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Entrevista: 
André Búrigo

“Precisamos de um ministro da Saúde e não de um ministro da doença e do sofrimento”

André Búrigo, sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), fala sobre a Lei 13.301/2016, sancionada semana passada pelo presidente interino, que abre a possibilidade de pulverização aérea de agrotóxicos sobre cidades para controle do Aedes aegypti. “Esta proposição é absurda. Trata-se de uma ação química contra população, é um ato violento. Demonstra que setores do agronegócio não têm limites e Ricardo Barros, ao se omitir, participou da aprovação desta medida”, critica.
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 06/07/2016 11h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Quais as consequências da pulverização aérea de agrotóxicos para a saúde humana e ambiental?

Os estudos têm demonstrado vários impactos negativos. Quando um avião está pulverizando uma lavoura, ele voa abaixo de dez metros de altitude, normalmente abaixo de três metros, o mais perto possível do solo, justamente para que a nuvem de veneno seja aplicada o mais próximo do alvo.  E, mesmo assim, a pulverização aérea de agrotóxicos na agricultura está relacionada a uma série de impactos, que dependem de um conjunto de fatores: altura e velocidade do voo, forma de aplicação, calibração do equipamento, condições meteorológicas, tipos de agrotóxicos utilizados, proximidade com cursos d’água, áreas biodiversas e habitações. Uma coisa é certa: não há controle absoluto que permita garantir que o uso de venenos agrícolas por aeronaves é totalmente seguro e não traz impactos. Na Nota Técnica que o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde publicou no início de abril, há referência a um estudo que identificou que menos de 0,1% dos agrotóxicos aplicados nas culturas atingem as pragas-alvo e que a deriva decorrente da aplicação aérea de agrotóxicos já atingiu distância de até 32 quilômetros. Portanto, uma grande quantidade de venenos agrícolas é dispersada no ambiente, podendo atingir distâncias muito longas, levando à utilização de quantidades cada vez maiores para se atingir o objetivo desejado. Com isso, ocorre a contaminação de solos, águas e do ar, a biodiversidade sofre os efeitos, os alimentos são contaminados e a saúde humana é impactada direta e indiretamente, podendo os problemas se manifestarem imediatamente ou ao longo de anos.

O Brasil, junto dos Estados Unidos, é o maior mercado de agrotóxicos do mundo. Em nosso país, para dar exemplos, os dois agrotóxicos mais utilizados na agricultura são os herbicidas glifosato e 2,4-D. Ambos são aplicados através de pulverização aérea e foram considerados pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), ligada à Organização Mundial de Saúde, como provavelmente e possivelmente cancerígenos, respectivamente, o que corresponde à segunda e terceira classificações mais graves.

Temos casos de contaminação ambiental e de intoxicações coletivas no Brasil já bem sistematizadas, com graves impactos, como em Lucas do Rio Verde (MT), Rio Verde (GO) e Chapada do Apodi (CE). Tudo está disponível no Dossiê Abrasco: um alerta dos impactos dos agrotóxicos na saúde. Ou seja, já sabemos que os impactos são graves, que estamos expondo grupos populacionais a substâncias nocivas. Estamos diante de epidemias silenciosas e silenciadas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está reavaliando os impactos do glifosato e do 2,4-D e tem amparo em estudos científicos para bani-los do mercado nacional, mas a pressão do agronegócio é muito forte, não só no Brasil, como em outros países do mundo. Há setores do agronegócio que representam a aviação agrícola e a indústria de agrotóxicos que não querem ter suas margens de lucro diminuídas. A saúde precisa estar acima dos interesses comerciais.

E no caso da pulverização aérea de inseticidas sobre cidades, que agora foi autorizada para combater o Aedes aegypti?

Em função do relevo das cidades, de prédios, de redes de energia elétrica e do fato de serem espaços densamente povoados, os aviões terão de pulverizar agrotóxicos em altitudes muito acima daquelas praticadas na agricultura. Imaginem a dispersão de venenos nas cidades com aviões pulverizando acima de 30 metros! É exatamente para isso que se abriu caminho com essa medida absurda. Estão autorizando a contaminação dos jardins, dos parques, das águas, inclusive comprometendo o saneamento, e as experiências de agricultura urbana, de criação de animais. No contexto de densidade populacional elevado, comum nas cidades brasileiras, os impactos serão muito maiores. O veneno atingirá creches, escolas, unidades de saúde,  crianças, idosos, gestantes, moradores de rua, pessoas doentes com o sistema imunológico fragilizado. É uma tragédia anunciada.

Entre os inseticidas mais utilizados em campanhas de saúde pública que têm foco no combate ao Aedes está o malation, um organofosforado neurotóxico que também foi considerado pela IARC como provável cancerígeno para humanos, entre outros danos reconhecidos. Estamos seguindo no caminho contrário: era para a gente estar trabalhando na perspectiva de retirar esse produto da comercialização e do uso de saúde pública. Precisamos urgentemente rever a lógica centrada no combate ao mosquito com agrotóxicos que já vem sendo utilizada no Brasil há 30 anos sem produzir a diminuição de epidemias e expondo a população a venenos. Pulverizar de avião só agravará ainda mais a situação de exposição da população a agentes tóxicos. Além disso, não se pode garantir que a pulverização aérea teria eficácia contra o Aedes. Além da deriva técnica de agrotóxicos, somente os mosquitos adultos em voo no ambiente sofreriam maior impacto, exigindo maiores cargas de venenos e exposição, consequentemente maiores possibilidades de contaminação e intoxicação. Além disso, vem sendo mostrado que os mosquitos têm induzido resistência ao malation e outros inseticidas.

Qual foi o papel das instituições ligadas à saúde pública e do Ministério da Saúde nesse processo?

As manifestações de instituições, associações e demais grupos da saúde foram unânimes: todos contrários à autorização de pulverização aérea em cidades. Manifestaram-se assim, além da própria área técnica do Ministério da Saúde com a nota a que já me referi: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Conselhos Nacional de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde (Conass e Conasems), Secretarias Estaduais de Saúde do Rio Grande do Sul e São Paulo, Associação Brasileira de Centros de Informação Toxicológica (ABRACIT), Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox), além do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

Muitas dessas manifestações foram apresentadas antes de a lei ter sido sancionada. Algumas foram direcionadas diretamente ao ministro interino da Saúde, Ricardo Barros. O que Barros fez? Alguém viu alguma manifestação pública dele contrária à medida? Ricardo Barros passou por cima de tudo, demonstrou que não respeita a área técnica do Ministério da Saúde, que está disposto a colocar outros interesses acima dos da saúde da população. Nós precisamos de um ministro da Saúde e não de um ministro da doença e do sofrimento.

Esta proposição é absurda. Trata-se de uma ação química contra a população, é um ato violento. Demonstra que setores do agronegócio não têm limites e Ricardo Barros, ao se omitir, participou da aprovação desta medida.

Se essa medida não é eficaz, como enfrentar o problema das epidemias de doenças causadas por este mosquito?

Há experiências no Brasil que comprovam que ações articuladas que envolvam monitoramento ambiental, barreiras mecânicas em reservatórios, eliminação de criadouros em terrenos abandonados, integração do trabalho dos agentes de vigilância em saúde, também conhecidos como agentes de combate a endemias, com a Estratégia de Saúde da Família e secretarias de educação, de forma a fortalecer ações de educação em saúde e a participação popular, podem levar a zero o número de casos de dengue e diminuir o índice de infestação predial de Aedes abaixo de 0,1%. Esses resultados foram alcançados no município de Pedra Branca, sertão do Ceará, sem o uso de agrotóxicos. Experiência muito importante que foi sistematizada recentemente. O SUS tem capacidade de resposta sem precisar usar venenos, mas precisa ser fortalecido. 

Do ponto de vista imediato, precisamos avançar em estratégias educativas que envolvam os diferentes grupos populacionais a partir de diagnósticos participativos da situação de saúde envolvendo os agentes de vigilância de saúde e os agentes comunitários de saúde. O poder público deve oferecer barreiras físicas para o controle do mosquito. Por exemplo, o poder público pode oferecer tela mosquiteiro com borracha para segurar a tela e/ou tampa de caixa d´água para os moradores. E ao fazer isso, pode-se aumentar a participação da comunidade. Porque as pessoas sabem que o veneno faz mal. A gente precisa é envolver mais as comunidades em diagnósticos participativos de identificação de criadouros, e oferecer recursos públicos de uma forma que a população perceba que as ações têm impacto concreto e correto, e aproveitar desses diagnósticos participativos para envolver as comunidades num debate de projetos que avancem no saneamento básico no mais curto espaço de tempo.

Outra medida que precisa ser fortalecida imediatamente e trará impacto resolutivo em poucos anos é a implementação do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Investir em saneamento básico é a medida mais eficaz no controle de dengue, chikungunya e zika, mas não apenas delas. Ao investir em saneamento básico você está gerando impacto sobre um conjunto de doenças, que estão relacionadas à desigualdade e injustiça social. Saneamento é investimento e não gasto, é uma dívida histórica do Estado brasileiro com grupos populacionais mais pobres. Pode significar ao mesmo tempo uma ação de promoção da saúde e de justiça social. Só que o governo federal reduziu sua participação no Plansab no PPA 2016-2019 e estamos adiando possivelmente a universalização do saneamento básico pra além de 2050. 

No contexto mais recente, enfrentamos outro desafio grave. No governo interino de Michel Temer, pode-se avançar em ações de saneamento só que através de parceria público-privada, através da privatização dos órgãos de saneamento. Então, se isso acontecer a gente não vai ter garantia de controle social e de participação popular sobre as ações. O que vai, certamente, resultar em ações ineficazes e aumentar a corrupção. O saneamento precisa ser implementado através de instituições públicas que precisam ser fortalecidas e ter mecanismos claros e rigorosos de controle social. É possível atingirmos a universalização do saneamento em 20 anos, mas é preciso fortalecer a democracia antes de tudo para que isso aconteça.

A proposta de fazer a pulverização partiu do Sindicato da Aviação Agrícola, justamente no ano em que a venda de agrotóxicos no Brasil caiu cerca de 20%. Isso mostra a força da indústria do agronegócio?

A indústria dos agrotóxicos lucra bilhões de reais no Brasil todos os anos. Junto da indústria da aviação agrícola, são grupos que atuam com grande força e com grande lobby sobre o Congresso Nacional e sobre o Executivo Federal. Assim como também atuam com grande interferência em diferentes governos estaduais, sem contar que têm grande espaço na mídia. É por isso que a reavaliação de agrotóxicos, que é o processo que poderia proibir produtos muito perigosos para a saúde e o meio ambiente, tem avançado de forma tão lenta no Brasil. Isso explica o fato de a própria Anvisa se posicionar defendendo a importância econômica da produção agrícola, que são argumentos utilizados pelo setor do agronegócio. Cabe à Anvisa e ao Ministério da Saúde se posicionar sobre o impacto na saúde humana. Certamente a aviação agrícola tentou, com essa medida, melhorar a imagem do setor no Brasil, que é uma imagem já bastante desgastada. Há pelo menos oito anos, no nosso país, existem muitas críticas ao uso de aviões agrícolas de pulverização aérea de agrotóxicos. A União Europeia está para banir a pulverização aérea de suas lavouras, vários países já estão fazendo isso, e o nosso país está caminhando no sentido contrário. O número de aeronaves cresce e agora eles estão querendo jogar veneno sobre as cidades. Além de criar um novo nicho de mercado para os aviadores agrícolas, também estão querendo com isso criar uma imagem positiva da aviação agrícola para a população, mas o tiro saiu pela culatra porque as críticas estão sendo muito fortes e é uma medida que a gente pode considerar uma medida de violência do agronegócio sobre a população brasileira. Do agronegócio sim, pois foi através da bancada ruralista que esta medida foi inserida no projeto de lei. Ronaldo Caiado conduziu uma audiência pública para defender esta medida. A gente pode considerar que é uma violência do agronegócio e que é uma violência também do governo interino de Temer.

O agronegócio está atuando também em outras frentes junto ao poder público?

Há anos o agronegócio articula para revogar a Lei nº 7.802, de 1989 (Lei de Agrotóxicos) no Congresso Nacional. Atualmente eles estão na ofensiva para aprovar o PL 3200 que se aprovado substituirá a Lei de 1989, que não é perfeita, mas tem conquistas importantes. Se aprovado o PL 3200 os agrotóxicos passariam a ser chamados oficialmente de Defensivos Fitossanitários e seria criada uma Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito) para regular os “defensivos fitossanitários” no Brasil. Detalhe: as pastas da Saúde e do Meio Ambiente que hoje tem peso decisivo na regulação perderiam totalmente a importância. Os ruralistas querem desregulamentar geral, criando uma Comissão de fachada para aprovar tudo. Num contexto de fragilidade democrática e de avanço da pauta conservadora, a ponto de aprovarem pulverização aérea de agrotóxicos sobre cidades, certamente corremos o risco de aprovarem o PL 3200. A situação do Brasil já é de uso indiscriminado de agrotóxicos e pode se agravar muito mais. Fiquemos atentos, temos de resistir!

Aliás, o custo do agronegócio para a saúde e o meio ambiente é invisibilizado. Quanto se gasta com o tratamento das pessoas doentes por conta dos coquetéis de agrotóxicos? Com a extinção de espécies e recuperação de áreas degradadas? Com o consumo das reservas de água para as plantações de soja? Essa conta ninguém faz, pois o que sai na mídia apenas é a importância do agronegócio brasileiro para a economia, riqueza essa que está concentrada nas mãos de poucos, enquanto os danos estão socializados para todos.

A gente tem que entender a aprovação de pulverização aérea de agrotóxicos sobre cidades no contexto da chegada de Ricardo Barros ao Ministério da Saúde. Logo de início ele declarou que o tamanho do SUS precisava de revisão, que o direito constitucional de acesso universal à saúde tinha de ser revisto. Ricardo Barros tem se reunido com setores dos planos de saúde, a quem interessa atender seus interesses privados. Então fica explícito qual é a agenda que Ricardo Barros vem implementar. Basta ler a matéria Agenda Controversa produzida pelo Portal EPSJV/Fiocruz. O ministro interino não veio a público defender a Nota Técnica do Ministério da Saúde contrária à pulverização aérea sobre cidades. Então, ele está deixando claro qual é a posição dele enquanto ministro, que é atender interesses do agronegócio, da indústria poluidora, da indústria tóxica, e não defender o posicionamento técnico que está colocado na defesa de saúde da população brasileira.

Então, ele está dando um sinal mais claro ainda de quais são os interesses que ele está querendo defender enquanto Ministro da Saúde. Estamos diante de uma agenda absolutamente negativa para o Sistema Único de Saúde, e para a saúde da população brasileira. Num contexto de crise econômica, muitas pessoas estão sendo demitidas, e boa parte delas tinha plano de saúde empresarial e deixaram de ter. Ou seja, está aumentando o número de usuários exclusivos do SUS e neste momento justamente é necessário mais investimentos no Sistema Único de Saúde para garantir o direito da população brasileira à saúde. Num contexto de crise econômica e política o SUS precisa ser fortalecido. Ricardo Barros não merece reconhecimento como ministro da saúde do nosso país porque tem uma agenda completamente oposta ao SUS, está mais para ministro da doença e do sofrimento.

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Comentários

Esperavam o quê de um ministro investigado por corrupção, peculato e outros crimes? Irônico isso. Quem não sabe que Ricardo Barros sofre ações criminais em todas as bases por sua gestão como prefeito de Maringá, que tem histórias recheadas de irregularidades, processos, ‘ardis’ tudo contra o interesse público? É um bandido no ministério da saúde.