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Com missão inexequível, comissão promove pente-fino ideológico em base de questões do Enem

Educadores afirmam que método de 'censura' causa ainda ruptura em série histórica da avaliação
Beatriz Mota - EPSJV/Fiocruz | 28/03/2019 12h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Educadores se preocupam com integridade do Enem Foto: Divulgação/ Inep

Três pessoas são designadas para analisar 40 mil itens de uma prova em dez dias corridos. Considerando-se uma divisão igualitária de trabalho, quantos itens devem ser lidos diariamente por cada revisor para que o prazo seja cumprido? Aproximadamente 1.333. A equação de nível simples e resultado inexequível poderia compor a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Isto é, se ela não fosse expurgada, antes, pelo pente-fino ideológico promovido por uma comissão criada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para “leitura transversal” do Banco Nacional de Itens (BNI) – acervo que fornece as questões para montagem de prova do Enem. O grupo está em ação desde o dia 20 de março, data em que a portaria foi publicada no Diário Oficial da União.

O trabalho corre com fragilidade em meio a um processo turbulento nas bases do Inep. Empossado presidente do instituto em 24 de janeiro, Marcus Vinicius Rodrigues foi exonerado do cargo nesta terça-feira, 26 de março. A demissão se deu depois que o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, revogou portaria, também assinada por Rodrigues, que cancelava a avaliação federal da alfabetização. Na esteira da crise, Paulo César Teixeira, responsável pelo Enem, pediu demissão do cargo na Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb). Segundo ele, em "solidariedade" ao presidente da autarquia. 

O colegiado que terá por missão “analisar as questões para verificar sua pertinência com a realidade social, de modo a assegurar um perfil consensual do exame”, de acordo com a portaria, que não teve seus critérios ou processos revelados pelo Inep. Mas os especialistas têm palpite sobre o ‘método’ que será adotado pela comissão: o indefectível ctrl + f. “É ridículo, é impossível que consigam, neste prazo, fazer uma análise nas milhares de questões do BNI. O que vão fazer é buscar nos textos por algumas palavras-chave. Vão procurar gênero e excluir. Depois, procurar por diversidade e excluir. E assim por diante”, opina Fernando Penna, historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador do Movimento Educação Democrática.

Fernando Cássio, professor de Políticas Educacionais da UFABC e membro da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, reforça o coro de incrédulos: “É só fazer qualquer continha matemática básica para ver que esta é uma tarefa irrealizável. Eles terão que ler, comparar e hierarquizar as questões, de forma que saibam qual é mais ou menos de esquerda… Essas pessoas não estão aptas a fazer esse trabalho porque ninguém está, é uma função incabível”. Cássio refere-se aos membros nomeados publicamente para a tarefa: o representante do Ministério da Educação Marco Antônio Barroso Faria, secretário de Regulação e Supervisão da Educação Superior; o representante do Inep, Antônio Maurício Castanheira das Neves, diretor de Estudos Educacionais, e como representante da sociedade civil, Gilberto Callado de Oliveira, procurador de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina. De acordo com artigo publicado pelo HuffPost Brasil, dos três integrantes, dois são diretamente ligados ao ministro da Educação, e o procurador é alinhado com ideias conservadoras defendidas pelo ministro e pelo presidente Jair Bolsonaro.

Série histórica do Enem é interrompida com comissão

O texto que pôs a comissão na rua, ou melhor, no Ambiente Físico Integrado Seguro (Afis) – espaço de segurança máxima do Inep onde também são elaboradas as questões – afirma que compete aos três nomeados recomendar ou não a utilização de itens antes da montagem das provas. Nota divulgada pelo Inep salienta que se pretende, assim, evitar alterações no desenho psicométrico da do exame e nos parâmetros que garantem o cálculo das proficiências, o que supostamente não comprometeria o equilíbrio da prova com edições anteriores. O que não foi alardeado, entretanto, é que a introdução de um filtro como este interfere no processo de concepção da prova e interrompe a série histórica do Enem. 

“Ter uma comissão para avaliar quais itens entram e quais saem, em uma revisão centralizada do Banco Nacional de Itens, viola a concepção da prova. Você está introduzindo um viés a mais em uma etapa, e então cria-se um fato: a prova de 2019 não poderá ser comparada com as provas de anos anteriores. A série histórica fica interrompida. De 2009 para cá, as provas podem ser comparadas estatisticamente, pois a técnica, o modo de organizar, produzir e avaliar dados devem ser os mesmos. Mas com a introdução desse novo viés produzido pela comissão, isso é violado. É gravíssimo”, aponta Fernando Cássio.

Criado em 1998 como ferramenta para analisar o nível da educação no Ensino Médio brasileiro, o Enem substituiu o vestibular em 2009, como um processo unificado de seleção, passando a ter dois dias de execução. Na última edição, 5,5 milhões de pessoas se inscreveram para a prova, que adota como tecnologia de avaliação em larga escala a metodologia da teoria da resposta ao item, com pressupostos e processos descentralizados que garantem que a prova seja reprodutível e isonômica. Entre eles, o BNI, construído por educadores e pesquisadores da educação de todo o Brasil que são chamados à elaboração dos itens. 

O volume de 40 mil itens no BNI é, hoje, uma estimativa de profissionais ligados ao Inep. O último número divulgado pelo instituto é de 20 mil itens, em 2012, quando o órgão decidiu trancar a informação após um vazamento de questão no exame de 2011. À época, o então ministro da Educação Aluizio Mercadante afirmou que o objetivo era aumentar para 50 mil o número de questões em até cinco anos. No entanto, o dado segue em sigilo, bem como vários outros elementos sobre o acervo. Questionado Portal EPSJV/ Fiocruz, o Inep respondeu que essas informações não são revelados “por questão de segurança”.

MP sugere “abuso de poder” por comissão, que pode provocar ainda descompasso jurídico

Aos vários dados não revelados pelo Inep se somarão também os resultados do trabalho da comissão, que não serão divulgados. Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, também não estão claras as motivações reais da comissão. O órgão considerou o “propósito extremamente vago” e solicitou, no dia 21 de março, esclarecimentos do instituto sobre: quais foram as avaliações “que levaram à conclusão da necessidade de adoção da etapa técnica de revisão”; quais profissionais especialistas em avaliação educacional e instituições de educação superior participaram dessa avaliação; qual é a qualificação técnica e profissional dos membros da comissão instituída; e quais os critérios sugeridos nessa avaliação para análise da pertinência dos itens da BNI “com a realidade social, de modo a assegurar um perfil consensual do Exame”, conforme diz a portaria. 

No ofício, a procuradora federal Deborah Duprat ainda cita uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre “abuso de poder”, segundo a qual “o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar”. A procuradora determinou um prazo de cinco dias para que o Inep enviasse “toda a documentação pertinente”., o que não foi realizado até a publicação desta matéria, embora o prazo já tivesse esgotado .

Também no âmbito jurídico, a varredura de questões que não sejam vistas com bons olhos pelos integrantes da comissão pode causar um descompasso entre compromissos da educação brasileira e suas novas práticas. Penna explica: “Temos uma lei que torna obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira e indígena em todas as escolas do ensino fundamental ao ensino médio. Havendo censura de questões como essas, fica ameaçada a aplicação da própria lei. Se o Brasil é signatário de compromissos internacionais nos quais se compromete a combater a desigualdade de gênero dentro de sala de aula, por exemplo, e, em vez de fazer isso, proíbe a discussão em sua avaliação nacional, temos uma gigantesca contradição!”.

O historiador defende a importância dos temas que têm gerado polêmica em torno do Enem. “Politicamente, a presença de questões de raça, gênero e classe, para muitos considerada problemática, a meu ver é essencial, pois destaca alguns elementos que são negligenciados. Quando eles caem na prova, gera demanda para que escolas trabalhem. E, afinal, são itens obrigatórios. Existem legislação, diretrizes, políticas públicas que apontam a obrigatoriedade da discussão desses temas, não é uma opção dos professores”, reforça.

Os educadores defendem que a incidência de temáticas como as pautas identitárias, por exemplo, nada mais é do que um reflexo das discussões vigentes na sociedade. “Acreditam que a prova traz uma conspiração, mas ela traz temas que estão circulando na sociedade. As pessoas quererem discutir as lutas do povo negro, feminismo, os preconceitos, o ódio, inclusão. Isso não está na prova porque os professores são esquerdistas. Os editais para chamada de colaboradores do BNI são públicos, há profissionais de várias universidades envolvidos na elaboração das questões… E acredite: dentre as pessoas que sei que já produziram itens para o BNI, nenhuma delas é de esquerda”, defende Fernando Cássio.

Escola Sem Partido?

Esta é a primeira vez que o BNI passa por revisão de um órgão de avaliação – nem mesmo os presidentes do Inep têm prevista uma vistoria da prova, antes da aplicação. Em novembro do ano passado, após a aplicação do Enem 2018, o presidente Jair Bolsonaro criticou uma questão que fazia menção ao dialeto próprio de gays e travestis e prometeu aos eleitores que não haveria “mais isso aí”: “Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes”.

Diante dos indícios, os educadores ouvidos pelo Portal EPSJV/Fiocruz não hesitam em afirmar que o processo promove censura de ideias. “É uma comissão de censura, um tribunal de santo ofício dentro do Inep, que vai dar origem a um produto ideologicamente enviesado. Em nome de um projeto político-educacional que é desviante do que está na Constituição”, afirma Cássio, que destaca ainda: “Criar uma comissão para selecionar questões para uma prova que, até onde sabemos, não é produzida por uma comissão centralizada, mostra autoritarismo, além de incompreensão do que é a tecnologia envolvida numa prova do Enem”.

Fundador do Movimento Escola Sem Partido e crítico assíduo das temáticas “doutrinadoras” abordadas do Enem, Miguel Nagib ainda não canta vitória com a criação da comissão. Indagado pelo Portal EPSJV/Fiocruz, Nagib foi lacônico: “A portaria é muito sucinta. Confesso que não sei exatamente o que isso significa”.

Nagib é o autor da ação que configurou a primeira interferência de sucesso do campo conservador no Enem. Desde 2017, a partir de liminar sustentada pelo Supremo Tribunal Federal, o candidato que escreve redações com teor desrespeitoso aos direitos humanos não pode mais ter a sua nota zerada, como estava previsto anteriormente nas regras da prova. A discussão surgiu em 2015, com o tema ‘Persistência da violência contra a mulher’ na redação, quando o a Associação  do Escola Sem Partido mandou uma representação a todos os estados da federação questionando a constitucionalidade do critério de correção.

“A argumentação que eles apresentaram foi de que os professores e estudantes não têm formação jurídica necessária para falar de uma norma legal, no caso direitos humanos. O que foi bastante assustador num ano em que o tema [da redação] foi a violência contra a mulher. O que eles estavam insinuando era que um aluno pudesse falar a favor da violência e tudo bem?, questina Penna. O professor da UFF analisa a chegada da pauta “doutrinária” da educação ao ensino superior: “Isso demonstra para a gente como esse discurso reacionário já está tendo impacto no cotidiano das escolas e das políticas públicas, quando um critério de avaliação nacional cai por conta da atuação dessa associação”.

Educadores se preocupam com integridade do Enem 

Após a mudança do perfil do Enem, em 2009, a prova tornou-se a principal porta de entrada para a universidade no Brasil. Com discordâncias sobre a rigidez da matriz e sobre o método competitivo, educadores têm consenso sobre a importância da avaliação na ampliação e democratização das vagas no Ensino Superior e temem uma possível desvirtuação do exame.

“O Enem tem vários problemas, mas é um patrimônio nacional. É uma tecnologia que está incorporada ao Estado, transcendendo os governos. O Enem não é do Fernando Henrique Cardoso, do Lula, da Dilma. Ele é do Brasil. Então, quando você tenta conspurcar um sistema desse, você está atacando um patrimônio nacional. Temos que defender pelo menos a existência dele, a integridade do processo... para depois lidar de maneira técnica, competente, argumentativa e propositiva com os problemas”, diz o membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Fernando Cássio.

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“Todos os professores, estudantes e funcionários são livres para expressar seu pensamento e opinião nos termos do artigo 206, incisos I e III da Constituição”. Esse é o primeiro artigo do Projeto de Lei 502/2019, da deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), que institui o programa ‘Escola Sem Mordaça’, e tomou como base o texto anterior do projeto do ex-deputado federal do Psol Jean Wyllys, batizado com o nome de ‘Escola Livre’ (PL 6.005/2016). A proposta foi apresentada no dia 6/2, em oposição ao ‘Escola sem Partido’ (PL 246/2019), protocolado no primeiro dia da nova legislatura (4/2), pela deputada Bia Kicis (PSL-RJ). O Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou as duas deputadas para uma reportagem. E agora publica a íntegra das duas entrevistas (leia ao fim a entrevista com Bia Kicis), em formato de pergunta e resposta. Nesta entrevista, Talíria explica do que se trata o ‘Escola Sem Mordaça’, a diferença entre as duas proposições e defende que essa suposta “doutrinação nas escolas”, de que fala o ‘Escola Sem Partido’ é “uma falácia”, “uma invenção que dialoga com o pensamento conservador de um Brasil que ainda não encerrou a colonização”. A deputada também explica por que se fez necessário um projeto para defender que a escola ‘não tenha mordaça’: “Mesmo sabendo que o ‘Escola Sem Partido’ é um projeto inconstitucional, consideramos importante afirmar nossa convicção pedagógica, ou seja, a importância de permitir autonomia a alunos e professores no processo de ensino-aprendizagem e de inserção no mundo”.
A deputada Bia Kicis (PSL-RJ) protocolou no primeiro dia da nova legislatura (4/2) um novo texto do Projeto de Lei ‘Escola sem Partido’, o PL 246/2019. Trata-se de uma atualização do projeto anterior (PL 7.180/2014) — de autoria do deputado Erivelton Santana, eleito pelo PSC, mas hoje filiado ao Patriota —, que foi arquivado em dezembro do ano passado. Tal qual a proposta anterior, cujas ideias são evocadas pelo Movimento Escola Sem Partido (Mesp), criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, o projeto entende ser necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir uma suposta prática de “doutrinação política e ideológica” nas escolas, bem como a “usurpação dos direitos dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. No mesmo dia, a deputada Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentou o Projeto ‘Escola sem Mordaça’, que vai no sentido contrário. O Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou as duas deputadas para uma reportagem. E agora publica a íntegra das duas entrevistas (leia ao fim a entrevista com Talíria Petrone), em formato de pergunta e resposta. Nesta entrevista, Bia Kicis explica as mudanças feitas ao novo texto, como a possibilidade de os alunos gravarem as aulas e a proibição de manifestação político-partidária nos grêmios estudantis. No texto do projeto, ela escreve ser “fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas”.
A Câmara dos Deputados recebeu dois projetos sobre o que deve ou não ao professor ensinar. O primeiro, ‘Escola Sem Partido’, propõe combater a “doutrinação” nas escolas. O segundo, ‘Escola Sem Mordaça’, busca garantir a “livre expressão de pensamento e manifestação”
O projeto ‘Escola sem Partido’ seria votado hoje (31/10) pela Câmara. O texto, que está em uma comissão especial, sofreu modificações na véspera. A versão atual mantém a proibição do uso dos termos "gênero" e "orientação sexual" nas escolas, bem como veda a promoção do que o projeto de lei chama de "ideologia de gênero" e "preferências políticas e partidárias". Mas, se antes o projeto dizia que essas noções não poderiam estar presentes em livros didáticos e paradidáticos, avaliações para o ingresso no ensino superior, provas de concurso para o ingresso na carreira de professor e instituições de ensino superior, respeitada a autonomia didático-científica das universidades, agora a proibição é mais abrangente: pelo novo substitutivo, as regras serão aplicadas também às políticas e planos educacionais, aos conteúdos curriculares e aos projetos pedagógicos das escolas. Além disso, a todos os materiais didáticos e paradidáticos, e não só aos livros. Em julho, a Revista Poli nº 58 publicou matéria sobre o Escola Sem Partido e como o movimento está alinhado a parlamentares ligados a segmentos religiosos, evocando um discurso moralista para atacar a autonomia docente
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