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Mais perto do fim do mundo

Desmentindo o discurso do governo, especialistas mostram que a PEC 241, que no Senado recebeu o número 55, retira recursos da saúde e da educação e aumenta o desvio de dinheiro público para os rentistas
Cátia Guimarães (com colaboração de Maíra Mathias) - EPSJV/Fiocruz | 09/11/2016 13h39 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Manifestação no Rio de Janeiro contra a PEC do fim do mundo Foto: Mídia Ninja

No momento em que esta reportagem está sendo escrita, a PEC 241 acaba de ser aprovada na Câmara dos Deputados e começa a tramitar no Senado, onde recebeu um novo número. Agora, ela se chama PEC 55. Na sociedade, foi apelidada de PEC do Fim do Mundo. Apesar das manifestações que aconteceram no Brasil inteiro, com dezenas de milhares de pessoas nas ruas contra a medida, o resultado eram favas contadas. Estampada nas páginas dos jornais todos os dias desde que Michel Temer assumiu ainda como presidente interino, a pequena sigla de três letras talvez não deixe claro o que realmente significa: ela vai modificar a Constituição para limitar os gastos do governo federal pelos próximos 20 anos. Se permanecer o que foi aprovado até agora, quase todo o orçamento que o governo usa para pagar as despesas ordinárias e manter os serviços públicos será congelado na situação em que se encontra hoje. Anualmente, os números serão atualizados, mas apenas pelo índice que mede a inflação, o que significa nenhum aumento real. Ao longo das duas próximas décadas, no entanto, o país não se congela junto com o orçamento: crianças continuarão a nascer e crescer, precisando de mais escolas; a população continuará a aumentar e envelhecer, demandando mais serviços de saúde, assistência, segurança. É precisamente por isso que pesquisadores de diversas áreas têm denunciado que, na prática, a PEC não significa um congelamento, mas uma brutal redução dos gastos com políticas públicas.

Saúde e educação: contas que não fecham

A maior grita contra o teto dos gastos se deu exatamente em relação às políticas de saúde e educação. Por isso, o relator da PEC na Câmara, deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), que compõe a Frente Parlamentar da Saúde, modificou o texto original da medida, criando condições “especiais” para essas duas áreas. A partir daí, o governo e os deputados da base aliada, que votaram a favor da proposta, passaram a afirmar que essas políticas teriam ampliação – e não redução – de recursos. Especialistas em financiamento em saúde e educação, no entanto, desmentem esse argumento.

Pelo texto que foi aprovado na Câmara, as despesas com saúde e educação só começariam a ser contabilizadas no teto em 2018, enquanto para todas as outras áreas a regra já valeria em 2017. No caso da saúde, há ainda outra mudança. O que regula o financiamento da saúde hoje é a Emenda Constitucional 86, que estabelece como investimento mínimo uma fatia da receita corrente líquida do governo federal que começa em 13,2% em 2016 e vai crescendo até chegar a 15% em 2020. O que o texto da PEC fez foi antecipar para 2017 esse percentual máximo, fazendo, portanto, com que o congelamento que vai acontecer a partir de 2018 se dê sobre um orçamento maior. “Essa mudança, na verdade, é uma cortina de fumaça”, acusa o economista Francisco Funcia, consultor da Comissão de Financiamento e Orçamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS). E completa: “Simplesmente se adiou por um ano um processo de perdas que vai até 2036”.

Ele reconhece que, com a antecipação do percentual mais elevado, a saúde terá R$ 10 bilhões a mais do que teria em 2017. Mas a boa notícia acaba aí. Supondo que a economia cresça em média 2% ao ano, com uma inflação de 4,5% – o que Funcia classifica como um cenário muito “razoável” –, ao longo dos 20 anos, a perda para a saúde, segundo o pesquisador, será de R$ 417 bilhões. Isso porque, com investimentos reajustados apenas pela variação da inflação, a saúde não receberá nenhum centavo do ganho de receita que o governo federal tiver. “E quanto maior for o crescimento [econômico], maior vai ser a receita e maior vai ser a perda [para a saúde]”, explica.

Funcia sabe que pode ser acusado de estar fazendo apenas previsões, sem nenhuma certeza sobre o que vai acontecer com a economia do país nessas duas décadas. Por isso, ele faz também um cálculo retroativo,  simulando o orçamento que a saúde teria tido se a PEC já existisse em anos anteriores. Esse é um cálculo que tem a vantagem de trabalhar com dados reais (passados) e não com parâmetros (futuros). Analisando de 2003 a 2015 (último ano de que se tem dados), o resultado, segundo ele, é que, nos primeiros três ou quatro anos, “haveria um relativo ganho” em relação aos recursos que, no passado, foram efetivamente empenhados. Mas, nos anos seguintes, e no acumulado dos 12 anos, a área teria uma perda de R$ 135 bilhões, em valores de 2015, sem atualizar pela inflação daquele ano. Segundo ele, mesmo com essas mudanças de última hora na Câmara, a PEC fará com que o gasto do governo federal em saúde caia do marco de 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB) – onde está estagnado desde 1995, muito abaixo das necessidades da população –, para 1% do PIB. “Então não é congelamento, é queda”, resume.

Na educação, a situação é um pouco diferente, mas também nada animadora. Hoje a Constituição determina que o governo federal deve aplicar 18% da receita líquida de impostos em educação. Segundo cálculos do professor José Marcelino Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), com a aprovação da PEC, considerando-se um cenário com crescimento real de receita de 3% ao ano, em duas décadas o comprometimento de recursos da União será reduzido de 18% para 10,3%. Mas pode ser pior. Com as “condições especiais” que o relator da PEC na Câmara criou, a educação só passa a ser incluída no teto de gastos a partir de 2018 mas, em compensação, o congelamento vai ter como referência o valor que foi aplicado em 2017. Para todas as outras áreas, se a PEC for aprovada este ano, a correção será de 7,2%, valor previsto para a inflação de 2016. Onde está o problema? É que, embora o gasto da União com Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) venha caindo desde 2012, em 2015 ele ainda foi cinco pontos percentuais maior do que o mínimo estabelecido pela Constituição, totalizando 23% da receita líquida de impostos. Com o ajuste fiscal de agora, a tendência é diminuir. “Há, sim, o risco de ser um valor menor do que 2016. Aí a gente partiria de um patamar mais baixo”, explica José Marcelino. Em nota conjunta sobre os efeitos da PEC, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) afirmam que “se o atual governo continuar reduzindo os gastos até 2018, quando se iniciaria o congelamento, a queda real de gastos da União pode superar os 50%”.

Tal como na saúde, os pesquisadores da educação que combatem a PEC também fizeram cálculos retrospectivos. Um quadro na nota produzida pela Campanha e a Fineduca mostra que, se essa medida estivesse valendo desde 2010, até 2016 o governo federal teria gastado R$ 73,6 bilhões a menos com manutenção e desenvolvimento da educação. Corrigido pela inflação, esse valor chega a R$ 89 bilhões.

Mas na educação a PEC produz ainda uma enorme contradição. O argumento do governo é de que a área perderia mais recursos mantendo-se a regra atual, já que, em tempos de crise, a arrecadação de impostos – que é a base do financiamento hoje – tende a cair. José Marcelino comenta: “Eu acho que uma das estratégias do governo é dizer: olha, com recessão é melhor a PEC do que a vinculação [já que a arrecadação de impostos diminuiu]. E aí é uma cortina de fumaça porque o que a gente está discutindo é o futuro do Brasil. Para que a PEC seja boa, nós temos que torcer para que o Brasil fique em recessão, um negócio absurdo”.

O que a equipe econômica do governo não destaca são outros efeitos dessa queda na arrecadação de impostos para o campo da educação. Tem sido ressaltado pelos defensores da PEC que ela deixa de fora do teto os repasses do governo federal para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o que é verdade. Mas José Marcelino faz algumas ressalvas. A primeira é que a contribuição da União para o Fundeb já é muito baixa, apenas 10%, ficando o resto a cargo de estados e municípios. Segundo que, como os recursos do Fundeb também são vinculados à arrecadação, em tempos de crise, embora o percentual continue o mesmo, o valor absoluto de contribuição da União deve diminuir. “É um discurso demagógico”, afirma. Mas o mais importante não está sendo sequer discutido. De acordo com a Lei 13005/2014, que instituiu o Plano Nacional de Educação, desde junho deste ano deveria estar sendo implementado o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi). Criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o CAQi é um indicador que considera os custos das instituições de ensino de todos os níveis da educação básica para mostrar quanto deve ser investido de modo a garantir um padrão mínimo de qualidade, que inclua bibliotecas, quadras de esporte, laboratórios, material didático e outros insumos. Segundo José Marcelino, o maior ganho do CAQi seria quintuplicar o complemento da União para o Fundeb, aumentando dos atuais 0,22% para 1,1% do PIB. “Isso está na lei do Plano Nacional de Educação. Enquanto a PEC não está em vigor. É mais uma cortina de fumaça que esconde o fato de estar havendo um descumprimento legal por parte do governo”.

Estados e municípios

A rigor, a exceção não é apenas o Fundeb, já que a PEC não inclui as transferências de recursos que a União precisa fazer aos estados. Assim, o governo tem afirmado que a restrição vale apenas para os gastos da União. Mas há controvérsias.

Francisco Funcia ressalta que, no caso da saúde, as transferências de recursos para estados e municípios, por meio de “blocos de financiamento” – como atenção básica, assistência farmacêutica e vigilância em saúde – representam dois terços do orçamento do Ministério da Saúde. Com a redução de recursos que a PEC vai significar, para ele, as contas simplesmente não fecham. “Você acha que não vai sofrer redução a transferência prestada aos municípios? Claro que vai. E se os municípios não tiverem condição de pôr mais recursos, eles vão ter que fechar serviço, reduzir serviço, diminuir a qualidade do atendimento à saúde da população”, alerta.

Mas não é só isso. Embora a PEC estabeleça um teto apenas para o governo federal, o Projeto de Lei 257/2016, criado pelo governo Dilma e já aprovado na Câmara, autoriza a renegociação da dívida dos estados com a União com uma condição: que eles estabeleçam também tetos de gastos, à imagem e semelhança da PEC 241.

Tirar de onde?

Na letra da lei, o governo tem razão quando diz que a PEC não institui obrigatoriamente um limite de gastos para as áreas sociais, como saúde e educação. Isso porque o teto é sobre o orçamento geral, de modo que se pode retirar de um lado para colocar em outro. No site em que o Ministério da Fazenda montou um “perguntas e respostas” sobre a PEC, a explicação é clara: “Não se está impondo um limite máximo às despesas com saúde e educação, mas sim alterando-se o critério de fixação da despesa mínima. Nada impede que o Poder Executivo ou o Poder Legislativo fixe despesas em saúde e educação acima do mínimo, desde que outras despesas sejam ajustadas para acomodar tal elevação ao limite estabelecido para o total de gastos. Diga-se de passagem, nos anos recentes, as despesas com saúde e educação do governo federal têm se situado acima do mínimo constitucional”.

Para economistas e especialistas críticos à medida, no entanto, existe sim algo que “impede”: o fato de que, com a PEC, não haverá de onde tirar recursos. “Se fizer esse congelamento [de gastos federais], dentro de poucos anos o orçamento só vai cobrir os gastos de previdência, saúde, e educação. Vai sobrar 1% para toda a manutenção do Estado, inclusive Forças Armadas. Então, esse congelamento inviabiliza o funcionamento do Estado”, alerta Maria Lucia Fatorelli, economista e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida.

Numa audiência pública realizada na comissão de fiscalização financeira e controle da Câmara para debater a PEC 241, o economista Pedro Rossi, do Instituto de Economia da Unicamp, chegou a conclusões semelhantes. Em gráficos e números, ele mostrou que, com a PEC, o gasto federal no Brasil vai cair dos atuais 20% do PIB para aproximadamente 13%. Ele fez uma simulação considerando já mudanças no gasto com a previdência ao longo desses 20 anos. De um lado, previu o aumento dos benefícios em função de uma “pressão demográfica” causada pelo envelhecimento da população; do outro, já contou com a ‘economia’ gerada por uma reforma da previdência nos moldes que tem sido defendida pelo governo Temer. O resultado é que sobrariam 3% do PIB para todas as despesas do governo federal: saúde, educação, salário dos servidores, Forças Armadas, etc. “Os senhores acham isso factível?”, perguntou o economista, na audiência. E respondeu: “Eu acho que essa PEC não é factível e será revogada em algum momento porque vai gerar um conflito tamanho aqui dentro desta Casa e lá fora na sociedade. Ela não cabe”.

Promessa de uma campanha sem eleição, o fim das vinculações constitucionais que garantem a aplicação de recursos mínimos na saúde e na educação já estava previsto no documento ‘Ponte para o Futuro’, que se tornou o primeiro guia do então governo temporário de Temer. Essas vinculações não foram eliminadas por uma Proposta de Emenda Constitucional que apresentasse esse objetivo mas, na prática, ficam extintas durante 20 anos por essa outra PEC, cujo objetivo anunciado é instituir um novo regime fiscal. “A PEC acaba com a maior conquista da educação brasileira que foi a vinculação de um percentual da receita de impostos. E é importante dizer que depois de ter sido incluída na Constituição brasileira, lá em 1934, extinguir a vinculação só ocorreu em dois momentos: na ditadura do Estado Novo e na ditadura militar. No Brasil, a vinculação é uma marca da democracia”, denuncia José Marcelino. Talvez por isso uma nota assinada por juízes, advogados públicos, procuradores e até pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que pertence ao Ministério Público Federal, alega que a PEC 241 é inconstitucional. “Parece-nos claro que a PEC 241/2016 afronta o arranjo sistêmico de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que amparam o custeio dos direitos fundamentais, notadamente por meio de vinculações de receita ou dever de gasto mínimo, como se sucede com a seguridade social e os direitos à saúde e à educação”, diz o texto.

Se a conclusão dos números é de que o teto não cabe nos gastos mínimos que o Estado deveria ter, a pergunta é: como um governo vai poder priorizar saúde e educação para aumentar os recursos? “É a escolha de Sofia. Vamos poder escolher entre manter as universidades ou matar os velhinhos”, diz José Marcelino. E completa: “O que o governo quer fazer é pôr a saúde brigando com a educação, a educação brigando com a previdência”.

Previdência: a grande vilã?

No fundo, a equipe econômica do governo sabe que, aprovada a PEC, não vai sobrar dinheiro para os gastos de manutenção do Estado. Por isso, desde já, ela tenta vender o pacote completo: depois do teto, será preciso diminuir a fatia de gastos sociais que mais recebe recursos públicos, a previdência. Isso porque, diferente do que acontece com a vinculação do investimento em saúde e educação, que ficam suspensos por 20 anos, a PEC não tem o poder de, sozinha, restringir o orçamento da previdência social.

Para os economistas do governo, essa reforma é prioridade porque, no gráfico do orçamento público, a previdência ocupa a segunda maior fatia de gastos. Em 2014, enquanto saúde e educação comprometeram pouco menos de 4% do orçamento cada, o gasto com previdência chegou a 21,76%. Aos olhos dos que defendem as medidas estruturantes de ajuste fiscal em curso, parece muito. Mas, nesse percentual, estão contabilizados benefícios para 32 milhões de brasileiros, incluindo não apenas aposentadorias – que são, em sua esmagadora maioria, de até um salário mínimo – mas também auxílio-doença e pensão por morte. “A previdência é o que impede o Brasil de virar um Haiti. São auxílios e benefícios que atingem uma população gigantesca”, opina José Marcelino, criticando a forma como o atual governo tem tratado a área: “Nem na ditadura militar você teve um ministro que cuidava ao mesmo tempo da Fazenda e da Previdência, que é de longe o maior programa social brasileiro”. Além disso, a previdência gasta apenas os recursos que legalmente são reservados a ela. Na verdade, desde que foi criado o mecanismo da Desvinculação de Receitas da União (DRU), em 1996, ela recebe menos do que manda a Constituição.

E se o vilão fosse outro?

O fato é que, atacada por todos os governos, com a PEC do teto dos gastos, a previdência social se torna a verdadeira vilã do orçamento no Brasil. Mas se você leu atentamente esta parte do texto, não deve ter passado despercebida a informação de que a previdência abocanha a segunda maior fatia do orçamento. Isso é importante porque o que os críticos a essas medidas de ajuste fiscal denunciam é que um dos objetivos da PEC é exatamente garantir que não se mexa nos gastos que comprometem, de fato, a maior parte dos recursos públicos no Brasil: o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Segundo dados de 2014, essa ‘rubrica’ consumiu 45,11% do orçamento federal, portanto mais do que o dobro do gasto com a previdência.

Mas se a PEC institui um teto para todos os gastos do governo federal, essa sangria de dinheiro para a dívida pública também vai diminuir? Não. A PEC 241, que agora tramita no Senado com o número 55, impõe “limites individualizados para as despesas primárias”. Maria Lucia Fatorelli explica: “Qual é a pegadinha? A PEC congela os gastos primários. O orçamento primário engloba toda a arrecadação tributária e os gastos em saúde, educação, previdência, assistência, tecnologia, manutenção do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, etc. Todos os gastos, exceto a dívida”.

No “perguntas e respostas” que organizou sobre a PEC, o Ministério da Fazenda reconhece que o gasto com juros é alto mas afirma que limitá-lo não “abriria espaço para maior despesa em outras áreas”.  O raciocínio da equipe econômica é simples: considerando-se só as despesas primárias, que não incluem o pagamento dos juros, o governo já gasta mais do que arrecada. Portanto, “não sobram recursos primários para o pagamento de juros”, diz o texto, que detalha: “Quando os juros vencem e têm que ser pagos, o que o governo faz é tomar mais empréstimos para quitá-los. Ou seja, a dívida pública cresce não só para rolar a dívida, mas também para pagar os juros devidos sobre ela. (...) Nesse caso, a consequência de limitar o pagamento de juros seria um calote da dívida pública: quem tiver direito a receber juros da dívida não será pago”.

É interessante perceber como o texto, bem didático, evidencia a prioridade que orienta a PEC que institui o teto de gastos. Isso porque, se o governo gasta mais do que arrecada, e se existe consenso entre os pesquisadores de áreas como saúde e educação de que o investimento nelas é inferior ao necessário e ao padrão internacional, a constatação objetiva é que, nessa conta de somar e subtrair, também não sobram recursos para o financiamento dessas políticas. Mais do que isso: com a DRU, há décadas 20% (agora reajustado para 30%) do orçamento exclusivo da seguridade social – assistência, saúde e previdência – têm sido desviado para pagamento das despesas não-primárias, ou seja, os juros da dívida. No entanto, curiosamente, o único buraco do orçamento que a equipe econômica defende preencher é o da dívida pública. O argumento é de que a história recente do país, com o Plano Collor e a moratória da dívida externa realizada em 1987, mostram que deixar de pagar esses compromissos “tem graves consequências sobre a economia”. E o efeito mais direto, de acordo com o texto, será exatamente o aumento da taxa de juros cobrada pelos investidores, o que prejudicaria a população como um todo.

Em primeiro lugar, vale lembrar que, hoje, mesmo dedicando quase metade do orçamento federal para a dívida pública, o Brasil já tem as taxas de juros mais altas do mundo. E com uma política econômica que visa atrair capital estrangeiro – como, por exemplo, anuncia o recém-lançado Programa de Parceria de Investimento (PPI) –, nada indica que o governo tenha a intenção de baixá-las. Mas o mais curioso é que, no mesmo texto de “perguntas e respostas” do Ministério da Fazenda, em outro trecho que trata sobre o pagamento da dívida, o argumento parece ser o oposto, destacando o quanto uma parcela considerável da sociedade se beneficiaria diretamente pelos rendimentos desses mesmos juros.  Diz o texto: “A despesa com juros não vai apenas para os mais ricos da sociedade. Qualquer pessoa que tiver um dinheiro poupado investido em um fundo de investimento, opção oferecida a qualquer correntista bancário, tem dinheiro aplicado em títulos públicos. Como também todos aqueles que possuem algum tipo de previdência complementar. Pelos dados do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal (DPF), publicado pelo Tesouro Nacional em agosto/2016, os fundos de investimentos representavam cerca de 21,07% do total de detentores da DPF. A Previdência representa 24,61% e o próprio governo detinha 5,52% do montante da DPF. Portanto, o não pagamento dos juros de títulos imporia perda patrimonial direta a uma parcela expressiva da sociedade”. Fica a pergunta: afinal, os juros altos prejudicam ou beneficiam a população?

Além da contradição no argumento, não há consenso sobre quem ganha e quem perde com a dívida brasileira. No seu próprio “perguntas e respostas” sobre o tema, a Auditoria Cidadã da Dívida argumenta, embora com dados mais antigos, de 2013, que apenas 0,36% da dívida interna brasileira é do chamado “tesouro direto”, onde parte da classe média costuma investir. Segundo esses mesmos dados, naquele ano, 28% (um número até maior do que o informado pelo governo relativo a 2016) pertenciam a fundos de investimento. Segundo a Auditoria Cidadã, no entanto, esses rendimentos também beneficiariam grandes rentistas, embora a lista desses investidores não seja pública, guardada como “sigilo bancário” pelo Banco Central. Os fundos de pensão detinham, naquela época, menos de 13% dos títulos da dívida. Mas a maior parcela, 62% do “estoque da dívida”, pertencia a grandes bancos nacionais e estrangeiros e também a seguradoras – número simplesmente omitido da “resposta” apresentada pelo governo.

Vale destacar ainda que, quando argumenta que a diminuição de recursos para o pagamento da dívida atingiria boa parte da população brasileira, o texto do Ministério da Fazenda cita a previdência privada como exemplo de perda para os beneficiários. Assim, primeiro se reconhece o que muitos pesquisadores críticos têm denunciado há muito tempo: que previdência privada não é garantia de aposentadoria como a previdência social, mas sim investimento – e de risco –, suscetível ao movimento do mercado financeiro. E, além disso, mostra como, no conjunto da obra, o governo admite cortar dinheiro da previdência pública (por meio da reforma que completará o serviço feito pela PEC) para não prejudicar quem se beneficia da previdência privada.

Em segundo lugar, chama atenção o fato de o texto que defende a PEC dissertar sobre as consequências do não-pagamento dos juros da dívida mas em momento algum se ater sobre as consequências – calculadas por especialistas – da redução de investimento em saúde, educação e previdência (esta no caso de ser aprovada a reforma). Por fim, a constatação da equipe econômica de que o governo gasta mais do que arrecada, considerando-se apenas as despesas primárias, não é acompanhada de qualquer análise sobre novas formas de arrecadação. Ao contrário: o principal argumento de defesa da PEC e da reforma da previdência por parte do ministro da fazenda, Henrique Meirelles, tem sido a ‘ameaça’ de que, se elas não forem aprovadas, precisará haver aumento de impostos. Nas “perguntas e respostas” que justificam a PEC, o governo se limita a afirmar que a estrutura tributária brasileira é “elevada” e “atípica”, aproximando-se mais das “economias avançadas” do que dos países da América Latina ou emergentes. Dito isso, a resposta que deveria ser sobre aumento da arrecadação muda de assunto e volta a falar de gasto, destacando que “a trajetória de crescimento da despesa apresenta um grave problema em si mesma”.

Para economistas críticos ao ajuste fiscal em curso, o que o governo chama de “atípico” é melhor caracterizado pelo adjetivo “regressivo”. “A estrutura tributária brasileira é extremamente perversa com os mais pobres e a classe média e benevolente com os mais ricos”, resume o documento ‘Austeridade e retrocesso’, elaborado por quatro entidades, entre elas a Sociedade Brasileira de Economia Política. Os números comprovam. Dados da Receita Federal mostram que, em 2014, 51,4% dos tributos corresponderam a impostos sobre bens e serviços – como ICMS, ISS e IPI – que atingem igualmente ricos e pobres. Além disso, tributos sobre renda e propriedade, que poderiam atingir aqueles que ocupam o topo da pirâmide social brasileira, corresponderam a 22,19% da arrecadação, enquanto os impostos sobre a folha de pagamentos – como PIS e Cofins – somaram 25,18%. O resultado dessa má distribuição dos tributos é, segundo o Ipea, que, no Brasil, os 10% mais pobres gastam 32% da renda com impostos, enquanto os 10% mais ricos comprometem apenas 21%.

A PEC (e o pacote de ajuste fiscal do qual ela faz parte) não prevê formas de aumentar a receita nem interrompe a perda de arrecadação que ocorre hoje por meio de isenção e renúncia fiscal – mecanismos que, sob o argumento de incentivar determinados segmentos empresariais, baixa ou elimina a cobrança de impostos e contribuições sociais. Matéria da Folha de S. Paulo de 16 de outubro deste ano calcula que os subsídios financeiros e as desonerações tributárias dadas pelo governo federal, que o jornal chama de “bolsa empresário”, vão significar a perda de R$ 224 bilhões aos cofres públicos só em 2017. E a PEC não muda esse cenário: tal como os juros da dívida, as renúncias fiscais já concedidas não entram no cálculo do teto. Sobre a concessão de novas isenções, o texto é vago: diz, no artigo 109, que projetos que signifiquem aumento de despesa ou renúncia de receita terão a tramitação suspensa por até 20 dias “a requerimento de um quinto dos membros da Casa” para “análise de sua compatibilidade com o Novo Regime Fiscal”.

A armadilha da PEC

Ilustração de Caco XavierEntre as exceções estabelecidas, a PEC do teto de gastos traz também um elemento que tem sido denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida como um verdadeiro “esquema financeiro”. Pelo texto aprovado até agora, não estão incluídas no teto “despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes”. À primeira vista, esse trecho não causa estranheza, já que se encaixam nessa definição empresas importantes como a Petrobras e o Grupo Eletrobras. Mas o foco dessa exceção da PEC, na avaliação de Maria Lucia Fatorelli, é outro. Segundo ela, mesmo num momento em que o governo sinaliza com um amplo programa de privatizações, novas empresas estatais não dependentes estão sendo criadas com o único objetivo de emitir debêntures, papéis financeiros que são vendidos para investidores que ela caracteriza como “privilegiados”, já que essa operação não é anunciada publicamente.

De acordo com Fatorelli, esses papéis são vendidos com 60% de desconto e garantia da União. Ainda segundo a economista, tratam-se essas operações como se elas estivessem negociando velhos títulos da dívida ativa da União ou dos estados – uma dívida formada por créditos podres que, em sua maioria, nunca serão pagos –, o que faz parecer um bom negócio para o Estado. “Só que é mentira”, diz, explicando que se trata de papéis novos e que a dívida ativa entra apenas como parâmetro da garantia que o Estado vai dar ao investidor que compra essas debêntures. “É o mesmo esquema que foi colocado na Grécia”, compara, lembrando que lá até as ilhas e a água foram colocadas para privatização. E agora, denuncia, esse esquema da dívida está sendo inscrito na Constituição Federal brasileira. “No fundo essa PEC é isso: teto para os gastos públicos, recursos sem limite para o sistema da dívida e para o esquema das debêntures das estatais não dependentes. É isso, esse é o resumo da ópera”, conclui.

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Nesta entrevista, Francisco Funcia, economista consultor da Comissão de Financiamento e Orçamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS), faz as contas das perdas de recursos que a aprovação da PEC 241 representará para a área da saúde. Projetando cálculos para frente e simulando a existência da PEC em anos anteriores, com números concretos, ele contesta o discurso do governo de que, com as mudanças inseridas de última hora no texto, não haverá queda de investimento na saúde. E desafia: “Não existe sequer um estudo que defenda a PEC 241 com dados estatísticos para mostrar que não tem perda”.
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