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Pé no freio da educação (pública)

Corte no orçamento, provável diminuição da arrecadação dos impostos que financiam a área e agravamento da crise das universidades federais são impactos diretos do ajuste fiscal na educação. A tesoura da crise, no entanto, não foi tão severa com os programas que transferem recursos públicos para instituições privadas de ensino
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 13/11/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Até 2016, o Brasil deveria universalizar a educação infantil na pré-escola para as crianças de quatro a cinco anos e ampliar o número de creches de forma a atender pelo menos 50% das que têm até três anos. No mesmo período, também deveria ser garantido que todos os jovens de 15 a 17 anos estivessem na escola. O prazo é um pouquinho mais amplo – 2017 – para que se criem planos de carreira para os profissionais da educação básica e superior de todos os sistemas de ensino do país. Esses são alguns dos compromissos estabelecidos na lei 13.005/2014, que institui o Plano Nacional de Educação (PNE). Mas essas e muitas outras medidas estão ameaçadas pelo pacote do ajuste fiscal.

Os dados mostram que, até agora, os cortes orçamentários têm sido coerentes com as concepções que o governo federal defendeu durante a tramitação do PNE no Congresso. Na época, contrariando as deliberações da 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae) e a maior parte das entidades e movimentos sociais da área, o governo conseguiu que o Plano reconhecesse as instituições privadas como executoras de uma parte dos compromissos assumidos. As metas que tratam da ampliação de vagas para educação profissional e superior, por exemplo, estabelecem que uma parte das matrículas (50% e 40% respectivamente) precisa se dar em instituições públicas, o que abre a porteira para que todo o resto seja oferecido por meio de programas como o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), Prouni (Programa Universidade para Todos) e Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), em que recursos públicos pagam pela oferta de educação privada. Não por acaso, a tesoura do ajuste não atingiu esses programas na mesma proporção que as instituições públicas. Vamos aos números.

Em 2015, o Ministério da Educação (MEC) sofreu o terceiro maior corte do orçamento federal – atrás apenas das pastas das Cidades e da Saúde –, perdendo um total de R$ 10,5 bilhões. Nas suas notas e textos oficiais, o Andes, Sindicato Nacional dos Docentes, acrescenta a essa conta uma perda de R$ 1,76 bilhão, resultado do contingenciamento que, durante os três primeiros meses deste ano, limitou a verba das instituições federais de ensino a 1/18 do orçamento. Já do lado dos programas que transferem recursos públicos para entidades privadas, a crise tem sido mais generosa. De acordo com o Portal da Transparência do governo federal, R$ 8,5 bilhões já foram gastos este ano só com o Fies, um programa de financiamento estudantil em que o governo empresta recursos a juros muito subsidiados para que os interessados façam curso superior em instituições de ensino privadas. No orçamento geral, o primeiro anúncio de corte veio em maio deste ano: a educação perderia R$ 9,5 bilhões. Dois meses depois, numa ampliação do ajuste, uma outra fatia de R$ 1 bilhão foi retirada da educação. Mas, exatamente no mesmo momento, o governo emitiu uma Medida Provisória – depois aprovada no Congresso – que liberava um “crédito extraordinário” de R$ 9,8 bilhões no orçamento geral. Desses, mais da metade (R$ 5,1 bilhões) foram para o MEC pagar despesas do Fies.

E se alguém acha que esse ciclo se encerra junto com o endurecimento do ajuste fiscal está enganado. Apesar de as novas regras de participação no Fies, instituídas para o segundo semestre deste ano, terem sido consideradas restritivas, causando uma gritaria dos empresários nas páginas dos jornais, o futuro imediato do programa é bastante promissor: na Proposta de Lei Orçamentária (PLOA) que o Executivo submeteu ao Congresso – e ainda não foi aprovada – estão previstos para o Fies, em 2016, R$ 18,2 bilhões, o que corresponde a 18% de todo o orçamento da educação, um montante acima dos 12% previstos para a complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), e muito maior do que os 5% previstos para manter o funcionamento das instituições de ensino federais. “Na realidade, o corte que o Ministério da Educação fez foi necessário não para o esforço do ajuste fiscal, mas em virtude do aumento desproporcional de gastos com o setor privado mercantil”, diz Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador da área da educação, destacando o crescimento incomparável que esses programas tiveram no último governo: de 2010 para cá, o orçamento do Fies, por exemplo, aumentou em mais de dez vezes.

A opção por preservar o setor privado da educação no ajuste fiscal fica clara principalmente na decisão do governo de excluir do pacote a medida que traria para o cofre do Estado R$ 8 bilhões das contribuições que hoje finan-ciam instituições como Senai, Senac e Sesc, que compõem o chamado Sistema S, ligado às Confederações Nacionais da Indústria (CNI), Comércio (CNC), Agricultura (CNA) e outras. A proposta – a única do pacote anunciado que não foi enviada ao Congresso Nacional – era redirecionar a desoneração de alguns impostos para essas contribuições, de modo que o empresariado não teria aumento de gastos e o Estado deixaria de perder arrecadação. Com a grita geral dos empresários organizados, o governo recuou. A questão é que essas instituições de ensino são privadas, mas financiadas com recursos chamados de parafiscais, que são considerados públicos porque, como resultam de contribuições compulsórias das empresas, são repassados ao consumidor como aumento de custo no preço final dos produtos. Apesar disso, boa parte dos cursos (que são de educação profissional) oferecidos por essas instituições é paga e elas ainda são beneficiárias do maior volume de recursos da bolsa-formação, a modalidade do Pronatec que mais recebe investimentos. Só em 2014, segundo o Portal da Transparência, mais de R$ 2,5 bilhões foram repassados dos cofres públicos ao Sistema S. “Nós podemos constatar que a maior parte da conta hoje está sendo jogada nas costas das instituições públicas”, conclui Leher.

Esse poder de pressão do empresariado – tanto do Sistema S quanto das instituições privadas de ensino superior – faz com que Luiz Araújo, professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em financiamento não acredite que a educação profissional tenha cortes significativos em função do ajuste fiscal. Isso porque a política em curso para essa modalidade de ensino é o Pronatec, um programa que envolve muitas iniciativas, sendo a principal delas a compra de vagas pelo governo em instituições privadas. Para 2016,  o orçamento que o Executivo apresentou ao Congresso prevê R$ 2,1 bilhões para o Programa.

Para o professor, a naturalização e intensificação dessa saída privada para as demandas de educação da população pode ser o pior legado do ajuste fiscal. “Eu diria que a coisa mais estrutural que pode afetar as políticas sociais da educação é se criar um ambiente favorável a repassar mais serviços ainda para o privado. Como é que você reduz os gastos? Retirando aquele serviço da competência do Estado. É uma medida maldosa e absurda em termos de direito, mas tem efetividade. Isso já estava começando a acontecer”, diz Araújo, lembrando que essa lógica começa a se consolidar também nos estados e municípios, com casos como o de Goiás, que está passando a gestão das escolas para Organizações Sociais (OS), e o Distrito Federal, que, segundo o professor, está entregando as novas creches construídas para serem administradas por Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público). Mostrando como essa é uma porta aberta para, inclusive, se descumprir o que está previsto no Plano Nacional de Educação, ele explica: “Você expande a rede sem expandir o gasto com pessoal. Tem gasto, mas a Oscip é uma rede privada, que não tem que cumprir o piso [salarial], não tem que fazer plano de carreira. Então você precariza as relações de trabalho, passa a gestão para o setor privado. Esse fenômeno que já estava crescendo é favorecido como alternativa num ambiente de crise”.

Cortes invisíveis

Mas vejamos o tamanho do rombo que o ajuste deve provocar na educação pública. Tal como na saúde, os recursos que financiam as ações de educação – principalmente a educação básica, de responsabilidade maior dos estados e municípios – vêm em grande parte da arrecadação de tributos que, em períodos de recessão, tende a cair. “A principal fonte de manutenção da educação básica é o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços]. E uma recessão afeta diretamente essa receita. Então, o efeito financeiro maior na educação básica não é o corte no MEC. Logicamente que se você anuncia que no ano que vem o governo federal não vai financiar mais creches novas, há o fato concreto de ter menos investimento, menos capital para construir. Agora, o efeito da redução do ICMS é uma bola de neve porque 60% do que se capta de recursos para formar o bolo dos estados e municípios vêm desse imposto”, alerta Luiz Araújo.

Ele explica que a redução do orçamento do MEC, apesar de ter um impacto menor do que o conjunto da obra do ajuste, também traz consequências diretas sobre os serviços de educação que atendem à população lá na ponta, em geral nos estados e municípios. É verdade que os recursos que a União precisa transferir para o Fundeb legalmente não podem ser contingenciados. Mas o montante que a União deposita no Fundo representa 10% do total da participação dos estados e municípios. “Se  projeta uma arrecadação menor, e esse fundo diminui, cai proporcionalmente a complementação da União”, explica, alertando que isso afeta o “efeito redistributivo da União nos estados mais pobres”. Além disso, o corte do orçamento federal se traduz também na diminuição ou mesmo interrupção de programas realizados por estados e municípios com recursos oriundos de repasses voluntários da União. Um exemplo, de acordo com Luiz Araújo, é o Proinfância (Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escola Pública de Educação Infantil), que não deve abrir novos contratos em 2016, mantendo apenas os que estão em curso. “O ajuste só faz mal. Só que as pessoas não medem o tamanho do efeito, porque nem tudo chama muito atenção”, lamenta.

O aumento do desemprego, que já está em curso (ver pág. 14), e uma possível flexibilização dos contratos de trabalho – que tramita como proposta no Congresso Nacional –, além de afetar diretamente os trabalhadores, também têm consequências sobre a educação. Isso porque o salário-educação, uma contribuição voltada exclusivamente para o financiamento da educação básica pública, incide sobre o total das remunerações pagas pelas empresas. Assim, quando cai o emprego formal, cai também a arrecadação.  “Em várias pontas da política mais macro a educação básica é vitimada”, explica o professor da UnB.

A única boa notícia – pelo menos por enquanto – é que, diferente da saúde e outras políticas sociais, o orçamento da educação não é abocanhado pela Desvinculação de Receitas da União (DRU) – uma estratégia de desvio de recursos para pagamento da dívida pública (ver pág. 7) –, que, também como medida do ajuste, deve ser prorrogada até 2023 e ter seu limite ampliado de 20% para 30% do orçamento. Isso porque, como conquista dos movimentos organizados da área, desde 2009, os recursos da educação não são atingidos pela DRU.

Crise nas universidades

Com a educação superior, a situação não é diferente. O ano letivo de 2015 começou atrasado na maior universidade federal do país, a UFRJ, por conta de uma crise financeira que se avolumava desde o contingenciamento de cerca de R$ 70 milhões que todas as instituições federais de ensino superior tiveram já em 2014. “A rigor, nós já tivemos uma redução real do orçamento antes mesmo do anúncio do ajuste”, diz o reitor. O estopim da crise este ano foi uma paralisação dos trabalhadores terceirizados, que estavam há meses sem receber o salário. “Esse é um cenário que pode se repetir no final deste ano, talvez em maiores proporções”, alerta Roberto Leher. Não por acaso, este ano as universidades federais realizaram uma das mais longas e abrangentes greves da sua história, não só reivindicando a correção dos salários mas também denunciando o abandono das instituições públicas de ensino.

O ano que não começou bem para as universidades federais pode acabar ainda pior. O orçamento de 2015 sofreu um novo corte que, segundo Leher, significa a perda de outros R$ 70 milhões. A discrepância fica mais clara quando recorremos aos cálculos do próprio governo federal. Segundo Leher, com o contexto de crise, o MEC chamou todas as federais para uma reunião de apresentação de contas, reconheceu que as universidades precisariam de R$ 1,6 bilhão para fechar o ano de 2015, mas acenou com a possibilidade de disponibilizar apenas R$ 470 milhões. “Diante desse quadro, muitas universidades federais não vão conseguir fechar o ano sem ultrapassar três meses de dívida com os fornecedores”, diz, alertando que isso pode significar inclusive uma nova interrupção de atividades essenciais, como limpeza e segurança. “O MEC está ciente disso. Mas é necessário que ele apresente uma alternativa”, completa.

O ajuste fiscal vem agravar também a situação das universidades e Institutos Federais de Educação Profissional e Tecnológica (IFs) que foram criados ou expandidos por meio do Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), a partir de 2007. Ainda em maio deste ano, quando aconteceu o 3º Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, entidades ligadas ao movimento estudantil organizaram um protesto durante a fala do então ministro Renato Janine Ribeiro, criticando os cortes no orçamento da educação e o impacto direto que eles tinham para os estudantes. Na ocasião, representantes de alunos de graduação e cursos técnicos de ensino médio denunciaram que, tanto nas universidades quanto nos IFs, a expansão quantitativa não estava sendo acompanhada pela estrutura necessária para garantir a qualidade. “O ajuste atinge em cheio a consolidação [do Reuni]”, diz Leher, explicando que 2012 foi o último ano em que o programa teve previsão orçamentária, ainda que insuficiente. “Existe risco real de retrocessos em conquistas importantes da sociedade brasileira, como a expansão de matrículas”, completa.

Mas nem só de orçamento se alimenta a crise da educação em tempos de ajuste. Uma das medidas do pacote anunciado pela equipe econômica do governo, que aparentemente diz respeito só à previdência, atinge em cheio as instituições públicas federais, inclusive as universidades. Trata-se do fim do abono-permanência, um dispositivo que permite que os servidores públicos federais que já têm idade para se aposentar, ao optarem por continuar na ativa, não descontem mais do salário os 11% de contribuição previdenciária. A expectativa é que, com o fim do abono – que incentivava o atraso da aposentadoria – um grande contingente de servidores deixem as instituições públicas. Para completar, outra medida do mesmo pacote suspende a realização de concursos públicos em 2016. “Somente na UFRJ, nós temos aproximadamente 2 mil servidores que estão recebendo abono-permanência. Entre estes, aproximadamente 700 são professores. Perdem-se os mais qualificados, com maior experiência. Com o governo extinguindo esse abono, certamente muitos servidores vão perceber que a sua dedicação à instituição não está sendo apoiada e retribuída pela política governamental”, lamenta Leher, concluindo: “Isso vai significar uma descontinuidade geracional na universidade semelhante à que aconteceu no período Fernando Henrique Cardoso por conta da Reforma da Previdência”.

Alternativas?

Uma reforma tributária que invertesse o caráter regressivo dos impostos – já que hoje, proporcionalmente, os pobres pagam mais do que os ricos – é apontada por todos os críticos do ajuste fiscal ouvidos pela Poli como uma das medidas mais importantes de serem propostas. E uma reforma como essa poderia gerar mudanças que trouxessem impactos diretos sobre a estrutura do financiamento da educação. “É importante que haja um redimensionamento dos impostos e um subdimensionamento das contri-buições”, defende Leher. Isso porque, como explica Luiz Araújo, as contribuições têm destinação específica, diferente dos impostos que, pela vinculação constitucional, financiam as políticas sociais e precisam ser repartidos com estados e municípios. Ele diferencia as contribuições que foram pensadas na época da própria Constituição Federal – algumas delas integrando o orçamento da seguridade social – daquelas que foram sendo criadas depois como parte da estratégia da União para “fugir das amarras”.

Outro reforço para o orçamento das políticas de educação, na avaliação de Leher, precisa vir da regulamentação dos recursos do pré-sal – de acordo com projeto aprovado no Congresso, 50% do capital do Fundo Social do Pré-Sal deve ser destinado para educação e saúde. “Que haja de fato o repasse desses recursos decorrentes das receitas do pré-sal para a rede pública, com critérios que sejam republicanos, que independam de que dirigente está à frente do Estado”, defende. Mas, para o reitor da UFRJ, a medida mais importante para a superação da crise de financiamento da educação que se agrava com o ajuste fiscal é a garantia de que o dinheiro do Estado seja usado exclusivamente para o ensino público. “Essa é a questão mais estrutural. [É preciso reverter] essa racionalidade de que não importa se a instituição é pública ou privada, de que a educação é um serviço que pode ser ofertado no mercado. Assim, um aumento da verba do Ministério da Educação não vai ser revertido em melhorias para as instituições públicas”, conclui.

Procurado pela Poli, o MEC não teve disponibilidade para conceder entrevista.

Autonomia?

A Câmara dos Deputados acabou de aprovar o texto-base de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 395-B) que permite às universidades públicas cobrarem mensalidade por cursos de extensão, pós-graduação lato sensu e mestrado profissional. Com isso, quebra-se o princípio da gratuidade do ensino nas instituições públicas, previsto no artigo 206 da Constituição Federal. A “sustentabilidade” e a possibilidade de “financiamento diretos” desses cursos são mencionados no parecer do relator, Cleber Verde (PRB-MA) como vantagens da autorização formal para cobrança de mensalidade. Em nota pública, o reitor da UFRJ, Roberto Leher, conclamou os parlamentares a reverem suas posições. “A aprovação da PEC enterra o princípio republicano da igualdade de todos na rede pública, visto que, com sua aprovação, terão prioridade no acesso à educação pública os clientes que podem pagar pelo que deveria ser um direito universal. A PEC transformará a educação em um serviço, deixando de ser um dever do Estado”, diz a nota. O texto aprovado precisa ser votado ainda em segundo turno na Câmara para depois ser encaminhado ao Senado.