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Banco Mundial e suas recomendações (in)justas

Sob encomenda do governo federal, o documento é uma reforço para aprovação das contrarreformas iniciadas no Brasil
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 18/12/2017 13h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Adaptação da capa do relatório do Banco Mundial

Lançado no fim de novembro de 2017 sob o título ‘Um Ajuste Justo - Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil’, um relatório elaborado pelos economistas do Grupo Banco Mundial analisa oito áreas do gasto público no Brasil, e afirma que ‘o governo brasileiro gasta mais que pode e, além disso, gasta mal’. O trabalho identifica ainda possíveis reformas que poderiam tornar os gastos públicos mais eficazes, eficientes e equitativos. “Em termos gerais, os diagnósticos e as prescrições não surpreendem. A tese de que o Estado brasileiro gasta mais do que pode, e mal, não é de hoje. O que surpreende é o grau de articulação entre os diferentes ajustes setoriais — em saúde, educação, funcionalismo público, e sua subordinação a um ajuste fiscal muito duro e prolongado”, afirma o historiador João Márcio Pereira, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor de pesquisas e publicações com foco nas estratégias do Banco Mundial, João afirma que o real objetivo do relatório é definir qual é a natureza, a profundidade e a duração do ajuste econômico, detalhando o quê e onde cortar em matéria de orçamento público. “Trata-se de uma peça a ser utilizada pelo governo federal e por entidades empresariais e financeiras da sociedade civil na disputa em torno de qual ajuste deve ser feito e sobre quais setores e grupos sociais incidirá”, resume.
 
O relatório foi encomendado no segundo governo de Dilma Rousseff, pelo então ministro da Fazenda Joaquim Levy, e segue uma tendência mundial. “É normal autoridades governamentais fazerem esse tipo de solicitação, com o fim de respaldar suas próprias opções políticas e, assim, vencer a oposição interna a medidas impopulares. Por outro lado, o Banco costuma dizer que trabalha apenas quando demandado pelos Estados clientes, o que é absolutamente falso”, explica João Márcio. Para ele, o tema é interessante e remete ao tipo de relação existente entre o Banco e os Estados clientes. “Parte considerável da esquerda vê essa relação como mera imposição unilateral, como se os Estados fossem ‘vítimas’ do Banco. Porém, a realidade é bem mais complexa do que isso. Na verdade, a atuação do Banco combina permanentemente coerção e persuasão, operando em escala internacional e nacional”, argumenta.

“Sem um intenso trabalho de persuasão, combinado com desinformação sistemática, manipulação de evidências e desqualificação de propostas contrárias, esse tipo de agenda não seria implantada por governos eleitos democraticamente"
João Marcio Pereira

A cerimônia oficial de lançamento do relatório ocorreu em 21 de novembro na sede do Ministério da Fazenda, onde o representante do Banco Mundial, Martin Raiser, foi recepcionado pelos atuais ministros da Fazenda e do Planejamento do governo Temer, Henrique Meirelles e Dyogo de Oliveira. Essa relação amistosa fica evidente até mesmo na lista de agradecimentos do documento, que contém uma extensa fila de nomes e de pessoas envolvidas com as altas esferas do governo. “Esse documento é um caso emblemático da capacidade que o Banco tem de produzir evidências. O Banco teve acesso a dados do Tesouro brasileiro, do Ministério da Fazenda, do Ministério do Planejamento e de outros órgãos públicos a que ninguém jamais teria acesso”, afirma Marcela Pronko, pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e organizadora, junto com João Márcio, do livro 'A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde'. Para ela, o relatório indica que o Brasil deve se adaptar ao seu lugar subordinado na divisão internacional do trabalho e, para isso, precisa abrir mercado, ganhar competitividade e fazer o chamado ajuste fiscal. “Esse documento vem em um momento crucial para o governo Temer, e indica também que há uma permeabilidade de interesses entre as colocações que o Banco faz e a necessidade de sustentação política do próprio governo. Esse relatório se transforma, assim, em mais uma peça do convencimento que o governo está tentando desenvolver para o conjunto da população”, alega Marcela.

Segundo João Márcio, para entender as recomendações desse relatório é necessário levar em conta três aspectos. Primeiro, que a relação do Banco com os países clientes não se limita ao governo e às agências estatais, mas envolve também organizações da sociedade civil. Segundo, que os Estados clientes não são iguais em capacidade de negociação. Países pobres altamente endividados, cujos governos disponham de pouca margem de manobra, terão uma relação com o Banco, e com o Fundo Monetário Internacional (FMI), diferente de países como China, Brasil ou Rússia. E terceiro: o Banco não é um mero emprestador de recursos, mas sim um ator político, intelectual e financeiro, que combina a concessão de empréstimos com assistência técnica para definição e desenho de políticas públicas, farta produção intelectual e liderança política em matéria de políticas globais de desenvolvimento.  “A atuação do Banco Mundial não se dá no vazio, mas sim em meio a uma densa rede de relações que envolvem agentes nacionais e internacionais públicos, privados, não governamentais, filantrópicos e empresariais. Tais agentes, com meios e níveis de influência distintos, apoiam, propõem, adaptam, negociam e veiculam as ideias e prescrições do Banco Mundial”, explica.

Para o professor, existe uma sintonia entre a pauta de contrarreformas do governo Temer e a agenda política do Banco Mundial. Isso evidencia que as prescrições do relatório não são exclusivas do Banco. Há setores políticos e econômicos do país interessados em demolir direitos sociais, econômicos e trabalhistas arduamente conquistados nas últimas décadas. “Sem um intenso trabalho de persuasão, combinado com desinformação sistemática, manipulação de evidências e desqualificação de propostas contrárias, esse tipo de agenda não seria implantada por governos eleitos democraticamente. Por outro lado, temos visto cotidianamente que não devemos subestimar jamais a vontade e a capacidade da classe dominante brasileira, e seus representantes políticos, de pilharem o Estado e a maioria da população, produzindo maldades contra o povo”, ressalta João Márcio. 

Para João Márcio, fica evidente que o Brasil é mais importante para o Banco Mundial do que o inverso, já que em termos financeiros, o país não precisa de empréstimos do Banco. Ainda assim, historicamente, está entre os cinco maiores clientes da instituição. Por quê? Isso mostra que a atuação do Banco é muito mais vasta do que a mera atividade financeira. “Por exemplo, o Banco tem uma atividade intensa e capilarizada no âmbito da reforma da administração pública brasileira, inclusive porque se relaciona direto com estados e municípios, e não apenas com a União. Evidentemente, para o Banco, o fato de o governo federal acolher suas prescrições e traduzi-las em políticas públicas é muito importante, servindo como vitrine para a sua replicação pelo mundo afora”, argumenta João Márcio.

O que propõe o Banco Mundial

O relatório feito especialmente para o Brasil traz recomendações para os seguintes tópicos: sustentabilidade e tendências fiscais; análise comparativa internacional da massa salarial do setor público; potencial de economias nas compras públicas; revisão do sistema previdenciário brasileiro em um contexto internacional e níveis de gastos com programas de apoio ao mercado do trabalho e assistência social, do setor de saúde, da educação e com políticas de apoio à empresa.

Segundo João Márcio, a escolha desses tópicos reflete a agenda do Banco Mundial com os Estados clientes, que se concentra na liberalização das economias nacionais, na privatização do patrimônio público e dos serviços públicos em geral e na promoção de ajustes macroeconômicos e fiscais que, invariavelmente, incidem negativamente sobre a ampla maioria da população, privilegiando os setores mais abastados da sociedade, em particular o capital financeiro. “Ocorre que tudo isso vem revestido de uma ideia particular de justiça, centrada no combate focalizado à pobreza. Resumidamente, quem pode pagar por serviços públicos deve pagar, e quem ainda não pode pagar deve dispor de programas sociais focalizados”, conclui. Para ele, num país como o Brasil, onde a exploração da força de trabalho sempre foi desmedida, milhões trabalham na informalidade, o salário mínimo é baixo e a estrutura tributária é profundamente injusta, essa agenda apela à ideia de combate à pobreza para, exatamente, tentar legitimar o rebaixamento de direitos sociais e trabalhistas. Nessa lógica, exemplifica, quem ganha três salários mínimos e tem carteira assinada é visto como privilegiado. Em suma, resume, esse relatório se transforma em mais uma peça do convencimento para as propostas que o governo está tentando desenvolver para educação, saúde e previdência.

Agência Brasil

Efeitos sobre a educação

Em matéria de educação, o item de maior destaque é a defesa aberta do fim da gratuidade no ensino público superior, combinada com a não reposição de professores e o congelamento salarial dos profissionais da educação. “A rigor, isso não é novidade na história do Banco Mundial nas últimas décadas. O que surpreende, além da falta de pudor, é o grau de articulação entre essas medidas, antes advogadas de forma mais ou menos soltas”, afirma João Márcio. A recomendação funcionaria da seguinte forma: o ensino superior passaria a adotar um sistema semelhante ao Programa de Financiamento Estudantil (Fies) nas universidades públicas, com o fim da gratuidade e a criação de bolsas para quem não pode pagar.

"As universidades públicas possuem sofisticada infraestrutura de pesquisa. Se as universidades Federais atuassem apenas no ensino, o custo-aluno não seria diferente do custo das privadas; se isso ocorresse, não seriam universidades"
Roberto Leher

A proposta está escorada nos dados de que a grande maioria dos brasileiros matriculados no ensino superior estudam em universidades privadas. O Banco aponta que em 2015, dos aproximadamente oito milhões de estudantes universitários, apenas cerca de dois milhões estavam em universidades públicas. E essa ‘pequena’ minoria tenderia a ser de famílias mais ricas que frequentaram escolas primárias e secundárias privadas. No entanto, no artigo ‘Banco Mundial: ajuste regressivo e antidemocrático’, publicado pelo Correio da Cidadania, o pesquisador Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que essa afirmação é falsa. “Conforme o IV Levantamento do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais Brasileiras, exaustivo estudo do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE), 60% dos estudantes das Federais cursaram os três anos do ensino médio em instituições públicas (ingressantes a partir de 2013: 64,5%)”, afirma o texto.

Ainda assim, o gasto por estudante nas universidades públicas no Brasil é consideravelmente mais alto do que em outros países com PIB per capita similar, segundo o documento. Em números, um estudante de universidade pública no Brasil custa de duas a três vezes mais que os alunos de universidades privadas. Entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de aproximadamente R$ 12.600 e R$ 14.850, respectivamente, de acordo com o relatório. Em universidades federais, a média foi de R$ 40.900 e nas universidades públicas estaduais, o custo é de aproximadamente R$ 32.200. “A limitação do financiamento a cada universidade com base no número de estudantes geraria uma economia de aproximadamente 0,3% do PIB”, diz o relatório. E ainda afirma que “além disso, embora os estudantes de universidades federais não paguem por sua educação, mais de 65% deles pertencem aos 40% mais ricos da população”. Em seu artigo, Leher aponta impropriedades nessa análise. “A comparação não se aplica. Não é recomendável o uso de analogias em ciência. Aproximadamente um terço do orçamento das Federais corresponde ao pagamento de aposentados e pensionistas; os hospitais universitários representam um custo que pode chegar a mais de 15% do orçamento; a grande maioria dos professores possui dedicação exclusiva, pois, diferente da quase totalidade das organizações privadas, são pagos para realizar pesquisas e, além das atividades de graduação, para orientar na pós-graduação e realizar extensão. Ademais, as universidades públicas possuem sofisticada infraestrutura de pesquisa. Somente os gastos com energia podem alcançar 20% das verbas de custeio. Muitas universidades são novas e estão construindo suas instalações. Se as universidades Federais atuassem apenas no ensino, o custo-aluno não seria diferente do custo das privadas; se isso ocorresse, não seriam universidades”.

Já para a educação básica, o Banco Mundial considera que as despesas públicas com ensino fundamental e médio apresentam ineficiências significativas, e o mesmo nível de serviços poderia ser prestado gastando 1% a menos do PIB em nível local. Além disso, a vinculação constitucional dos gastos em educação a 25% das receitas dos municípios seria uma das principais causas da ineficiência dos gastos. Nesse caso, a recomendação básica seria reduzir o número de professores. “Educação de qualidade não é uma questão matemática, o que eles analisam é simplesmente a relação do número de alunos por professor”, observa Marcela Pronko. Além disso, a pesquisadora também ressalta que todas as recomendações relacionadas à política de educação estão orientadas pelos interesses de mercado: de forma direta, a partir da privatização das universidades públicas, ou de forma indireta, através, por exemplo, da sugestão de contratar sistemas de ensino privados para as escolas de ensino fundamental e médio do país afora.

Fazer o mesmo com menos

Para a saúde, também não há nenhuma surpresa. Segundo o relatório, cerca de 0,3% do PIB do setor saúde poderia ser economizado através de melhorias de eficiência em nível local, mantendo o mesmo nível de serviços de saúde, e mais 0,3% com o fim dos créditos tributários do imposto de renda para despesas privadas com saúde. O que isso significa de fato? Desengessar tanto as despesas quanto as receitas, de maneira a poder atender de forma flexível as priorizações feitas pelo governo, apostando que a melhor saída é um sistema de saúde que se restrinja a uma atenção básica, e o resto, quem puder, compra no mercado. Mais especificamente, isso exigiria a redução do número de hospitais de pequeno porte, o que representaria 80% dos hospitais brasileiros. “Opções por tratamentos muito caros, muito experimentais, tudo isso sairá de cena, a menos que a pessoa tenha recursos para arcar com os gastos decorrentes”, lamenta Marcela.

O Banco Mundial também orienta a contenção de gastos com medicamentos. Para isso, seria necessário limitar os processos de aquisição e frear as liberações de medicamentos que são adquiridos por pacientes que entram com ações judiciais. “Está muito claro que há uma blindagem dos altíssimos ganhos que o setor financeiro nacional e internacional, aliás, nacional internacionalizado, obtém a partir de elementos que não são questionados no relatório”, analisa Marcela. Para a pesquisadora, o documento tem como objetivo ajustar a base da pirâmide social. “Se a gente pensava que estava numa trajetória de demolição de direitos, este relatório vem no sentido de passar o rolo compressor. Acaba com tudo, é o exterminador de direitos”, denuncia.

Funcionalismo público na mira

Marcela destaca como grande novidade do relatório, a centralidade do ataque ao funcionalismo público, também coerente com a política em curso no Brasil. Segundo o documento, “embora somente 12% das despesas primárias do governo federal sejam destinadas à folha de pagamento, a massa salarial agregada do setor público em todos os níveis de governo é muito alta para padrões internacionais. Os altos níveis de gastos são impulsionados pelos altos salários dos servidores públicos, e não pelo número excessivo de servidores. Isso se verifica principalmente na esfera federal, onde os salários são significativamente mais altos que aqueles pagos a trabalhadores em funções semelhantes no setor privado”. “É um estudo feito sob medida para patrocinar a agenda regressiva da reforma da previdência e justificar o calote ao reajuste aos servidores”, resume Antonio Lassance, pesquisador da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Segundo o relatório, um “alinhamento dos salários iniciais aos pagos pelo setor privado e a introdução de um sistema mais meritocrático de aumentos salariais reduziriam os custos e aumentariam a produtividade no setor público”. O texto afirma ainda que os altos salários recebidos colocam os servidores federais no topo da pirâmide de renda nacional, o que contribui para aumentar a desigualdade no Brasil. Também traz elementos numéricos que justificariam a necessidade de enxugar a massa de funcionários públicos no país. Segundo o relatório, os salários do setor público brasileiro subiram de 11,6% do PIB em 2006 para 13,1% do PIB em 2015, superando até Portugal e França, que registravam massas salariais mais altas que o Brasil há uma década. Também faz uma comparação com o Chile, que gastou somente 6,4% do PIB em salários do funcionalismo público em 2015.  No entanto, para Lassance, a grande intenção do documento é promover o que chama de “a dieta do choque fiscalista regressivo”. “O erro é fazer uma comparação dos salários dos servidores federais sem comparar com a massa salarial dos servidores estaduais e municipais. Eles não entram nessa seara”, argumenta o pesquisador. Para ele, outro ponto incoerente são as inúmeras comparações “estapafúrdias”. “Desde quando países como Austrália, Chile e mesmo Portugal e França servem de contrafactuais ao Brasil? Países com PIB e renda per capita muito altos e populações bem menores que as do Brasil não podem ser tomados como ‘benchmarks’ (processo de comparação de produtos, serviços e práticas)”, questiona. 

O Banco propõe o congelamento de todos os salários do setor público até que os níveis estivessem compatíveis com as referências internacionais e com o setor privado

O relatório também caracteriza os servidores públicos no Brasil como privilegiados por ganharem, na média, 70% a mais (R$ 44 mil por ano) do que os trabalhadores do setor privado (R$ 26 mil por ano), considerando o mesmo nível de escolaridade. Para João Márcio, essa é mais uma das considerações indevidas, pois compara universos sociais quantitativa e qualitativamente distintos. “Basta saber que R$ 44 mil por ano equivalem a R$ 3.600 por mês. Desde quando um salário desses pode ser considerado ‘excessivo’? Em nome da equidade e do combate à pobreza, esse tipo de comparação mal feita e enviesada serve a um propósito claro: rebaixar a remuneração média do funcionalismo público”, aponta.

Lassance, no entanto, concorda com a avaliação do relatório, de que, comparado com países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o número de servidores do Brasil é mais baixo embora a massa salarial seja alta. “O Brasil, de fato, tem uma massa salarial alta se comparada a países da OCDE, e isso é preocupante. E isso está relacionado, sobretudo em âmbito federal, com essas categorias que são super bem remuneradas, que deveriam ser objeto de um tratamento específico, ou seja, membros do poder judiciário, membros do Tribunal de Contas, membros do Ministério Público e titulares de cartório”, analisa.

O relatório indica situações ‘aberrantes’ de algumas carreiras – a principal delas, a de titular de cartório –,  mas isso não tem como consequência uma proposta específica, apenas a orientação genérica de congelar salários e promover a reforma da previdência. “O titular de cartório é a categoria mais bem remunerada do serviço público. Tem alguma proposta específica no relatório sobre o que fazer com eles? Membros do Ministério Público e poder judiciário claramente são super bem remunerados e, de fato, têm valor aberrante até numa comparação internacional. Tem alguma proposta do Banco em relação a isso? Não, o Banco sequer fala da importância do cumprimento do teto salarial dos servidores. E são essas categorias justamente que extrapolam esses valores mínimos razoáveis e decentes, porque extrapolam o teto constitucional”, afirma Lassance. De fato, nenhuma linha sobre teto salarial é feita, a não ser para limitar rendimentos do Bolsa Família.

E tem mais. Segundo o documento, ‘a reforma do funcionalismo público deve promover a racionalização da remuneração, a priorização do planejamento estratégico da força de trabalho, a reforma do sistema de carreiras e a seleção com base em competências’. Em suma, isso significa a redução gradativa do número de funcionários públicos. Uma estratégia seria a redução dos salários iniciais de todos os novos funcionários, seguida pela redução gradual dos níveis de remuneração. “Uma análise demográfica dos servidores públicos atuais indica que a economia poderia crescer rapidamente, pois muitos devem se aposentar na próxima década, já que 38% têm mais de 50 anos. Essa medida deveria ser acompanhada pela introdução de um sistema de avaliação de desempenho mais rigoroso e um bônus por desempenho mais alto. A vantagem dessa abordagem é que ela poderia criar incentivos para o desempenho à medida que os servidores mais jovens buscassem uma promoção”, aponta trecho do texto.

O Banco propõe o congelamento de todos os salários do setor público até que os níveis estivessem compatíveis com as referências internacionais e com o setor privado. Por exemplo, a restrição dos aumentos dos salários nominais reduziria o montante salarial os servidores públicos federais pela metade até 2021, o que resultaria em uma economia anual de 0,9% do PIB, que representaria R$ 53 bilhões. A manutenção dos salários a nível constante em termos reais reduziria esse montante pela metade até 2029.  Essas medidas, segundo o documento, ajudariam a reduzir a desigualdade social. Isso porque, com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2015), o relatório destaca que 54% dos servidores públicos (em todos os níveis administrativos) encontram-se no nível superior da distribuição de renda nacional, e 77% estão entre os 40% mais ricos. Os servidores públicos federais têm uma renda particularmente alta: dois terços encontram-se no nível superior da distribuição de renda, 83% estão entre os 20% mais ricos, e quase todos (94%), entre os 40% mais ricos.

“São argumentos e recomendações burras e de gabinete”
Marcela Pronko

Lassance afirma que as comparações são absurdas e não têm relação com as estatísticas. “É como se você tivesse uma gripe, fosse ao médico e o médico receitasse o mesmo remédio que ele receita para alguém que tem tuberculose ou infecção intestinal”, ironiza. Nesse caso, os remédios são congelar a contratação de servidores, congelar salários, postergar e rever reajustes salariais dos servidores.  “É um relatório mal feito, a impressão é de que foi terminado às pressas para cumprir agenda. Não especifica a metodologia de muitos de seus cálculos, tem premissas incorretas, erros factuais, uma abordagem meramente fiscalista e apenas na variável gasto, e não receita. Traz conclusões genéricas e algumas grosseiras e ausência de diretrizes de política de pessoal”, afirma Lassance.

Na esteira da reforma da previdência

Numa espantosa semelhança com a política do governo brasileiro, o relatório defende que, para concretizar essas recomendações, é preciso acionar uma ferramenta muito poderosa: a reforma da previdência. Segundo o relatório, a reforma imporia custos de ajuste mais altos aos trabalhadores mais ricos e tornaria, assim, o sistema mais equitativo. Nesse caso, defende que a parte mais injusta da previdência brasileira é o sistema previdenciário dos servidores públicos (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS), que oferece aposentadorias extremamente generosas, principalmente para os que ingressaram antes da reforma de 2003. Ainda segundo o documento, o RPPS federal já apresenta um déficit de 1,2% do PIB. Além disso, os déficits dos RPPSs subnacionais devem subir drasticamente nos próximos anos, levando muitos estados à beira da falência. “Os altos subsídios embutidos nas aposentadorias dos servidores públicos são altamente injustos, pois eles fazem parte do grupo mais rico da população. Portanto, os servidores devem contribuir para a reforma por motivos de equidade e sustentabilidade. O conceito de direitos adquiridos precisa ser revisto”, diz o documento. Marcela Pronko é categórica: “São argumentos e recomendações burras e de gabinete”.

Lassance também discorda da avaliação do Banco. “A reforma aplica um torniquete sobre essa camada intermediária, que é a classe média, que no relatório Banco Mundial é chamada de elite, os ricos do país. E qualquer pessoa sabe que a elite, os ricos do país, não são servidores públicos. Quando a gente fala de servidores, está falando de professores, médicos, profissionais da segurança pública... Essas são as categorias que compõem o grosso do que a gente chama de servidor público”, afirma Lassance. Nesse sentido, diz, uma reforma da previdência contra o servidor público, na verdade, não é uma reforma contra os ricos, mas contra o setor da classe média, sobretudo, a classe média baixa. Segundo o pesquisador, o relatório aponta inúmeros “outliers” – valor aberrante ou atípico- para justificar suas recomendações. E ele alerta que esses dados merecem ser avaliados com muito cuidado uma vez que boa parte do estudo do Banco Mundial não é feita com informações próprias. Para o pesquisador, o relatório, nesse sentido, presta um desserviço à discussão sobre o serviço público, com desinformação e comparações absurdas. Ele conclui:“É uma corrida para o fundo do poço, um achatamento geral dos benefícios para se igualar ao setor privado não porque o setor privado seja bem remunerado, mas justamente porque é mais baixo. É simplesmente uma lógica fiscalista, que eu chamei de ‘dieta de choque fiscalista regressivo’, que torna a situação do país ainda mais desigual do que deveria ser”.

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