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Ponto e contraponto na disputa pelo SUS

O debate sobre a entrada do capital estrangeiro na assistência à  saúde desvela mais uma camada da real correlação de forças no país hoje.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 27/03/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Debatedores discutem a entrada do capital estrangeiro na saúde Foto: Maíra Mathias (EPSJV/Fiocruz)

Capital estrangeiro na saúde. Essa não é a primeira nem a última vez que você vai ler sobre esse assunto por aqui. Sintoma mais visível do avanço da preponderância da agenda econômica dos empresários sobre os rumos das políticas de saúde, a entrada de investimentos estrangeiros foi o tema da última mesa do seminário ‘A Gestão da Saúde no Brasil’. Quais são os impactos sobre o SUS? Ainda haverá SUS? Essas e outras perguntas movimentaram o debate, que reuniu Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lenir Santos, do Instituto de Direto Sanitário Aplicado (Idisa), Francisco Balestrin, presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), e Walter Cintra Ferreira Júnior, diretor-executivo do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC/USP). O evento foi promovido entre os dias 11 e 12 de março pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pelo Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (GVsaúde/FGV).

“A pergunta é: nós não queremos SUS?”

Com o objetivo de trazer uma “abordagem realista” sobre a entrada do capital estrangeiro nos serviços de saúde, Ligia Bahia ressaltou que a aprovação da medida foi um exemplo bem acabado de uma negociação fundamentalmente econômica que chega à saúde “já pronta”.  “Nenhuma dessas negociações passa pela saúde. O Ministério da Saúde é informado e aceita. É muito importante compreender isso, não se trata de um golpe do ministro. É algo do conhecimento das autoridades da saúde que passa inicialmente por fora dos fóruns da saúde. Não tem nenhuma aprovação do Conselho Nacional de Saúde, nem da [Comissão de Gestores] Tripartite nem da Bipartite”, disse.

Ligia não tem dúvidas que essa medida atendeu à agenda dos empresários da saúde no Brasil que, hoje, inclui ainda pontos como a renúncia fiscal – seja como dedução, seja como isenção – e a busca por linhas de crédito e empréstimos subsidiados do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “É claro, as atividades capitalistas ‘naturalmente’ requerem apoio estatal”, ironizou.

Continuando com a abordagem realista, a professora da UFRJ citou dados sobre a rede conveniada ao SUS. Segundo ela, hoje 46% dos hospitais brasileiros – inclusive os de maior porte – atendem o Sistema Único, disponibilizando para isso 70% de seus leitos. A grande questão aqui é o tipo de leito disponível. “Tem um gradiente muito claro de diminuição de leitos de maior complexidade ou custo. O que tem acontecido é que os leitos mais caros estão mais disponíveis para os demandantes fora do SUS”, observou.

Segundo ela, esse cenário traz elementos fundamentais para a compreensão de outra realidade: “O capital estrangeiro já está no Brasil. Inclusive no setor de serviços”. Ligia citou um estudo feito por ela em 2011 que demonstrava que a rede de laboratórios DASA, maior da América Latina, recebeu capital estrangeiro pelo menos desde 2008. Mas talvez mesmo antes disso, na década de 1990, possa se considerar que o DASA tinha recursos internacionais já que, de acordo com Ligia, é nesse período que o Fundo Pátria, especializado em captar dinheiro de milionários mundo afora para aplicar em investimentos, injetou capital no DASA. Outro exemplo da atuação desse tipo de fundo é o caso do BTG Pactual que investiu e passou a integrar a diretoria do Grupo D'Or, a maior rede hospitalar do Brasil. “Essas operações antecedem a compra da Amil pela United Health Care, em 2012. É importante fazer uma espécie de linha do tempo dessa trajetória da entrada do capital estrangeiro. Onde ele estava? Na rede própria de planos de saúde, grupos hospitalares e unidades de diagnóstico e terapia. O fenômeno é muito mais extenso”, concluiu.

Mas será que o capital estrangeiro vai entrar no país apenas em hospitais, na medicina diagnóstica e serviços correlatos? A resposta de Ligia Bahia é não. “Com a lei, nada impede que as [Parcerias Público-Privadas] PPPs sejam integralmente de investimento estrangeiro. Essas parcerias podem ser um investimento atrativo, assim como as [Organizações Sociais da Saúde] OSs e, ainda, os hospitais filantrópicos”, pontuou, acrescentando: “Ainda não decidimos se um hospital é filantrópico ou se ele é lucrativo. Quando interessa é filantrópico para ter dedução fiscal, quando não interessa é lucrativo para ter investimento. Como um investidor internacional pode investir em um hospital filantrópico se ele não pode ter lucro?”.

Na opinião de Ligia, a 13.097, sancionada em 19 de janeiro deste ano pela presidente Dilma Rousseff, abre a assistência para o capital estrangeiro sem salvaguardar o SUS. “Não há menção a necessidades de saúde, vazios sanitários, sequer do ponto de vista econômico há menção aos oligopólios, o que seria o mínimo. Foi uma tentativa improvisada de fornecer um salvo conduto para as negociações entre empresários e fundos internacionais com intermediação de autoridades do Executivo”.  Embora a tramitação e sanção da lei sejam bastante questionáveis, na opinião de Lígia o que está em jogo ultrapassa o aspecto jurídico-legal: “A pergunta é: nós não queremos SUS? Nós viveremos sem SUS? O pacto societário firmado na Constituição inclui o SUS e essa lei abala profundamente esses alicerces”.

“É uma violação de soberania”

Lenir Santos recuperou o debate da Constituinte a respeito da vedação da entrada do capital estrangeiro na saúde. A advogada verificou que a decisão se baseou no marco da natureza pública das ações e serviços de saúde. “A Constituição, no artigo 197, diz isso sobre os públicos e os privados. O termo ‘natureza’ depois foi trocado para ‘relevância pública’, quer dizer, os constituintes queriam que a saúde no Brasil tivesse natureza pública”, afirmou. Segundo ela, esse também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que ao julgar duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) sobre a educação, trouxe a saúde à baila e decidiu que “saúde e educação, independentemente do titular da sua execução, seja o poder público seja o setor privado, têm natureza pública”, relatou.

Segundo ela, é somente porque a saúde tem natureza pública que a Constituição precisou deixar claro que é “livre à iniciativa privada a atuação em ações e serviços de saúde”. “Fazer salsicha não pode ser a mesma coisa que prestar atenção à saúde. Daí, você entende a discussão de ter tido a vedação [ao investimento do capital estrangeiro] com exceções. Quem era contra argumentava que o Brasil estava sendo xenófobo, mas ganhou quem defendeu que os serviços de saúde são de grande interesse para a vida humana e não poderiam ficar ao sabor do mercado. Se fechou, mas para não ser xenófobo, permitiu que tivesse exceções”.

Lenir lembrou que o primeiro abalo nesse ordenamento aconteceu em 1998, quando a lei 9.656 abriu o capital estrangeiro para planos e seguros privados de saúde. “O capital estrangeiro veio com essa permissão, mas acabou comprando hospitais também, de forma ilegal”. A partir da lei 13.097 ficou tudo liberado. “A grande questão é que essa aprovação viola a autoridade do país em organizar seu sistema de saúde. Nós ouvimos do Ministério da Saúde: ‘já que existe capital estrangeiro de maneira camuflada e ilegal, nós vamos abrir para regular’. Isso é afrontoso. Então alguém vem, pratica ato ilegal, e o Executivo concorda com a ilegalidade, ou seja, é pautado pelo capital estrangeiro contra quem planejou a necessidade de se criar exceções? É uma violação de soberania”, criticou a advogada.

“Não existe capital nacional para hospital privado porque não existe estímulo”

Fugindo das polêmicas, Francisco Balestrin abriu sua fala dizendo que concordava com tudo que Ligia Bahia havia falado. Contudo, o presidente da Anahp deixou escapar um tom provocador quando afirmou que só trataria daquilo que entendia. “Só vou falar o que é factual, o que eu vi e pode ser comprovado. Não vou fazer especulação”. Balestrin também esclareceu que não representaria uma visão do setor privado, mas apenas dos hospitais. “Quem espera ver de mim uma defesa forte e pesada do capital estrangeiro vai se frustrar. Na verdade, o capital estrangeiro é um condicionante que surgiu. Acho que temos muito mais problemas do que ficar discutindo as vantagens ou desvantagens do capital estrangeiro, que hoje é um dado. Pode ser até uma frustração daquilo que se imagina. Eu não vejo tanto entusiasmo com a vinda do capital estrangeiro. Até porque não existe tanta atividade econômica como supomos no setor de saúde. Principalmente no nosso país”, afirmou.

Para Balestrin, os problemas do sistema de saúde repousam no baixo investimento estatal. Ele citou dados conhecidos: no ano passado houve um investimento na casa dos R$ 450 bilhões, o equivalente a 9,2% do PIB brasileiro, sendo 55% de origem privada. Os 45% restantes, do setor público, ficam muito abaixo dos patamares encontrados em países “de Primeiro Mundo”, que participam, em média, com 70%. Já o setor privado é dominado pelo desembolso direto das pessoas, que representam R$130 bilhões do montante total de R$240 bi. “Os cidadãos tiram dinheiro do bolso para gastar em saúde, pagando consultas e exames que no SUS têm acesso difícil ou prazos longos. Também usam as chamadas clínicas populares, um fenômeno que precisa ser analisado porque estão fazendo o papel do poder público. Cobrando consulta a R$ 80, Raios-X a R$10, exame laboratorial a R$ 6”, relatou Balestrin. Avançando nas críticas, o presidente na Anahp afirmou que além de subfinanciar, o setor público “tem um modelo fragmentado, não assume a gestão e nem a discussão”, fazendo referência ao modelo assistencial.

Retomando o debate da Constituinte trazido por Lenir Santos, Balestrin lembrou que se havia dois grupos que se opunham, os sanitaristas e os empresários da saúde, na época os interesses não eram tão conflitantes assim. “O que houve nesse momento? Uma visão tática do capital empresarial nacional juntamente com a percepção de que existia algo interessante do ponto de vista do que os setores mais sanitários propunham e houve um acordo tácito. Vamos promover uma vedação ao capital estrangeiro na assistência à saúde, que envolvia, sim, operadoras e planos, e os prestadores, tais como hospitais, laboratórios, serviços de diagnóstico; todos. E o capital ficou proibido por conta dessa aliança tática. Todos os investimentos foram vendidos para empresários nacionais, sem exceção”, contou.

Contudo, quando o capital estrangeiro recebeu sinal verde para comprar operadoras, em 1998, a estratégia dessas empresas estrangeiras foi apostar na verticalização criando uma “assimetria de mercado”. “Planos podem comprar hospitais, montar redes hospitalares, consequentemente ter as vantagens: melhores processos e estruturação. Por outro lado, os hospitais brasileiros tinham que continuar da forma anterior, ou seja, stand alone: sozinhos no mercado sem poder se unir”, disse. Para Balestrin, a consequência disso foi o enfraquecimento da rede hospitalar brasileira privada não ligada às operadoras de planos de saúde.  O presidente da Anahp concluiu que a lei 13.097 “equalizou” os direitos de captação de recursos.

Dentre as vantagens da medida descritas por Balestrin, duas se destacam. O presidente da Anahp acredita que o capital estrangeiro traz compliance, termo em inglês usado para denotar algo como “ética empresarial”.  Segundo ele, empresas em Bolsa de Valores precisam provar que tem “governança corporativa” e “compliance”. “Se conseguirmos trazer isso para cá, vai melhorar esse ambiente onde temos hospitais desorganizados, onde a administração é mais fraca do que os médicos e os serviços. A outra vantagem é que eventualmente passaria a ter investimentos nacionais feitos nos hospitais brasileiros. Não existe capital nacional para hospital privado porque não existe estímulo”, taxou. Exemplo disso, de acordo com ele, foi a Medida Provisória 582/12, que desonerou a folha de pagamento de 24 setores da economia, incluindo pedras ornamentais, mas não atendeu os hospitais. Prosseguindo na lista, para Balestrin também o BNDES não cria estímulos, porque exige que as instituições que tomam empréstimos subsidiados apresentem certificado negativo de débitos, ou seja, estejam em dia com impostos, pagamentos, etc. “Nenhuma delas está. E ninguém consegue levantar recurso. Quem levanta recurso são os campeões nacionais. A Friboi, o Eike [Batista]. Não é à toa que uma empresa como a Friboi doou R$ 380 milhões para campanhas políticas”, alfinetou.

Nem contra, nem a favor

Walter Cintra Ferreira Júnior, do Hospital das Clínicas, não se posicionou nem contra nem a favor da entrada do capital estrangeiro na assistência à saúde. Contudo, engrossou o coro daqueles que consideram grave a forma como a Medida Provisória no 656 incorporou vários temas, se transformando em um “balaio de gato” capaz de mudar a Constituição. “Isto leva a uma fragilização das nossas instituições e, portanto, bota a democracia em risco. Não é eleger um governante ruim [que põe a democracia em risco], mas ficar mudando as regras de maneira aleatória, capciosa, casuística. Independente de concordar ou discordar, meu primeiro incômodo é como algo que está na Carta Magna, fruto de um processo de redemocratização, muda em uma penada, num jogo de cena”.

Walter continuou observando que um setor público mais forte, torna o setor privado mais fraco e vice-versa. Segundo ele, fragilizar o SUS pode ser entendido como um estímulo para o mercado. “Porque temos planos de saúde privado? No meu caso, eu não pago por convicção, mas porque não me sinto seguro o suficiente para ficar na dependência do SUS. O capital privado por si só não traz risco ou benefício mas a gente não pode ser ingênuo de achar que não há consequências. Para mim, [os setores] disputam mercado. Se tenho um sistema público que atende minhas necessidades, para que teria plano de saúde?”, questionou.

De acordo com ele, vivemos um momento de clara consolidação do mercado de saúde suplementar. E os números comprovam: na cidade de São Paulo, 60% das pessoas têm planos de saúde. O índice no estado é de 43% e, no Brasil todo, de 25%. “Quando foi aprovado o SUS, ouvi mais de uma pessoa comentar que houve um descompasso que não reflete a verdadeira relação de forças na sociedade. Um sistema muito mais solidário, com forte componente estatal, claramente um sistema de Bem-Estar Social, quando na sociedade a relação é mais para a iniciativa privada, a concorrência. Vivemos numa sociedade onde o movimento sindical reivindica planos de saúde dos seus empregadores. O capital estrangeiro entra nesse contexto; ele não é um risco sozinho, mas é dentro desse contexto”, analisou.

Ponto e contraponto

Falando em correlação de forças, o debate trouxe um exemplo interessante sobre quem dá as cartas na disputa ideológica hoje. Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), fez uma fala dura. “Estamos vivendo um movimento de impeachment do SUS. Junto com a entrada do capital estrangeiro, temos que discutir a recente constitucionalização do subfinanciamento do SUS, com subtração de recursos. E agora a PEC 451 que propõe a obrigatoriedade de empregadores fornecerem planos de saúde. Acho que temos que ter uma agenda mais ampliada, discutir se esse padrão de privatização com essa extensão e com essa velocidade será compatível com a sustentabilidade e a perenidade do SUS. Há gente estudando Atenção Básica, Mais Médicos, etc., mas tem que haver uma discussão do possível início do fim do SUS. O desmonte será irreversível?”, questionou.  

Francisco Balestrin disse que acompanhava os trabalhos de Mario Scheffer, que traziam um “contraponto interessante”.  Embora não estivesse de acordo com o diagnóstico do professor da USP, Balestrin afirmou que, em 2014, a Anahp tentou “mudar essa escrita de impeachment do SUS” dando “uma contribuição cidadã”. Trata-se do chamado ‘Livro Branco’, que traz uma série de recomendações que vão desde a escala do atendimento ao indivíduo até o nível mais geral da condução política. A publicação, segundo Balestrin, foi distribuída a todos os presidenciáveis, a alguns candidatos a governador, dentre outros. Ainda de acordo com ele, a Anahp recebeu apenas um retorno, do falecido Eduardo Campos, o que, em sua opinião, demonstra que a saúde não é prioridade embora apareça em todas as pesquisas como uma das principais preocupações dos brasileiros.

“Balestrin chama o Mario de contraponto. O Mario não é o ponto, reparem. O ponto é o Balestrin. Gostaria que fosse o contrário: eu gostaria de ser o ponto e o Balestrin o contraponto. Só que não é, entenderam? Tem uma correlação de forças real na qual eles [a Anahp] conseguiram entregar seu documento para os candidatos a presidente e a Abrasco não conseguiu. Tentamos, batalhamos, pedimos pistolão, telefonamos para aquele amigo ministro. Não conseguimos entregar para nenhum, nem a Luciana Genro quis nos receber. Essa também é uma realidade a ser analisada”, provocou Ligia Bahia.  

Ressaltando a importância do real, a professora da UFRJ defendeu que o Movimento da Reforma Sanitária avance na discussão de uma agenda que contemple fatos consumados, como a renúncia fiscal dada ao setor privado. “O tempo todo estamos produzindo normas de renúncia fiscal. Eles querem mais. Agora, se tem renúncia fiscal é público, não é? Uma coisa que não paga imposto, que não gera lucro, entra para a ordem pública. Podemos pensar assim? Essa é uma agenda. Quem tiver renúncia fiscal tem que integrar a rede do SUS, tem que integrar a central de internações, marcações de consultas, etc. Temos que conversar isso olho no olho, cara a cara, senão vamos ficar o tempo todo atuando normativamente como se a realidade fosse assim. Ela não é”.