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Entrevista: 
Inês Barbosa de Oliveira

‘O objetivo da reforma do ensino médio é reproduzir a exclusão social’

O Ministério da Educação publicou no Diário Oficial da União no final da semana passada a portaria 1.432, que estabelece referenciais para a elaboração dos itinerários formativos criados pela reforma do ensino médio. Aprovada ainda em 2016 durante o governo Michel Temer, a reforma dividiu o currículo desta etapa do ensino entre os conteúdos comuns que devem ser oferecidos a todos os estudantes – estabelecidos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – e conteúdos específicos às áreas de matemática, linguagens, biologia, ciências humanas e formação técnica e profissional. Os itinerários formativos se referem a esta última etapa. A publicação da portaria foi um dos últimos atos do agora ex-ministro Ricardo Vélez à frente do MEC – Vélez foi demitido do cargo na última segunda-feira (08) pelo presidente Jair Bolsonaro. Ela dá prosseguimento ao processo iniciado pelo governo Michel Temer, que, além da lei da reforma do ensino médio, aprovou ainda a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) – homologada pelo MEC em novembro do ano passado - e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em dezembro. O principal objetivo da portaria 1.432 é orientar os sistemas de ensino na construção dos itinerários formativos com base na nova DCNEM, que estabeleceu que cada itinerário formativo deve ser construído com base em quatro “eixos estruturantes”: Investigação Científica, Processos Criativos, Mediação e Intervenção Cultural e Empreendedorismo. Nesta entrevista, a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do GT Currículo da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (Anped) Inês Barbosa de Oliveira comenta a publicação, e alerta que ela consolida um processo de reformas que devem aprofundar as desigualdades educacionais no país.
Beatriz Mota (com contribuição de André Antunes) - EPSJV/Fiocruz | 12/04/2019 10h23 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

O Ministério da Educação publicou na última sexta-feira (5/04), no Diário Oficial da União, uma portaria que fala dos referenciais para elaboração dos itinerários formativos para o ensino médio. Quais são os principais problemas do ensino médio brasileiro hoje, e em que medida que esses itinerários e a reforma do ensino médio, como um todo, atende, de fato, a esses problemas?

Não atende. As entidades de especialistas em educação, em bloco, publicaram e divulgaram críticas a essas propostas: à reforma, em um primeiro momento, depois à BNCC. Tivemos discussões no Conselho Nacional de Educação, com o ministério, entre nós, com a imprensa, mas os últimos governos estão em uma perspectiva de elitização do ensino, e de produção, reprodução e ampliação da exclusão social a partir das propostas educacionais.

O que a gente observa nessa proposta dos itinerários é o agravamento das desigualdades do país no acesso à educação de qualidade, na medida em que caberá aos sistemas de ensino definir o que eles vão e o que não vão oferecer em termos de itinerário formativo. Isso significa que os estudantes das cidades menores, os estudantes dos lugares pobres, das escolas pobres, não terão acesso a alguns dos conteúdos hoje considerados obrigatórios para eles e para todos.

Isso é muito grave, porque quanto mais periférico for o espaço social do estudante, menores serão as suas oportunidades. Isso significa a reprodução e ampliação das desigualdades sociais.


Em que sentido?

Nesses lugares existe uma tendência à falta de professores. Há menos professores de matemática, de física, de química, de biologia, por exemplo, habilitados nesses lugares. Sempre falta. As escolas são menores, têm menos estudantes, e, portanto, não terão como oferecer quatro, cinco itinerários formativos para ter quatro, cinco alunos em cada sala de aula. Até a reforma [do ensino médio], o Estado era obrigado a dar soluções para esse tipo de problema. O Estado era obrigado a oferecer todos os componentes curriculares obrigatórios a todos os estudantes. Agora ele não é mais.

Você não pode se interessar por mecânica se você não sabe o que é um motor quando sai do nono ano. Você não pode se interessar pela medicina se você não sabe o que são os componentes biológicos, você não estudou genética, etc. No próprio campo da sociologia, como é que o estudante vai se interessar por estudar filosofia, sociologia?

Então, se faltar professor de algumas disciplinas, os itinerários formativos podem ser oferecidos de acordo com os docentes disponíveis, e evidentemente é o que vai acontecer nos lugares mais pobres, ou menores. Esse cenário já existe em lugares menores e periféricos. No Rio de Janeiro, por exemplo, que está longe de ser um estado pobre, existe um déficit relevante de professores na área das ciências exatas. Porque é um estado que não investe em educação, não investe em substituição de pessoal, não se ocupa desse tipo de coisa. A gente tem uma forte tendência ao agravamento dessa situação com a atual política.


Os últimos governos vêm defendendo a reforma do ensino médio argumentando que ela deve “fortalecer o protagonismo” dos estudantes. Isso vai acontecer na prática?

Na prática eles estão cassando os direitos de aprendizagem dos estudantes, alegando que é para o estudante poder escolher o que interessa a ele. O estudante aos 14 anos não tem nem como escolher, porque ele não sabe aquele mínimo que o ensino médio anterior procurava garantir - de uma maneira equivocada, com uma série de problemas, mas procurava-se garantir que o estudante tivesse uma noção do que fossem as ciências, a química, a física e a biologia, antes de saber se gosta ou não, se quer estudar alguma coisa relacionada a isso ou não.

Não há a menor condição de se produzir interesse do estudante por um campo de conhecimento sem que ele tenha uma base daquele conhecimento. Você não pode se interessar por aquilo que você não sabe nem que existe. Então a desculpa da escolha cai perante a impossibilidade desta escolha, diante do pouquíssimo conhecimento que o ensino fundamental consegue dar ao estudante. Não porque tem um problema, mas porque seu perfil é diferente.  Você não pode se interessar por mecânica se você não sabe o que é um motor quando sai do nono ano. Você não pode se interessar pela medicina se você não sabe o que são os componentes biológicos, você não estudou genética, etc. No próprio campo da sociologia, como é que o estudante vai se interessar por estudar filosofia, sociologia? Não tem isso no ensino fundamental. Ele tem que adivinhar que ele quer fazer isso.
Então, na verdade, o estudante não terá meios de escolher, porque ele desconhece os campos de escolha, por um lado. Por outro lado, ele não pode escolher, porque quem escolhe é o sistema de ensino, que diz que vai oferecer aqui nessa escola isso e não aquilo. E o estudante vai ser obrigado a fazer o que tiver lá.

O estudante, principalmente o mais pobre, vai fazer o que a escola oferecer, possivelmente apenas o profissionalizante, que é outro problema que essa reforma tem.

O que essa proposta faz, do ponto de vista do ensino profissionalizante, por exemplo, é possibilitar que os estudantes de 15 anos façam estágios trabalhando sem receber, ou recebendo valores irrisórios, para contabilizar como carga horária de estudos. Isso não é estudo.

Garantir a permanência dos estudantes na escola é outro argumento utilizado por quem defendeu a reforma do ensino médio. Você vê algo de positivo nessa reforma com relação à possibilidade de permanência das crianças na escola?

Não vejo. Para permanecer na escola o que o estudante precisa é de renda familiar. Uma política que contribuiu para a permanência dos estudantes na escola foi o Bolsa Família. O que essa proposta faz, do ponto de vista do ensino profissionalizante, por exemplo, é possibilitar que os estudantes de 15 anos façam estágios trabalhando sem receber, ou recebendo valores irrisórios, para contabilizar como carga horária de estudos. Isso não é estudo.


Com relação à educação profissional, no que essa concepção de itinerário formativo que a reforma traz difere da concepção de itinerário formativo que já se tinha na educação profissional, como uma estratégia de elevação da escolaridade?

A diferença é completa. O que existia antes era uma tentativa de garantir uma formação profissional complementar à formação geral. Agora o itinerário, na verdade, põe o aluno para aprender o mínimo para uma coisa, ou o mínimo para outra, e não o mínimo para tudo, para ele escolher depois. O itinerário formativo tira oportunidades de aprendizagem, não fornece. Porque ele torna a escola mais pobre em conteúdos e em alternativas, porque ou você faz uma coisa ou faz outra.


Há alguns modelos na educação profissional, como o dos institutos federais, que têm ótimo desempenho em exames como o ENEM. Por que esses modelos não foram utilizados como exemplo?

Porque isso custa dinheiro, e pressupõe um interesse pela formação da classe trabalhadora. Quando você quer que a classe trabalhadora seja uma mão de obra ignorante e obediente, quanto menos educação, melhor. É um conflito eterno do capitalismo. Ele precisa educar a classe trabalhadora porque senão ela não pode trabalhar, já que as demandas do mundo do trabalho em relação ao que o trabalhador precisa saber crescem. Mas a classe trabalhadora “excessivamente” educada é perigosa. É uma equação que o capital precisa gerenciar para evitar o risco de que a classe trabalhadora tenha conhecimento demais. Então concretamente, vou voltar ao que eu disse no início, o objetivo da reforma é produzir, reproduzir a exclusão social.


É possível a coexistência de estruturas como os Cefets e os institutos federais e esse outro modelo de itinerários formativos trazido pela reforma?

Provavelmente não. A reforma vai atingir os Institutos Federais, reduzindo a capacidade formadora que eles têm hoje.


A Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) influenciam no acesso ao ensino superior público?

O acesso fica comprometido, a menos que você tenha condições de estudo. Quem é que tem? A classe média. O que a escola oferece vai tornar insuficiente o saber dos estudantes para acessar a universidade. Exatamente como era na década de 1930 do século passado, quando a Reforma Capanema criou o dualismo na educação, prejudicando barbaramente a possibilidade de as classes baixas irem para a universidade. Naquele tempo, inclusive, quem fazia ensino profissionalizante não tinha direito de pleitear uma universidade, era proibido. Eles agora mantêm o direito de pleitear, mas inviabilizam a chance de conseguir. Uma pessoa que só estudou empreendedorismo faz o Enem como? E vale o mesmo para as outras coisas. Se você estudou só um dos campos das ciências da natureza, você também não passa, porque não vai saber o que precisava saber de outras áreas, a menos que o Enem também seja redirecionado, o que eu não acredito que aconteça. Ninguém falou nisso ainda.


A reforma do ensino médio dialoga ou expressa de algum aforma o revisionismo e a centralidade das questões morais que têm tomado o campo da educação?

Não necessariamente, mas abre brechas. Ela não cria o revisionismo, mas na hora em que suspende a necessidade de uma aprendizagem crítica dos conteúdos, ela abre a porta, para a doutrinação, que é o que se quer fazer, embora eles digam que nós é que somos doutrinadores. Então você tem uma porta aberta para o revisionismo, é uma coisa que o Escola sem Partido está tentando legitimar.

É uma recusa ao debate democrático. Ou seja, é a ruptura daquilo que se conquistou do advento da modernidade para cá, com o fim da dominação dos dogmas da Igreja sobre o planeta, sobre o modo das pessoas se relacionarem com o conhecimento. Há um retorno assustadoramente retrógrado em relação ao modo como a sociedade se relaciona com o conhecimento, e a partir disso o modo como os diferentes segmentos sociais se relacionam entre eles.


Como você vê a implementação na prática desses itinerários, em um contexto de cortes de recursos com a vigência da Emenda Constitucional 95?

Você proíbe o investimento e diz que vai aumentar a carga horária? É óbvio que não vai, ou vai em condições tão precárias que a escola vai se autodesfazer perante a impossibilidade de trabalhar. Então, a Emenda Constitucional nº 95 promove a impossibilidade da manutenção da qualidade, de serviços essenciais para a população, sobretudo no campo da saúde e da educação, que são direitos constitucionais que não vão poder ser garantidos a partir dessa emenda.


Como a Anped e outros movimentos da educação estão trabalhando no sentido de acompanhar essa implementação?

A gente tem reforçado o que sempre defendemos, que é o direito do estudante de aprender todas as disciplinas. É preciso assegurar esse direito de aprendizagem pela oferta de uma escola de qualidade para todos. A Anped, a ABdC [Associação Brasileira de Currículo], o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, entre outros, vêm insistentemente reafirmando o modelo educacional que a gente tinha antes.

É verdade que a gente tinha um problema sério do ponto de vista curricular, de um conteudismo esvaziado de sentido, contra o qual já vínhamos lutando. O próprio modelo do Enem era inicialmente mais voltado para conhecimentos contextualizados do que para conhecimento pura e simplesmente. Mas essa política foi perdendo terreno. A gente ainda tinha essa garantia mínima para todos, que agora não tem mais. Então, a questão nesse momento é ver como a gente consegue reverter a exclusão produzida pela cassação dos direitos educacionais promovida pela reforma. A luta contra isso permanece. A gente fica em uma militância voltada para recuperar aquilo que se está tentando tirar dos estudantes, ao mesmo tempo em que permanecemos em uma militância na luta pela superação do enciclopedismo que havia antes no ensino mesmo, que também não era bom.

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