A informatização na saúde é discutida há mais de 40 anos, mantendo-se como uma área cheia de desafios e fragilidades. Segundo dados de uma consulta realizada pelo Ministério da Saúde junto aos gestores, 80% dos municípios têm equipamentos de informática insuficientes, 70% têm problemas de conexão e em 60% faltam trabalhadores na área de Tecnologia da Informação. “Trinta porcento dos municípios têm Prontuário Eletrônico do Paciente implantado nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), o que não significa que estejam totalmente informatizadas”, explica José Mauro Pinto, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), completando que predomina no Brasil o cenário em que apenas a Secretaria Municipal de Saúde – e não as unidades de saúde – têm computador e internet. “Neste caso, as informações são registradas e gerenciadas em papel (formulários e prontuários) e a informatização dos dados ocorre a partir da SMS”, afirmou o pesquisador, que também ressalta que mais de 60% das UBS não utilizam prontuário eletrônico.
Mas, para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), José Mauro da Conceição, as iniciativas de governo, no âmbito da informatização, têm respondido a uma demanda de mercado das empresas privadas ligadas ao desenvolvimento ou venda de softwares, licenças de uso e de padrões e consultorias. Empresas essas que, segundo ele, têm atuado no desenvolvimento nos sistemas de informação da saúde no país. “Essa proposta da informatização em saúde apenas dá continuidade ao que já foi discutido em outros governos, mas nunca foi realmente efetivado. O que se deseja de fato para o SUS é integração de dados, informações e sistemas, qualificação dos profissionais e infraestrutura adequada. Mas até hoje não houve política abrangente de educação profissional que envolvesse, por exemplo, cursos que propiciassem um processo de ensino-aprendizagem mais sólido voltado para a informação em saúde”, destaca o pesquisador.
O investimento previsto para a informatização das Unidades Básicas de Saúde (UBS) é de R$ 1,5 bilhão ao ano. Durante entrevista coletiva no dia 10 de agosto, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, afirmou que o aperfeiçoamento dos sistemas de informação do SUS é uma das suas prioridades. Segundo ele, o objetivo é integrar o controle das ações, permitindo a correta aplicação dos recursos públicos e o fornecimento de dados adequados para o planejamento e para a execução das prioridades do setor. Barros destacou que esta informatização colocará o SUS no patamar de sistemas de saúde avançados do ponto de vista do gerenciamento das informações. Segundo José Mauro, as tecnologias apresentadas têm alguns pontos que permitem melhorias, porém o alto custo nem sempre justifica os poucos benefícios que estas soluções tecnológicas trazem. “No momento de contenção de despesas, é uma forma do Ministério transferir dinheiro público para a iniciativa privada. As manutenções nem sempre são feitas pelo Estado, assim, eles terão que pagar alguma empresa para fazer esse reparo. O Estado entra com uma parte pequena para transformar em software público, mas tudo que é preciso para esse software funcionar é privado. Além disso, não temos garantias da manutenção e da continuidade desse processo. Ninguém diz a parte que o Estado irá perder. A informatização custa caro ao governo, segundo eles mesmos”, afirmou o pesquisador.
Experiências pelo mundo
Outros sistemas universais de saúde, como o da Austrália e do Reino Unido, têm seguido essa tendência de informatização que, sde acordo com a professora-pesquisadora da EPSJV, Danielle Moraes, vem recebendo críticas. O uso de aplicativos por profissionais de saúde no Brasil, por exemplo, tem, segundo ela, capacidade de otimizar a informação, mas incentiva também a tendência de controle individual e individualizante no caso das consultas. “Fazem uma e-Saúde, algo a distância que, do ponto de vista das práticas de saúde, substitui o lugar da interação real dos trabalhadores em saúde com os usuários. O mais complicado é que essa substituição faz com que a gente valorize uma dimensão de autocuidado apenas no estilo de vida. Foca o cuidado no indivíduo, muitas vezes até culpabilizando-o”, ressalta Danielle. A pesquisadora exemplifica com o caso da Austrália, onde existem aplicativos que calculam a quantidade de água ingerida por uma pessoa durante o dia, baseando-se em scripts de práticas sanitárias ou educação em saúde prontos, que desconsideram as determinações sociais.
Da mesma forma, para a pesquisadora, distribuir tablets e smartphones para agentes comunitários e de combate a endemiass não enfreenta os reais problemas da Atenção Básica. Um problema, diz, é que a informação coletada não voltaria para as equipes de saúde como reorientação. Isso significa que a forma como os dispositivos rebateria na organização do processo de trabalho, em tese, impediria que a equipe analisasse os próprios dados com independência do nível municipal, central e distrital. Além disso, dificulta uma ação reflexiva para o processo de trabalho da equipe e a própria educação permanente. “A autonomia das equipes para agirem de acordo com a realidade do território se perde. Acabou o território!”, enfatiza.
Na entrevista coletiva, Barros defendeu também a implantação da biometria em todas as UBS, que fará o monitoramento do tempo dedicado ao paciente, além do acompanhamento do cumprimento da carga horária dos profissionais. Ele citou como exemplo o parâmetro da Organização Mundial de Saúde (OMS), que prevê que cada consulta dure cerca de 15 minutos. Atualmente, menos da metade das unidades no país — 37,5% — usa a ferramenta. Para Danielle, trata-se de uma “furada”, mesmo no modelo médico-centrado e e hospitalocêntrico do qual ela discorda: “Como se diz para alguém que ele tem uma doença altamente estigmatizante, como hanseníase, em uma consulta de 15 minutos? Como se faz o enfrentamento clínico de questões complexas definindo o tempo que o médico irá levar? O caso mais emblemático é o de dar diagnóstico para HIV em 15 minutos, sendo que uma primeira consulta leva de uma a duas horas”.
Danielle acredita que essa forma de organização não leva em conta a complexidade, a determinação social e a singularidade. “Tem muitas incompatibilidades lógicas. A Política Nacional de Humanização prevê um projeto terapêutico singular.Ccomo é que você faz isso em 15 minutos? Essa proposta não dá conta da integralidade e esquece as diretrizes constitucionais do SUS, como descentralização, atendimento integrado e participação da comunidade”, defende.
Com a nova política, todas as UBS deverão usar o prontuário eletrônico. Segundo o Ministério, até o final de 2018, ele será implantado em toda a rede. Apresentado como uma boa notícia, com isso, a população poderá ser atendida em qualquer unidade de saúde, enquanto atualmente, o acompanhamento do usuário é vinculado ao endereço da sua residência. “Quem é autoridade que vai dizer o tipo de registro que tem que constar nesse prontuário? Qual a capacidade de colocar nele as especificidades do território? A dimensão de coletivo e de território podem se perder”, advertiu Moraes.
Desafios
Outra preocupação destacada por José Mauro é se, atrelada a essas mudanças, o Ministério está implantando alguma política de segurança da informação. “O que garante, enquanto cidadão, que ninguém vai olhar minha ficha médica e saber que eu tenho alguma doença que eu não quero que ninguém saiba? Quero saber também como o Ministério está se precavendo de ataques cibernéticos na área da saúde, porque não se está lidando somente com dinheiro, mas também com a vida das pessoas”, alerta o pesquisador.