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Entrevista: 
Sonia Fernandes

'A autonomia didática, pedagógica e científica está mantida e o decreto permite aos institutos federais o acesso ao financiamento via Fundeb'

No dia 22 de março, o governo federal publicou no Diário Oficial o decreto 10.656, que regulamenta a lei de criação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), tornado permanente pela Emenda Constitucional 108, aprovada em 2020. Para a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, o decreto trouxe uma novidade: a possibilidade de recebimento de recursos do fundo a partir de convênios ou parcerias com as redes estaduais de educação para a oferta de cursos concomitantes de educação profissional técnica. O decreto prevê, para o recebimento dos recursos do Fundeb pelos institutos federais, o cômputo da chamada dupla matrícula tanto através da oferta de educação profissional técnica de nível médio nas formas integrada ou concomitante ao ensino médio regular quanto através do itinerário formativo da educação profissional, criado pela reforma do ensino médio. O texto suscitou leituras divergentes dentro da Rede Federal. De um lado, aqueles que viram no decreto uma abertura para a indução, via financiamento, da participação dos institutos federais na operacionalização da reforma do ensino médio e um enfraquecimento da concepção de ensino médio integrado à educação profissional, cuja priorização está prevista na lei de criação dos institutos federais. De outro, estão aqueles que veem uma possibilidade de reforçar o orçamento dos institutos com recursos do Fundeb através dos convênios. A presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), Sônia Fernandes, advoga que o decreto representa uma importante possibilidade de aporte de recursos aos institutos federais, sem comprometer sua capacidade de oferecer a formação profissional integrada ao ensino médio. Já o professor de sociologia do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) Mauro Sala - cuja entrevista você pode ler na seção 'Leia Mais' ao final desta pagina - traz uma visão crítica aos convênios previstos na norma, que para ele representam uma ameaça à formação integrada.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 24/05/2021 14h03 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

O decreto 10.656 enfraquece a concepção do ensino médio integrado à educação profissional oferecida pelos institutos federais? Por quê?

Não. Todo marco regulatório, seja decreto, lei ou coisa parecida, é passível de interpretação, ou interpretações. No que diz respeito ao decreto 10.656, na visão do Conif – e na minha em particular – ele regulamenta aquilo que já era previsto na própria lei de criação dos institutos, a 11.892:  no âmbito do ensino médio, ofertarmos na forma integrada, concomitante – que é o que o decreto regulamenta de maneira mais precisa – ou subsequente. 

O decreto não muda a lei que nos cria em percentuais. Ela coloca que, prioritariamente, um mínimo de 50% das nossas vagas deve ser ofertado na forma do ensino médio integrado. Então o decreto não muda a discricionaridade das nossas autarquias nesta oferta.

No caso específico da concomitância, o que o decreto acrescentou foi a questão de o orçamento poder ser vinculado às parcerias com as instituições que forem promovê-las. Ou seja, antes dessa regulamentação, a Rede Federal já tinha parcerias junto com os estados, em muitos dos nossos institutos. Contudo, nós não tínhamos a prerrogativa de acesso ao recurso [do Fundeb]. Agora, com esse decreto, os institutos da rede passam a ter. Essa é a diferença.

Em momento algum ele aponta a obrigatoriedade ou um possível movimento de mudança, indicando que não seria mais obrigatório ofertar minimamente 50% das vagas [na forma integrada] ou que a concomitância passaria a ser obrigatória. Isso não está escrito. Pode haver interpretações assim, mas  não é o que está escrito no decreto, ao menos na minha leitura. Então, isso nos dá tranquilidade, no âmbito da autonomia didática, pedagógica e científica que a própria lei 11.892 nos traz, de optar ou não por fazermos essas parcerias junto aos governos estaduais.

 

No entender do Conif, o decreto abre a possibilidade de uma ampliação da destinação de recursos via Fundeb aos institutos federais a partir da dupla matrícula?

Exato. Neste caso, para o instituto que firmar parceria com o estado, se amplia a possibilidade de acessar essa fonte de financiamento, que seria dupla matrícula, como chamam.
A legislação já previa a parceria entre os entes federados, neste caso, União e estado e muitas das nossas autarquias já fazem isso. O que altera no regime de concomitância? Pela nova regulamentação, as matrículas e o cálculo dos parâmetros operacionais vão poder ser contabilizados para instituições que firmarem parceria.

Reitero que a lei já traz isso como uma prerrogativa da autonomia didática, pedagógica e científica. O que a lei estabelece ? Além da destinação de 50% das nossas vagas  à formação técnica na forma do ensino médio integrado, determina que, dos outros 50%, 20% das vagas são para processos de formação de professores, e os demais divididos entre o bacharelado, Educação de Jovens e Adultos, etc.

Por que, em muitos casos, não se fazia o convênio na própria lei 11.892? Porque não trazia recursos adicionais à Rede Federal, ou seja, nós teríamos que dispor de professores, carga horária, espaços e laboratórios sem uma contrapartida. Claro que, levando em conta a formação da nossa juventude, a melhor contrapartida seria a formação dos nossos jovens para o mundo do trabalho, Isso, por si, já seria uma bela contrapartida. Só que nós não podemos ter uma visão, enquanto gestores, romântica nesse sentido, e dizer: ‘não precisamos de recurso para concomitância’. Precisamos sim, porque envolve reorganização das cargas horárias dos nossos professores, envolve a utilização dos nossos espaços físicos, laboratórios, infraestrutura, e tudo isso requer investimento e, por consequência, o orçamento.

Como foi esse processo de discussão sobre o decreto 10.656 no interior do Conif e quais os desdobramentos que já aconteceram a partir daí?

Nós tratamos do decreto em reunião do pleno, e houve, sim, uma preocupação no sentido de poder se caracterizar como incentivo à concomitância e não à forma integrada. Contudo, ao fazermos os contrapontos buscando as possíveis interpretações desse decreto, houve o entendimento, de maneira geral – inclusive daqueles mais ávidos contra o decreto – de que realmente ele não altera a lei que nos cria e não tira a autonomia didática, pedagógica e científica das nossas autarquias.

O decreto diz, no artigo 25, que os institutos federais devem informar semestralmente se têm condições dessa oferta ou não. O desdobramento disso é que cada autarquia, novamente no bojo do que prevê a lei 11.892, faça o estudo de viabilidade ou não da sua capacidade de absorção dessas matrículas que serão demandadas pelos governos estaduais.

Caso a gente não tenha essa capacidade na forma de concomitância, não somos obrigados a fazer. Esse entendimento foi quase que pacificado. Claro que sempre temos reservas, no sentido de continuar defendendo que a nossa prioridade é o ensino médio na forma integrada à educação profissional.
Talvez o pano de fundo dessa preocupação seja uma mudança em relação àquilo que a rede tem como compromisso, passando a ser a grande responsável pela oferta do 5º eixo tecnológico da reforma do ensino médio, que é educação profissional. Essa é a natureza dos institutos, mas eles não podem assumir ou trazer para si a responsabilidade da concretização dessa legislação.

Há um entendimento de que se a gente adere a esse decreto sem uma leitura crítica, nós estaríamos acatando a maneira como a reforma do ensino médio foi feita, com os itinerários formativos. Nós entendemos que não deve ser dessa forma.

Como se concilia essa leitura de que o decreto 10.656 traz aspectos positivos na oferta de cursos concomitantes, na relação com os estados, com a preocupação de que ele sirva para operacionalizar o papel dos IFs na oferta do itinerário de educação profissional previsto pela reforma?

Notadamente, porque o decreto ampliou a possibilidade do financiamento público, apenas isso. Porque ele não altera a lei que cria os institutos federais. Reitero que essa condição de acatar ou não o que prevê é discricionário às autarquias. E, no âmbito das autarquias, essa política de acatar ou não passa necessariamente pelos conselhos superiores das instituições. Então é um processo que requer discussão, requer reflexão e uma tomada de decisão para além de uma análise rasa. Não se faz isso de qualquer forma. Tem todo um fluxo interno no âmbito das autarquias que tem que passar pelo seu conselho de ensino, pesquisa e extensão e depois pelo conselho superior.

Há algum levantamento, ainda que preliminar, do que a Rede Federal seria capaz de absorver, tendo em vista o decreto, ou do que os institutos poderiam receber em termos de financiamento via Fundeb a partir dele?

Nesse momento não. Por dois motivos: primeiro, pela juventude do próprio decreto. Ainda não deu tempo de fazer esse levantamento. O contexto da pandemia, com a condição da oferta de educação de modo remoto e não presencial, é um impedimento para podermos pensar em firmar parcerias e ver se temos ou não capacidade de absorção dessas matrículas. Nós temos outras preocupações neste momento, mais prioritárias, do que aumentar a nossa capacidade de absorção com as redes. Temos outras problemáticas que são mais emergentes, de darmos conta daquilo que nós temos no contexto de pandemia, na oferta da educação de modo remoto. Isso para nós é prioritário nesse momento. E, também, garantir que o financiamento nos mantenha minimamente naquilo que a gente já vem fazendo, porque em setembro ou agosto talvez atinjamos o teto máximo para as condições de funcionamento. Diante desse cenário, esse decreto não é prioridade para o  Conif. Ele está no escopo, as autarquias que, individualmente, tiverem condição de fazer, claro que vão poder fazer. Mas, enquanto uma problemática da rede, isso não entra como uma prioridade agora.

A Rede Federal, nos últimos cinco anos, assim como as universidades federais, vem se mobilizando contra os cortes de recursos que vêm ano a ano fragilizando seu orçamento. Pode falar sobre como tem sido esse processo de negociação orçamentária com o governo federal nesse contexto? Em que medida esse cenário de restrição orçamentária vem ao encontro dessa leitura favorável ao decreto 10.656 dentro do Conif no que diz respeito à possibilidade de uma maior destinação de recursos via Fundeb aos institutos federais?

É inegável que o governo vem fazendo esse movimento, que nos coloca a buscar  fontes de recursos para além do orçamento devido. Esse [o decreto 10.656] é um deles, sem sombra de dúvida. Notadamente, a partir de 2016 o orçamento da Rede vem sofrendo decréscimos. Pelo Conif, fizemos vários movimentos de conversa com ministro, secretário, com as bancadas no âmbito dos estados, onde nós estamos inseridos enquanto rede, porque  temos pelo menos um instituto federal em cada estado desse país. Estamos em conversa bastante densa junto aos parlamentares que defendem a educação e a Rede Federal como um bem público. Esses movimentos estão sendo feitos, e não podemos parar porque o orçamento de 2022 é uma problemática talvez pior do que o deste ano.  Lembremos que é  uma rede que ainda está se consolidando, na qual ainda há necessidade de investimento bastante significativo no âmbito da infraestrutura, que demanda investimento. Mas hoje a nossa preocupação maior é a questão do custeio, que é a manutenção, o dia a dia das instituições, a assistência estudantil que, no caso dos institutos, praticamente se manteve estável em termos nominais, mas se considerarmos o aumento de matrículas veremos que há uma diminuição. Precisamos  dividir o bolo com mais estudantes em condição de vulnerabilidade social. Realmente, é um momento muito complexo, muito preocupante. Nós estamos recebendo 4/18 do orçamento relativo ao exercício de 2021 por ora, e se não houver nenhuma suplementação desses valores, nós não vamos conseguir honrar, enquanto rede, os contratos que nós já temos em andamento. E, neste ano, ainda  sofremos um corte de aproximadamente 21%.

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