grabowski, em relação ao financiamento, é aí que reside o maior problema do Pronatec. “Uma escola técnica, por exemplo, de natureza comunitária, confessional, privada sem fins lucrativos, pode apresentar um projeto de R$ 1 milhão e recebê-lo, por uma decisão rápida e unilateral do governo. Isso dá margem a projetos com aprovação política”, analisa. Segundo ele, essa já prática acontece com outros recursos como, por exemplo, os do salário-educação. “O ministro tem uma margem de autonomia em relação a esses recursos para assinar convênios com base em projetos”, explica. E conclui: “Para mim, o Pronatec amplia e oficializa isso. Permite que algumas escolas que têm articulação possam chegar lá, apresentar projetos rápidos e ganhar os recursos”.

O que se oferta

“O Sistema S está avançando de forma orgânica, fazendo penetrar de forma muito forte o seu pensamento, que é de uma educação que serve ao mercado”. A avaliação, que manifesta pouco otimismo em relação ao Pronatec, é de Gaudêncio Frigotto, professor e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O problema, segundo ele, é que o governo Lula “fez muita coisa” em relação à educação profissional, mas não disputou a concepção educativa. Gaudêncio vê, portanto, uma grande chance de prevalecer a concepção que ele reconhece como orientadora do Sistema S e que vai, por exemplo, no sentido contrário da defesa da integração entre a formação profissional e a formação básica. De fato, essa é outra das maiores polêmicas do Pronatec desde o seu anúncio: o fato de o Programa basear sua oferta em cursos na modalidade de educação profissional concomitante ao ensino médio . “Em vez de ter a educação profissional e tecnológica integrada à educação básica – porque não existe uma boa formação profissional sem uma boa formação geral —, agora a ótica caminha enfaticamente para a ideia do ensino profissionalizante. E o Pronatec é a prova dos nove. Estamos retroagindo aos anos da ditadura”, analisa Gaudêncio. E sentencia, fazendo referência a um dos principais argumentos governamentais sobre a importância do Pronatec: “A história da educação brasileira mostra que esse tipo de formação não responde sequer às necessidades do mercado, pelo menos não dessas empresas que precisam de gente com uma base científica e tecnológica para operar o sistema produtivo hoje. O Brasil não vai deixar de importar mão de obra de nível médio, vai importar mais. Porque esse Programa não vai formar o jovem para dar conta sequer do mercado. Sem dúvida nenhuma, é um retrocesso do ponto de vista de concepção”.

Nilva Schroeder, no entanto, garante que a prioridade do MEC continua sendo a oferta de educação profissional integrada ao ensino médio e que, apesar de incentivar outra modalidade, o Pronatec não vai abrir mão desse princípio. “No momento em que temos que ampliar a oferta, a medida visível foi juntarmos duas instituições — uma de formação técnica e outra de educação básica — para trabalharem no mesmo curso. E, ao fazermos isso, a oferta possível foi a concomitância. Queremos atender principalmente estudantes que estão no ensino médio das redes estaduais e que não teriam outra possibilidade de profissionalização se não por meio da concomitância”, explica. Embora reconheça como legítima a oferta na modalidade concomitante nos casos em que essa é a única oportunidade de se oferecer educação profissional, Almerico Lima, superintendente de educação profissional da Secretaria de Educação da Bahia e ex-diretor de Qualificação do Ministério do Trabalho e Emprego, aponta como inevitável o que ele chama de “tensão da prática”. “Eu vi pessoas dos Institutos Federais dizendo que demoraram muito tempo para convencer o pessoal a fazer a modalidade integrada e agora iam ter que convencê-los a fazer o concomitante. Acaba existindo essa tensão, mesmo que o objetivo do MEC não seja esse. Porque os recursos são escassos, as estruturas são pequenas, os professores não são tantos assim, e você acaba tendo que dividir a atenção”, explica. Ainda assim, ele considera que o ponto de resistência estará nas instituições públicas. “A rede federal vai trabalhar fundamentalmente com o ensino médio integrado à educação profissional e com o Proeja [integração com a Educação de Jovens e Adultos], o que é positivo. O Pronatec também prevê a continuidade do Brasil Profissionalizado, que é a ampliação das redes estaduais de educação profissional, e estas, em sua maioria, têm optado pela modalidade integrada — no caso da Bahia, por exemplo, nós temos 75% de ensino médio integrado à educação profissional contra menos 25% de subseqüente”, analisa.

Nilva garante que o MEC está tomando uma série de procedimentos para induzir uma proposta pedagógica de concomitância orientada pelo princípio da integração curricular. Para isso, o Ministério organizou, em novembro de 2011, um seminário para discutir a concomitância, com a presença de representantes de toda a rede federal, das redes estaduais e do Sistema S, além da Secretaria de Educação Básica do próprio MEC. Como desdobramento do encontro, foi produzido um Documento de Referência para a Concomitância no âmbito do Pronatec, que aposta no acompanhamento pedagógico como estratégia para garantir a devida articulação entre as duas instituições envolvidas na oferta de cada curso. Segundo Nilva, o “diferencial” é que as duas instituições devem construir juntas um “plano de ações articuladas com vistas ao acesso, permanência e êxito em inserção socioprofissional”.

Mas qual a real capacidade de indução desse documento? “Acho difícil que uma cultura tão arraigada como a do Sistema S se dobre ou aceite essas mudanças do campo pedagógico tão facilmente assim”, opina Almerico, destacando que, embora tenham estrutura, essas instituições não têm mais nem educadores. “Depois da redução de custos que fizeram nos anos 1990, o que eles têm é um banco de talentos”, diz. Além disso, os prazos não são favoráveis: todo esse processo de indução acontece praticamente no mesmo período em que foi definida a oferta dos cursos que começariam junto com o ano letivo de 2012.

Alberico, no entanto, identifica um problema ainda maior em relação à qualidade do ensino oferecido. “O que mais me preocupa é o financiamento das demais escolas privadas que participarão do Pronatec pelo Fies. Porque essas escolas são muito mais dispersas. Quem participa de conselho [de educação] sabe da dificuldade que temos para aprovar muitas escolas e, quando aprovamos, é com o mínimo do mínimo do mínimo. Há escolas de enfermagem, por exemplo, com uma pequena sala, que têm condição de dar o curso, mas não têm condição de expandir esse curso”, avalia.

Nilva explica que, para participarem do Fies Técnico, as escolas privadas precisarão ser habilitadas. Para isso, elas passarão por um processo de avaliação in loco, feita por comissões compostas por professores dos Institutos Federais, que vão aferir a estrutura da instituição para a oferta de cada curso.

Mas como influenciar essas escolas em relação à concepção pedagógica? “Esperamos que tudo que estamos fazendo como indução nesse sentido possa repercutir nas escolas privadas”, aposta Nilva, explicando, no entanto, que diferente do Sistema S, essas instituições não participaram nem do seminário nem das reuniões de construção do documento de referência sobre a concomitância que o MEC promoveu. Além disso, ela considera que outro caminho para aferir a qualidade dessa formação privada será a criação de um sistema de avaliação dos cursos técnicos de todo o país, que o MEC está começando a construir, tendo como modelo o que já existe para os cursos de nível superior. Por fim, Nilva acredita que é possível regular a qualidade dessa oferta também pelo “controle social” dos próprios estudantes.

Formação Inicial e Continuada

Toda essa discussão sobre a qualidade do ensino que será oferecido por meio do Pronatec envolve não apenas os cursos técnicos mas também os cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC). Para Almerico Lima, a grande novidade do Pronatec é mostrar que o MEC reconhece a FIC como educação profissional. “Mas se isso não vier orientado por uma visão de elevação de escolaridade, com regulação, podemos cair numa grande armadilha”, alerta.

O perigo, segundo ele, é que, tal como acontece com os cursos técnicos, só agora, com o Pronatec já sancionado, estão sendo discutidos os conteúdos e abordagens dos cursos de Formação Inicial e Continuada. Ele aponta a participação do Sistema S como um dificultador, já que essa rede tenderia a defender cursos de mais curta duração. O Pronatec estabelece 160 horas como carga horária mínima para cursos de FIC, mas, a partir da sua experiência tanto no Ministério do Trabalho quanto na gestão estadual da Bahia, Almerico defende um mínimo de 200 horas. A questão, no entanto, não está apenas na carga horária: ele também destaca a importância de se conseguir induzir que esses cursos sejam pensados na perspectiva de itinerários formativos, sinalizando para a continuidade da formação dos trabalhadores, e que, mesmo sendo menores em quantidade de horas, eles incorporem elementos de formação geral. “No caso de um curso para garçom, pode-se trabalhar a questão do inglês, da geografia e da explicação histórica. Ele não precisa aprender apenas a fazer ou servir a bebida, pode compreender o processo do turismo, entender mais sobre os países que estão visitando o estado em que ele trabalha”, exemplifica.

De acordo com Nilva, o MEC também está pensando em processos de indução para os cursos de FIC. Segundo ela, esse processo deve resultar num catálogo — tal como existe de cursos técnicos e tecnológicos — e deve ainda dar o pontapé inicial na discussão de diretrizes para essa modalidade de cursos. Ela ressalta que o Guia Pronatec que existe atualmente, não tem nenhuma função regulatória: é apenas a compilação da oferta de cursos de Formação Inicial e Continuada possível hoje.

No Pronatec, os cursos de Formação Inicial e Continuada são financiados por meio da bolsa-formação trabalhador, que é destinada ao “trabalhador e aos beneficiários dos programas federais de transferência de renda”, como o Bolsa Família e o Seguro Desemprego. Já os cursos técnicos são pagos por meio da bolsa formação estudante, voltada para o “estudante regularmente matriculado no ensino médio público propedêutico“, exclusivamente na modalidade concomitante.

Pactuação e prazos

Além da construção conjunta de um documento indutor da concepção pedagógica, Nilva destaca como um processo inédito, inaugurado pelo Pronatec, o fato de a oferta de educação profissional ser pactuada por todas as instituições que oferecerão cursos, públicas e privadas, no âmbito do estado, de acordo com as demandas locais — e não a partir de um catálogo pré-definido. O espaço que o MEC prevê para essa pactuação são fóruns estaduais, dos quais participem as instituições formadoras, a gestão estadual e também a sociedade civil. O prazo que os estados tiveram para informar ao MEC os cursos que serão oferecidos em 2012 — começando junto com o semestre letivo — esgotou em 19 de dezembro, sem que, no entanto, esses fóruns estivessem constituídos. Seguindo o mesmo calendário, mas num processo capitaneado pelo Ministério de Desenvolvimento Social, os estados também estabeleceram a oferta de cursos FIC para beneficiários dos programas de transferência de renda em 2012. Mas já houve, em 2011, uma primeira chamada, com editais estaduais, para a oferta de cursos de Formação Inicial e Continuada voltados a estudantes do ensino médio, entendidos, nesse caso, como trabalhadores.