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Desigualdades que afetam mulheres de diferentes matizes

Vulnerabilidades das negras, trans, ribeirinhas, quilombolas, indígenas, ciganas, com deficiência e moradoras de rua, dentre tantos outros grupos femininos, são desveladas na Conferência de Saúde das Mulheres
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 15/09/2017 11h49 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
A luta estampada no banner fixado na cadeira de Luiza Câmera ilumina a inclusão das mulheres com deficiência. Foto: Katia Machado

As  mulheres em situação de rua são todas aquelas que muitas vezes sofreram violência doméstica, meninas que vieram das antigas Febems [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor], mulheres com transtornos mentais, que têm seus filhos retirados ainda na maternidade, que não conseguem acessar os postos de saúde sequer para fazer exames básicos, sob as justificativas de não terem documentos, nem comprovante de residência ou porque estão sujas. São mulheres que estão à margem da margem da sociedade, invisíveis a tantos outros grupos. Não se vê os movimentos negros, por exemplo, falando das mulheres em situação de rua, que são, na sua grande maioria, negras”. O relato à Poli de Maria Lúcia Santos Pereira, coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e delegada da 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres (CNSMu), realizada em Brasília, de 17 a 20 de agosto, evidencia o isolamento e a exclusão a que muitas mulheres estão submetidas e dimensiona os desafios para a efetivação de uma política de atenção integral à saúde delas, tema que esteve na centralidade dos debates desse esperado evento. Lúcia, uma ex-dependente química e ex-moradora de rua, onde viveu durante 16 anos, realçou as expectativas desse grupo de mulheres: “Nossas demandas são imensas, desde a necessidade de kits de higiene pessoal, passando pelo acolhimento ao problema da violência de todos os tipos, tanto por parte de alguns companheiros como por parte de pessoas ditas justas e direitas, que não enxergam essas mulheres”.

Na mesma direção, a transexual Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), advertiu que as mulheres trans, invisíveis à sociedade, estão em todos os lugares. “Elas só são realmente vistas quando precisam apresentar o documento oficial, o que é um choque para a grande maioria”, garantiu. A baiana, que participou da mesa que tratou de um dos eixos da 2ª CNSMu, sob o título ‘Vulnerabilidades nos ciclos de vida das mulheres na Política Nacional de Atenção Integral a Saúde das Mulheres’, observou que a conferência ajudou a sensibilizar as 1,8 mil pessoas presentes para as pautas das mulheres trans. “Existimos porque resistimos, estarmos aqui é um ato de rebeldia e garantia de direitos”, exaltou. E completou: “É desafiador pensar o processo transexualizador da saúde pública, que inclui as mulheres trans no sistema público de saúde”.

Keila demandou ser reconhecida como se identifica. “Se a pessoa está dizendo que ela é do gênero feminino, que ela se entende no mundo como mulher, eu devo aceitá-la como tal, porque não estou olhando para o seu órgão genital. Queria que a sociedade pudesse entender um pouco isso, que nossas vidas não precisam ser ‘genitalizadas’”, defendeu, contando que dentro do SUS as mulheres trans lutam pelo reconhecimento do nome social e das condições específicas da sua saúde. “Muitas pessoas que dizem respeitar os direitos das mulheres trans afirmam que ter acesso à cirurgia de troca de sexo é um privilégio conquistado. Mas que privilégio é esse quando isso é restrito e mulheres são mortas por se apresentarem como são?”, questionou. Segundo a presidente da Antra, mais de 300 pessoas trans foram assassinadas em um mês apenas. Coordenadora da mesa de debate, Heliana Hemtério, representante da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), sugeriu mais reflexão sobre os impactos da exposição das mulheres trans à violência, incluindo-se a transfobia como crime de feminicídio. “Essa é uma forma de garantirmos que esse tipo de violência tenha punição”, defendeu.

Vale destacar que o Brasil é o quinto país mais violento para as mulheres, segundo o Instituto Maria da Penha. No dia sete de agosto, quando a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) completou 11 anos, o Instituto lançou o site Relógios da Violência, propondo mostrar quantas mulheres são diariamente agredidas física ou verbalmente no Brasil. Baseado em um levantamento realizado pelo Instituto Datafolha, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o projeto revelou que a cada dois segundos uma mulher sofre violência, trazendo de maneira simples e didática informações sobre os seis tipos diferentes de violência contra a mulher – física, verbal, psicológica, patrimonial, sexual, e moral. Somente no dia sete de agosto, o Relógios da Violência identificou cerca de 26.500 mulheres que haviam sido agredidas física ou verbalmente, mais de 20 mil insultadas, humilhadas ou xingadas, 8.300 mulheres, em média, ameaçadas de violência e mais de 7.500 amedrontadas ou perseguidas. Além disso, realçou que mais de 7.300 sofreram violência física e mais de 38.500 mulheres foram assediadas, sem contar o assédio no trabalho – cerca de 11.500 mulheres – e nos transportes públicos – quase 8.700. O site informou na ocasião que cerca de 500 mulheres foram atingidas por tiro, 2.300 mulheres, em média, foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento e, aproximadamente, 3.300 mulheres foram ameaçadas com faca ou arma de fogo.

Os números do site Relógios da Violência se identificam com um estudo sobre o feminicídio realizado pelo Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgado no mês de agosto. Com base nos registros de saúde de 2009 a 2011, o Ipea revelou que o Espírito Santo lidera o ranking nacional de casos de feminicídio, apresentando uma taxa de 11,2 a cada 100 mil mulheres. Apesar de apresentar a terceira menor taxa entre as 27 unidades da federação – 3,2 a cada 100 mil mulheres –, São Paulo registra números aterradores: um feminicídio a cada quatro dias, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do estado. Os boletins de ocorrência do primeiro semestre de 2017, quando foram notificados 46 casos em São Paulo, trazem à tona a Lei do Feminicídio (nº 13.104/2015), que transformou em hediondo o assassinato de mulheres motivado justamente por sua condição de mulher.

 

Necessidades específicas

O debate sobre o direito de acesso das mulheres com deficiência auditiva, visual, motora, mental e portadoras de outras condições especiais também chamou atenção de quem passou pela 2ª CNSMu. Na mesa que abordou o tema das vulnerabilidades, Maria Luiza Costa Câmera, presidente da Associação Baiana de Deficientes Físicos (Abadef), que tem deficiência física por conta de uma doença congênita, realçou a luta das mulheres com deficiência. “Eu sou mãe, mulher, pessoa da vida”, frisou. Ela criticou o fato de muitos lugares, dos serviços aéreos até os de saúde, não estarem preparados para recebê-las.

Autora de diversos livros sobre a sua trajetória de vida, Luiza afirmou que as mulheres com deficiência agregam vários formas de discriminação. “Nós, mulheres deficientes, lutamos para sermos incluídas no mercado de trabalho. Tento denunciar o processo de exclusão no meu estado, mas é muito difícil sensibilizar o empresariado sobre nossa capacidade para o trabalho”, exemplificou. Mãe de duas filhas, ela precisou enfrentar o preconceito dos familiares e o julgamento da sociedade pelo simples fato de querer ser mãe. “As mulheres com deficiência, que são de vários tipos, são avaliadas, em pleno século 21, por suas condições físicas. Eu diria que somos um dos grupos mais discriminados”, avaliou. Em entrevista à Poli, ela contou que até mesmo em campanhas públicas de saúde não se pensa nas mulheres com deficiência. “Não tenho muitas vezes como subir de cadeira de roda naquelas carretas de saúde. Não há um mamógrafo que desça até minha altura. Trata-se de violência institucional contra a mulher, que nos constrange e nos humilha”, denunciou.

A trabalhadora rural Egiane Lago, delegada da 2ª CNSMu e conselheira de saúde, representando a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), caracterizou a mulher do campo. “Ela acorda às 5 horas da manhã e, antes de sair para a roça para trabalhar, leva o filho para a escola, arruma a casa, volta ao meio-dia para fazer a comida, às 17 horas vai tirar o leite, tratar dos animais e fazer o jantar”. As lutas deste grupo de mulheres, segundo ela, dizem respeito à carga horária de trabalho intensa, às condições precárias de trabalho, bem como ao acesso ao direito à saúde. “Nós temos o direito a fazer exames preventivos, a ter um posto de saúde próximo a nossa região”, defendeu.

Celia Regina Neves, do Movimento de Mulheres dos Povos Tradicionais, integrante do Resex Marinha Mãe Grande, em Curuçá (PA), iluminou também a luta das mulheres do campo, das florestas e das águas, que se dá prioritariamente sobre o território. Na 2ª CNSMu, onde participou da mesa de debate do eixo ‘O papel do Estado no desenvolvimento socioeconômico e ambiental e seus reflexos na vida e na saúde das mulheres’, ela lembrou os impactos provocados pelos grandes empreendimentos, como barragens, e o próprio modelo de desenvolvimento sintetizado pelo agronegócio. “Se não conseguimos produzir, não temos moradia, renda, nada”, afirmou. Segundo Celia, de 2010 a 2016, somente o estado do Pará declarou uma produção de mais de dez milhões de caranguejos. “Mas o caranguejo lá no manguezal custa sete centavos, enquanto nos restaurantes, sete reais”, denunciou, fazendo referência à resistência ao modelo de desigualdades, negligência, corrupção e opressão que impacta as populações do campo e das águas.

A quilombola e delegada da 2ª CNSMu Pan Batista, presidente de uma associação de pescadores e pescadoras e pequenos agricultores quilombolas de Santiago do Iguape, no município de Cachoeira (BA), remontou, em entrevista à Poli, o cenário em que vivem as mulheres quilombolas, fruto desse processo de resistência. “Nós, quilombolas, vivemos em áreas de reservas naturais, em áreas pesqueiras, de plantação. Nossas doenças são decorrentes da prática do trabalho, de cargas horárias intensas. As marisqueiras, por exemplo, apresentam problemas de coluna por conta do peso, de articulações face à repetição de movimentos, ficam horas e horas agachadas, têm problemas no útero pelo contato com a lama e áreas úmidas, a pele é castigada pelo sol, seus corpos são cobertos por querosene para espantar os mosquitos. Ou seja, resistem a práticas que afetam rotineiramente a saúde”, resumiu. Na observação de Pan, as mulheres quilombolas demandam agilidade no processo de marcação de consultas, o cuidado em relação a doenças do grupo étnico, como a anemia falciforme e as diabetes, e o atendimento localizado, direcionado as suas atividades ocupacionais.

Por sua vez, Luzia Pataxó, indígena da Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália (BA), defendeu mais qualidade no atendimento à saúde das indígenas, a construção de unidades de saúde e o reconhecimento de seu povo que muito contribui para a saúde. “Em muitas aldeias, somos atendidas debaixo de um pé de árvore, em igreja, em salão comunitário”, criticou. À Poli, ela defendeu o direito à terra, à moradia e à qualidade de vida.  “Entregamos um documento ao secretário nacional de Saúde Indígena, fruto da 1ª Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas, realizada em abril, que traz as pautas que afetam nossas vidas no que se refere à atenção integral à saúde”, contou. O documento, assinado por cerca de 50 indígenas, listava propostas para qualificar os serviços ofertados pelo SUS, por meio do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. “Regular, fiscalizar e ampliar o incentivo de atenção especializada aos povos indígenas nos hospitais; estabelecer normativa permitindo o parto nas aldeias; fomentar a troca de saberes entre parteiras de diversos povos”: essas foram algumas das proposições que diziam respeito ao pré-natal, ao parto e ao puerpério. Sobre planejamento familiar, as mulheres indígenas pediram, entre outras coisas, o fortalecimento da participação de parteiras e pajés nos serviços de saúde municipais e estaduais. Gestão e controle social da saúde indígena, alimentação, acesso à água e sustentabilidade também foram temas contemplados no documento, visando garantir o fortalecimento, o incentivo e a revitalização das bases alimentares tradicionais, bem como a revitalização e a proteção das nascentes nos territórios indígenas municipais. O documento tratou, ainda, da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e do colo de útero, da formação de profissionais de saúde que atendem às populações indígenas e do atendimento nas unidades de referência do SUS. 


Equidade gera integralidade

“Por que eu defendo a saúde das mulheres?”. A pergunta, que ilustrou um grande banner instalado no saguão de entrada do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília (DF), onde foi realizada a 2ª CNSMu, trazendo as hashtags em referência a campanhas contra o feminicídio (#NemUmaAMenos) e contra retrocessos (#NemUmDireitoAMenos), provocou o debate de ideias e práticas para o crescimento da força das mulheres, à luz de um cenário de jugo patriarcal, machismo, sexismo e misoginia. “A pluralidade das mulheres foi a primeira grande questão que esta conferência evidenciou. Hoje, não falamos mais da saúde da mulher, mas sim da saúde das mulheres. Da primeira conferência [realizada em 1987] para a segunda, observa-se um avanço, o reconhecimento da diversidade. E só será possível trabalhar a equidade se conseguirmos ver onde estão as diferenças e quais dessas diferenças implicaram desigualdades”, avaliou Carmen Lucia Luiz, da União Brasileira de Mulheres (UBM) e integrante da Comissão Executiva da 2ª CNSMu.

Em entrevista à Poli, ela realçou como as desigualdades impactam alguns segmentos de mulheres. “Tem uma questão básica para a vida das mulheres, que é a opressão de gênero. Isso está presente para todas nós, independentemente de classe social, raça, cor, etnia e idade. Saímos na desvantagem simplesmente por sermos mulheres, porque o nosso mundo é machista há muitos milênios. Mas, dependendo do segmento a qual se pertença, agregam-se diferentes vulnerabilizações. Se você é uma mulher, você sofre opressão de gênero, mas se é uma mulher negra, sofre opressão de gênero e racismo. Se ainda é lésbica, transexual ou bissexual, é penalizada por sua orientação sexual”, exemplificou.

A integrante da UNB destacou que as mudanças necessárias na política brasileira só acontecerão se as mulheres forem reconhecidas como sujeitos de direitos e sua participação nas decisões for garantida. “Temos que estar sempre vigilantes contra o retrocesso. Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”, disse, lembrando a filósofa e ativista política francesa, Simone de Beauvoir.

Diante de uma conjuntura política bastante peculiar, a 2ª CNSMu aprovou por unanimidade a proposta que marcou a contrariedade das mulheres à Emenda Constitucional 95/2016, promulgada pelo Congresso Nacional para limitar os gastos públicos em saúde e educação por 20 anos. “A gente debateu, aceitou, ouviu os argumentos de ambos os lados e este exercício é fantástico para o trabalho de incremento à saúde das mulheres”, avaliou Carmen Lucia. Em sua análise, o congelamento dos gastos da saúde por 20 anos é uma ameaça para todos os cidadãos e todas as cidadãs, mas especialmente para as mulheres que já são fragilizadas. “Lutar contra a permanência da Emenda Constitucional 95 é lutar pela saúde, pela defesa do SUS, pela qualidade de vida das mulheres”, orientou.

O mesmo refletiu Emília Fernandes, presidente do Fórum de Mulheres do Mercosul e primeira ministra de Políticas para Mulheres do Brasil. “O tema saúde é um tema prioritário ao longo de toda história do país, cujo protagonismo é das mulheres”, frisou. Para ela, o momento é complexo, “porque temos um governo que consideramos ilegítimo e que, portanto, não deveria propor medidas dessa profundidade, que acaba com direitos sociais duramente conquistados”. Ela denunciou o fechamento de hospitais, postos de saúde e das farmácias populares e o desmonte do Programa Mais Médicos. “Esta conferência precisará reunir forças, aglutinar e permanecer em constante alerta e atenção, para fazer frente ao que está sendo feito no país e que atinge as populações mais pobres”, sugeriu.

Para Ronald Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a política precisa ser reforçada e colocada em evidência, questionando as estruturas públicas e denunciando os gargalos do machismo institucional e da violência contra a mulher. “Revisitar a Política de Atenção Integral à Saúde das Mulheres implica criar mecanismos para que a sociedade não retroceda. Precisamos fazer da conferência instrumento de aglutinação de força social e política, se contrapondo a uma onda ultraliberal, promotora de ódio, preconceito, machismo e conservadorismo”, completou.

Feminismo em ação

Carmen Lúcia falou também sobre a relevância do papel dos movimentos feministas na luta pelo direito à saúde das mulheres, a exemplo das pressões feitas nas décadas de 1970 e 1980 contra a prática de esterilização. “No Brasil, a esterilização atingiu, especialmente, mulheres pretas e pobres, sem seu conhecimento e consentimento”, advertiu, lembrando que foram as mulheres organizadas que denunciaram essas ações, levando o Ministério da Saúde a convocar uma comissão para escrever um documento que serviria de base programática para o país. “Mais de 70 grupos de mulheres se reuniram em outubro de 1984, realizando o 1º Encontro de Saúde da Mulher, onde denunciaram a prática da esterilização como método contraconceptivo e que tal prática não mudava as condições de vida das mulheres, nem trazia benefícios”, lembrou. O documento final do encontro ressaltava conceitos como integralidade, equidade e controle social, que estariam presentes nas bases constitucionais da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988. Ela reconheceu persistir um movimento feminista interseccional, que cuida especialmente da opressão das mulheres negras, das mortes maternas, do racismo institucional e das vulnerabilizações a que certos grupos femininos estão submetidos.

Entre as inúmeras pautas trazidas para o debate na 2ª CNSMu, a que causou mais polêmicas foi a dos direitos reprodutivos. Diversas propostas relacionadas ao tema, que levavam em consideração o direito das mulheres ao aborto nos casos legais e a garantia do atendimento às mulheres que abortam, foram aprovadas ainda nos debates dos grupos. Na plenária final, porém, enquanto parte significativa continuava a defender o direito ao corpo e a uma política de saúde que vise à descriminalização do aborto, um grupo autodeclarado “pró-vida” apresentou moção em apoio ao Projeto de Lei 478/07 para criação do estatuto do nascituro. A moção foi rejeitada com aperto, por 51% do plenário.

Em entrevista à Poli, a delegada Magdalena Chicon Martin, da Associação Pró Vida Casa Mater Rainha da Paz, em Canoinha (SC), disse promover uma conscientização contra o aborto. “Queremos que o nascituro seja respeitado, porque ele é independente do corpo da mulher”, defendeu. Para ela, não se pode permitir matar um ser inocente, que é fruto de uma relação não planejada. “Precisamos estabelecer uma maior responsabilidade quanto aos planejamentos familiares, para que as pessoas não coloquem filhos no mundo para depois abandoná-los ou abortá-los”, opinou.

A médica sanitarista Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos (Santinha), da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, relembrou que o aborto legal já é uma realidade. “Temos o aborto legal há 70 anos. Queremos apenas que a lei seja cumprida e que o SUS também possa atender os casos de aborto inseguro para que as mulheres não morram”, intercedeu.

A face do estupro

“Cala a boca, se alguém ouvir sua voz vai saber que é tu”, grita um. “Tapa o rosto da novinha”, diz o outro. Um vídeo que circulou nas redes sociais, em maio deste ano, mostra quatro rapazes que estupram uma menina de 12 anos em uma comunidade na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. O crime aconteceu cerca de um ano após o estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Morro da Barão, na Praça Seca, na mesma cidade, com vídeo do ataque também postado nas redes sociais. Em Uruçuí, no sul do Piauí, uma grávida de 15 anos foi estuprada por três adolescentes, e o namorado, morto na sua frente. Em Presidente Epitácio, no interior paulista, uma mulher de 48 anos foi retirada de sua casa e estuprada por quatro rapazes — eles eram seus vizinhos. Em Santo Antônio do Amparo, Minas Gerais, uma dona de casa de 31 anos foi atacada, estuprada e morta a caminho de casa.  Os crimes foram cometidos e confessados por quatro homens.

Dados inéditos do Ministério da Saúde (MS), anunciados em agosto deste ano, revelam o crescimento dos estupros coletivos em cinco anos. A pesquisa — primeira a captar a evolução desse tipo de violência sexual no país — mostra que as notificações pularam de 1.570, em 2011, para 3.526, em 2016. São em média dez casos de estupro coletivo por dia, descontado o problema da subnotificação dos casos de violência sexual — nem todas as vítimas procuram hospitais ou a polícia por medo ou vergonha e, ainda, 30% dos municípios não fornecem dados nesse sentido ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, apesar de a notificação pelos serviços públicos e privados de saúde ser obrigatória desde 2011 — e o fato de, na polícia, os registros do crime praticado por mais de um agressor não serem contabilizados em separado dos demais casos de estupro. Vale citar ainda que, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10% do total de estupros são notificados. Considerando, portanto, com base no levantamento feito pelo MS, que há 50 mil casos registrados por ano (na polícia e nos hospitais), o país teria 450 mil ocorrências ainda “escondidas”.

Primeira a traçar um perfil dos casos de estupro no Brasil a partir de informações de 2011 do Sinan, a pesquisa do Ipea diz que 89% das vítimas são do sexo feminino e têm, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes. “As consequências, em termos psicológicos, para esses garotos e garotas são devastadoras, uma vez que o processo de formação da autoestima — que se dá exatamente nessa fase — estará comprometido, ocasionando inúmeras vicissitudes nos relacionamentos sociais desses indivíduos”, escrevem em uma nota técnica o diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, Daniel Cerqueira, e o técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea, Danilo Santa Cruz Coelho, responsáveis pelo estudo.

Para Cerqueira, “o estudo reflete uma ideologia patriarcal e machista que coloca a mulher como objeto de desejo e propriedade”. Segundo ele, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos e conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares. Ainda de acordo com a Nota Técnica, 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. “O indivíduo desconhecido passa a configurar paulatinamente como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta. Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos”, esclarece a pesquisa.

Retrato nacional

Os estados do Acre, Tocantins e Distrito Federal lideram as taxas de estupro coletivo por cem mil habitantes, com 4,41, 4,31 e 4,23, respectivamente. Esse tipo de crime representa, atualmente, 15% dos casos de estupro atendidos pelos hospitais, em um total de 22.804 casos de violência sexual registrados em 2016.

Segundo a antropóloga Debora Diniz, pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, o trauma emocional de uma mulher que sofre estupro coletivo é muito maior, especialmente quando a violência resulta em gravidez, ainda que o aborto seja legal nessas situações. Ela observa, também, que a gravação e a divulgação de imagens de vários casos de estupro coletivo chamam atenção. Dos 51 casos noticiados nos últimos três anos, 14 tiveram vídeos em redes sociais, a exemplo da situação da menina de 12 anos estuprada no Rio e ameaçada para ficar em silêncio. O caso só foi denunciado à polícia quando a tia recebeu as imagens pelo celular. “É perturbadora essa necessidade que os agressores têm de filmar a violência. É como se fosse um souvenir da conquista”, avaliou.

 

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