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Entrevista: 
Chico Alencar

'Continuamos dominados no Brasil, do ponto de vista político, pelo patriarcalismo, pelo patrimonialismo e pelo clientelismo'

Deputado federal pelo Psol, Chico Alencar fala sobre as Jornadas de Junho e a necessidade de uma reforma política no Brasil.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/10/2013 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O Brasil precisa de uma reforma política? Por quê? Qual deve ser o objetivo final maior dessa reforma?

Precisa porque a gente ainda não cumpre aquilo que a Constituição estabeleceu há um quarto de século, que é a democracia representativa combinada com a democracia direta. Precisa porque nós só temos praticamente a chamada democracia representativa que está muito questionada na medida em que a maioria dos partidos políticos e dos eleitos, dos que recebem a delegação da população para representá-la, acabam prisioneiros dos interesses particularistas de grupos oligárquicos, de setores já privilegiados. Então há enormes distorções na representação e pouquíssima utilização de mecanismos de democracia direta. A reforma política é absolutamente necessária porque, no lugar da democracia preconizada pela Constituição de 1988, nós temos uma plutocracia. Salvo exceções, que confirmam a regra, quem ganha as eleições e ocupa espaços de poder são aqueles que têm grandes vínculos com o poder econômico, fazem campanhas milionárias e governam para os grupos que os financiam. Há também muitas distorções: o voto de um eleitor de Roraima vale 15 vezes mais do que o de um eleitor de São Paulo; o distanciamento efetivo entre representante e representado é muito grande, a maioria dos eleitos só interage com a população a cada quatro anos, no período eleitoral, cada vez mais os partidos e as bancadas vão se autonomizando em relação à sociedade e à população. Isso foi até denunciado nessas manifestações de junho, quando milhares de jovens do Brasil todo clamaram ‘não nos representam’, mostrando que há uma enorme insatisfação com as formas atuais de fazer essa representação no Brasil, ainda que tenhamos conquistado as eleições bienais. Mas democracia não é só votar a cada dois anos, ainda mais num sistema tão excludente como o nosso. A questão de grupos étnicos, da igualdade de gênero... continuamos dominados no Brasil, do ponto de vista político, pelo patriarcalismo, pelo patrimonialismo e pelo clientelismo.

O que a voz das ruas, a partir das manifestações de junho, reivindicou pode ser traduzido numa reforma política?

Sem dúvida. Agora, você não consegue fazer a reforma política substantiva, que atenda a essa manifestação de insatisfação com o atual sistema representativo, nem com a composição do Congresso tal como é hoje e nem com um novo Congresso eleito em 2014 com os mesmos critérios que favorecem o poder econômico e grupos restritos que estão vigorando ainda. É preciso combinar a mobilização popular, o interesse popular, a participação popular na reforma política com mecanismos que pudessem instituir uma constituinte para cuidar da reforma política, exclusiva, soberana, com mais independência, portanto. Eu acho que a gente tem que caminhar para isso. Por outro lado, 42 entidades fizeram uma coalizão para propor, se possível ainda para 2014, o que é muito difícil, um primeiro passo. É o projeto de eleições limpas, que institui o financiamento democrático das campanhas, isto é, só pessoas físicas podem colaborar, com um teto de R$ 700 por pessoa, e eleições para parlamentares em dois turnos: você, num domingo, vota num partido, com isso afere o número de vagas que aquele partido vai ter no parlamento, e, no domingo seguinte, os eleitores são chamados a votar nos candidatos do partido. Essa é uma iniciativa popular de lei, apoiada pela OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], pela CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], por entidades estudantis de caráter nacional, mais de 40 entidades, mas é um processo também ainda demorado, não vai se viabilizar rapidamente.

Todos os parlamentares do PSOL estão entre os 130 parlamentares que assinaram essa iniciativa. Porque além de buscar coleta de assinaturas da população, ela já foi apresentada na Câmara com o respaldo da assinatura de 130 deputados.

As manifestações vocalizaram uma hostilidade em relação aos partidos políticos. Por quê? Isso é objeto de uma reforma política?

A hostilidade é compreensível, é natural. Aliás, o atual troca-troca de partidos, sem nenhuma discussão programática, por mero interesse de reprodução de mandato, pura negociata, ‘vou sair de um partido e ir para outro porque nesse outro eu posso ser dono dele no meu estado, posso ter mais tempo de televisão’, é vergonhoso. Só depõe contra a vida partidária. Essa reação, como a do vômito quando você come alguma coisa estragada, é compreensível e natural. O que não é nem compreensível nem natural é o sistema partidário brasileiro não se preocupar com isso, com esse alto grau de rejeição. É preciso mudar procedimentos, reestruturar os partidos a fim de que eles tenham doutrina, ideologia, mas o que se está vendo vai na contramão disso tudo.

Quando você estabelece a prioridade do voto partidário, em vez do voto em indivíduos, quando retira o financiamento milionário e empresarial de campanhas, está contribuindo para aumentar essa possibilidade de partidos que tenham programas, coerências, que atuem na esfera de ideias, causas e projetos.

O fortalecimento da participação direta em complementação à democracia representativa é objeto de uma reforma política? Como seria?

O primeiro deles [instrumentos] é a regulamentação – e já há um projeto para isso inspirado nas recomendações do jurista Fabio Konder Komparato – do plebiscito e do referendo. Em segundo lugar, você ter mais mecanismos de consulta à população para implementação de políticas públicas, ali mesmo onde a população está, seja no local de trabalho, através de sindicatos, nos grêmios ou diretórios estudantis, nas associações de vizinhos. Claro que isso implica vontade política das autoridades, não só do Legislativo, mas também do Executivo, para que a população seja de fato ouvida, romper com a ideia de governos meramente gerenciais e verticais, ditos técnicos que na verdade são autoritários. Então, nós no Brasil temos mais de 20 mil conselhos por categorias, por temáticas, mas andam esvaziados, têm pouco poder deliberativo. Então é evidente que uma reforma democratizante, para o Brasil ter uma democracia de alta intensidade, implica revigorar esses conselhos, descentralizar o poder, estimular o associativismo entre vizinhos, trabalhadores, estudantes, dinamizar essas entidades de base, sindicatos, associações de moradores, grêmios e diretórios estudantis.

Por exemplo, você só pode deliberar sobre política energética e matriz predominante dessa política por plebiscito. Todas as questões mais importantes no que diz respeito ao meio ambiente, à economia, evidentemente questões mais centrais, podem e devem ser deliberadas a partir do estímulo à participação. Porque, na verdade, embora a Constituição preveja plebiscito e referendo, nesses 25 anos o que tivemos? Um plebiscito sobre monarquia e república, parlamentarismo e presidencialismo, depois sobre desarmamento. É muito pouco, não é? A gente precisa chamar mais a população e isso pode ser feito inclusive no momento das eleições para composição de governos e parlamentos [para] opinar sobre problemas centrais.

Além desses temas específicos, quais as principais mudanças que uma reforma política precisa implementar?

Por essa proposta que estamos apoiando, você primeiro vota no partido, e com isso define o número de vagas que aquele partido vai ter.  Depois o mesmo eleitor vota nos candidatos do partido que vão ocupar essa vaga. Ainda que o partido possa oferecer uma lista, ela não precisa ser seguida. E a lista é pré-ordenada flexível, ou seja, não é a máquina partidária e eventuais caciques que vão definir.

Mas é claro que a gente tem que garantir mecanismos de superação dessa distorção que existe hoje na representação: você tem uma população que é predominantemente mestiça ou majoritariamente feminina e isso não se espelha nos parlamentos, falo de Câmaras municipais e Congresso Nacional. Além do mais os índios não têm representação nenhuma e estão ali com suas terras cobiçadas cada vez mais pelos ruralistas.

Nós entendemos que o voto distrital, na cultura política brasileira, é muito ruim porque vai excluir minorias na medida em que é por região e fortalecer o poder do mandonismo local, paroquialismo. Agora, por outro lado, mesmo consagrando o voto proporcional, como existe hoje, é preciso garantir mecanismos de revogabilidade de mandatos e também de prestação de contas periódicas de parlamentares para a população que o elegeu. Normalmente o eleito se autonomiza depois de eleito da sua própria base e fica ali no mundo mais dos negócios do que na relação dinâmica dos representados.

Entendemos que o decantamento do número de partidos, que não é um problema em si, o decantamento no sentido de você ter partidos mais ideológicos, doutrinários, com princípios, porque existem de fato muitas legendas de aluguel, o melhor caminho é acabar com a coligação proporcional. Cada partido tem que se apresentar nas eleições com a sua identidade própria. Se tem coligações a fazer, que sejam permanentes, duradouras, que seja quase uma coalizão, uma frente permanente, e não esses arranjos que se fazem para dar sobrevida a legendas de aluguel. Então achamos que a melhor cláusula de barreira e a única coisa que tem que ser embarreirada são as legendas artificiais, que não representam interesses da sociedade, segmentos, que não têm projeto nenhum. O partido não tem projeto nenhum e vira um negócio, um livro debaixo do braço dos seus donos para negociar tempo de televisão, fundo partidário, tudo que está acontecendo agora nessa vergonhosa janela de transferências de final de setembro, especialmente para esses dois partidos novos, que não têm identidade de classe e de segmentos sociais, o Pros e o Solidariedade. Agora, se você acaba com a coligação na proporcional, eu creio que haverá uma decantação desses partidos que não têm vida real, que funcionam apenas para negócio feito pelos seus donos, caciques. Porque quando você tem um projeto de executivo maior, é natural que possa haver adesões. O partido não é obrigado a ter estrutura e quadros para apresentar candidaturas majoritárias sempre. O número de candidaturas majoritárias é muito menor do que das candidaturas proporcionais.

Qual a forma proposta pelo partido para a realização de uma reforma política?

Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, eleita por critérios democráticos, que não reproduzam as distorções de hoje, nos quais as maiorias sociais não são maiorias políticas. Igualdade de condições na disputa, isso, vale dizer, tanto tempo de apresentação de proposta de programas quanto de recursos. Só isso já seria uma pequena revolução democrática.

A proposta de reforma política do seu partido já incorpora as reivindicações das recentes manifestações?

As manifestações foram amplíssimas e difusas. Os movimentos faziam questão de dizer que não se sentiam obrigados a apresentar plataformas concretas sobre questões mais detalhadas, como a própria reforma política. E é isso mesmo. Quem tem obrigação de formular isso são os agentes políticos, aqueles que se propõem a estar na vida pública, são os partidos. Mas o grito em relação à inautenticidade de quem está hoje na função de representação e até a rejeição aos partidos são reveladores de que esse sistema está exaurido, esgotado. Agora, é papel do agente público, do sujeito político, vale dizer, do partido, apresentar suas propostas, formular suas alternativas. Uma coisa que inclusive está em discussão entre nós é a questão do voto voluntário ou compulsório. É evidente que a gente acha que o voto é um direito, aliás duramente conquistado no Brasil, e também é um dever, mas se tem que ser necessariamente obrigatório é uma questão que está em debate dentre do PSOL.

Há muitas expectativas em relação à reforma política. Quais os limites? O que não se pode esperar dela?

A redução rápida da desigualdade social, que a meu juízo é o maior problema do país, e a horizontalização da cidadania, ou seja, você conseguir também em curto prazo que a população saia da esfera do clientelismo, do fisiologismo, do toma lá dá cá, dessa cultura secular e anti-republicana do voto de cabresto, do voto mercadoria em troca de algum benefício futuro possível. Isso a reforma política, mesmo acontecendo com participação popular, não será a participação popular massiva, da ampla maioria do povo brasileiro. Se a gente conseguir fazer esse trânsito, de uma democracia de baixa intensidade para uma democracia de média intensidade, já vai ser um pequeno passo. Não dá para achar que a reforma política é a solução de todos os nossos problemas. Ela é um aspecto importante, mas é claro que tem que estar acompanhada da reforma do Judiciário, de reforma da gestão pública, do empoderamento de outros setores sociais tradicionalmente excluídos, de uma etapa mais ativa culturalmente no nosso país. É um processo, muito dinâmico, que não será de curto prazo.

A reforma política significará uma mudança na Constituição Federal, que é considerada, de modo geral, que incorporou pautas progressistas. O que definiu que o sistema político inscrito na Constituição fosse esse?

Na verdade, a Constituição foi elaborada num contexto de ascensão dos movimentos sociais. Havia nos anos 1980 no Brasil um recrudescimento das lutas populares, inclusive de viés político claramente: anistia ampla, geral e irrestrita, Diretas-Já, conquista de eleições para governadores de estados e prefeitos de capitais, e depois a primeira eleição direta para presidente. Depois o Fora Collor – bem, isso já foi depois da Constituição de 1988. Mas ela foi precedida por esse momento de ascensão do movimento social no Brasil. É interessante que a própria Constituição estabeleceu a iniciativa popular, de emenda constitucional, e, na época, me lembro bem, eu fui participante disso, protagonista através da Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro, Famerj. No Brasil inteiro 15 milhões de cidadãos assinaram – e era um processo trabalhoso, tinha que colocar o título de eleitor, iniciativas de várias áreas, de indígenas a meio ambiente, de moradia a tratamento da questão da dívida pública, emendas para a constituição. Eu me lembro, eu era da Famerj, não exercia mandato algum e fui lá apresentar resultados de um congresso constituinte das associações de moradores do Rio especialmente sobre políticas públicas de saneamento, moradia, educação, saúde, equipamentos urbanos. E fiquei lá na mesa, ladeado, por um lado, pelo Vladimir Palmeira, que era deputado, e do outro pelo Delfim Neto, também deputado. Eram tempos bem interessantes dessa nossa transição democrática e é claro que a Constituição espelha isso. O problema é que ela tem mais de cem artigos que ainda não foram regulamentados. Então, você tem o enunciado de um princípio importante, de um direito social fundamental, mas não tem a implementação efetiva a partir de políticas públicas que têm que ser desenvolvidas nas três esferas muitas vezes – municipal, estadual e União.

Eu acho que o Brasil precisa enfrentar o desafio colocado pelo Lima Barreto um século atrás. E aí não é só reclamar das autoridades e dos agentes políticos não. O Lima Barreto dizia que o Brasil não tem povo, tem público. Cada um tem que desenvolver mais a sua cidadania e estimular o amigo, o parente, o vizinho a também se politizar mais. Se não os que fazem a gente ter ojeriza pela política vão continuar predominando.