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Conselho Nacional de Educação aprova BNCC do ensino médio

Documento é alvo de críticas por movimentos sociais e associações científicas da educação desde que foi apresentada pelo MEC, em abril. Ex-presidente da comissão da BNCC no CNE critica falta de transparência e de diálogo na discussão da base
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 06/12/2018 14h46 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou na terça-feira (04) a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio. O documento recebeu sinal verde de praticamente todo o Conselho: foram 18 votos a favor e duas abstenções. Precisa, agora, ser homologado pelo ministro da Educação, Rossieli Soares, que ocupa o cargo até o dia 31 de dezembro.

O documento servirá de orientação para a elaboração dos currículos das redes municipais, estaduais e federal de ensino, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares. O presidente da comissão da BNCC no CNE, Eduardo Deschamps, informou, via assessoria de imprensa do Ministério da Educação (MEC), que o processo de implementação da base deve ser feito ao longo dos próximos dois anos. Kátia Smole, secretária de educação básica do MEC, informou ainda que a pasta deve apresentar, na semana que vem, um programa intitulado Pró-BNCC, de apoio à implementação da base. Segundo ela, o programa vai contar com um aporte do Banco Mundial da ordem de R$ 1 milhão por ano pelos próximos dez anos.


Críticas ignoradas

O ex-conselheiro do CNE César Callegari, que em junho renunciou à presidência da comissão da BNCC no conselho depois de criticar publicamente o seu conteúdo e o que chamou de interferência do MEC no Conselho Nacional de Educação para acelerar o processo de discussão da base, apontou problemas na forma como o documento foi aprovado. Segundo ele, o texto foi mantido inalterado, mesmo após as várias manifestações contrárias, inclusive durante as audiências públicas realizadas entre maio e agosto deste ano, cujas contribuições, segundo ele, foram “solenemente ignoradas”. “O Conselho Nacional de Educação se limitou a obedecer o cronograma e os objetivos políticos da atual equipe do MEC e, surpreendentemente, aprovou um documento que tem profundo impacto nos próximos anos, ocultando o processo de deliberação da sociedade. Isso é algo inadmissível”, critica Callegari. O ex-conselheiro do CNE argumenta que a votação foi realizada de forma irregular, uma vez que o CNE não divulgou a pauta da sessão deliberativa que votaria a BNCC com antecedência. “O CNE tem a obrigação de fazer isso, é uma coisa regimental, estabelecida por lei. Mas isso não foi feito”, alerta.

Na segunda-feira (03), depois que Callegari informou, via Facebook, que o CNE pretendia aprovar a BNCC naquela semana, a reportagem do Portal EPSJV entrou em contato com a assessoria do CNE para confirmar a informação, que não estava disponível no site do conselho A assessoria informou que a Comissão da BNCC estava reunida e que a reportagem seria avisada caso a votação da BNCC entrasse na pauta da sessão deliberativa do pleno do conselho, que é realizada às terças-feiras. Na terça-feira de manhã, já com a sessão do pleno em andamento, a assessoria informou que o relatório da BNCC já havia sido relatado e que seria submetido a voto no mesmo dia, que foi o que aconteceu.


Mudanças na composição do CNE

Callegari deixou o CNE em outubro, quando terminou seu mandato, assim como as conselheiras Márcia Ângela Aguiar e Malvina Tuttman.  Em um decreto do dia 29 de março, o MEC nomeou cinco novos conselheiros ao CNE e reconduziu outros quatro para um novo mandato, até 2022. Callegari, Aguiar e Tuttman não estavam entre os que foram reconduzidos. Entre seus substitutos como conselheiros foram nomeadas a ex-secretária-executiva do MEC na gestão Mendonça Filho, Maria Helena Guimarães de Castro, e o ex-secretário de educação de Pernambuco e atual diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna, Mozart Ramos.

Ainda em 2016, o então ministro da Educação Mendonça Filho revogou decretos de nomeação e recondução ao Conselho que haviam sido emitidos ainda na gestão de seu antecessor no MEC, Aloísio Mercadante. À época, a medida foi denunciada como “autoritária” pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Pouco antes, em fevereiro, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) havia apresentado projeto de lei alterando a lei do PNE para possibilitar que a BNCC fosse aprovada pelo Congresso Nacional, e não pelo CNE. Com as mudanças na composição do Conselho, o projeto acabou sendo descartado. “Não há mais oposição dentro do Conselho, isso ficou claro”, critica Callegari, referindo-se a votação da BNCC realizada na terça-feira. “Não houve sequer voto contra. Sequer alguém exerceu prerrogativas regimentais de pedidos de vista, que são recursos próprios do processo democrático”, completa.

O Conselho Nacional de Educação respondeu, via assessoria de imprensa, que o tempo dispensado pelo CNE para a análise da etapa do Ensino Médio da BNCC foi o mesmo do ano passado para análise da BNCC do ensino infantil e fundamental, já homologada.  “Foram seguidos os mesmos ritos e tempos tradicionais do Conselho para temas desta natureza. Dezoito conselheiros dos 20 presentes (2 abstenções - não houve voto contra) à reunião de aprovação entenderam que o documento estava apto ser aprovado, não havendo motivos para protelar sua aprovação”, afirmou o CNE.

Movimentos sociais e entidades científicas do campo da educação, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), vinham denunciando o que caracterizaram como falta de diálogo e de transparência do MEC e do CNE no processo de construção da BNCC. Em nota divulgada nesta terça (05/12/2018), a Anped manifestou “preocupação e indignação” com a aprovação da base, em um processo marcado, segundo a associação, por audiências públicas interrompidas, críticas severas de especialistas e de conselheiros do CNE e ausência de diálogo com associações científicas. “É atordoante ver um país assumir reformas educacionais e políticas educativas contrárias ao que os especialistas da área indicam como as mais adequadas, e desinteressado pelo diálogo com seus cientistas e sociedade civil organizada. Seguiremos atentos na análise dos desdobramentos dessa reforma e firmes na resistência cotidiana”, afirma a nota da Anped, para quem a BNCC do ensino médio consolida o conjunto de reformas para essa etapa do ensino iniciada pela a reforma do ensino médio, apresentada como medida provisória ainda em 2016 pelo governo Temer, e pela resolução aprovada pelo CNE no dia 8 de novembro que estabeleceu as novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM).

Em entrevista ao Portal EPSJV realizada logo após a aprovação, pelo CNE, das novas DCNEM, a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Marise Ramos, argumentou que a lei da reforma do ensino médio, a BNCC, juntas, “fecham o cerco” no sentido de garantir a implementação do projeto político do atual governo para a educação. “Você tem o quebra-cabeça montadinho. A lei da contrarreforma do ensino médio diz, entre outras coisas, que esse segmento  vai ter 2,4 mil horas, sendo que dessas 1800 serão da BNCC. A BNCC vai dizer o conteúdo dessas 1800 horas e as diretrizes vão dizer a forma, a dinâmica. Agora, por exemplo, as redes públicas podem oferecer a Base Nacional Comum Curricular, enquanto o itinerário da educação profissional pode ser ofertado por meio de parcerias, que podem ser com instituições privadas. São as diretrizes que falam isso. A lei não fala, e a BNCC também não”, explicou ela na ocasião.


O percurso da BNCC

A construção da BNCC começou ainda no governo Dilma Rousseff. Desde então, vem sendo alvo de críticas por parte de movimentos da educação. A reação contrária recrudesceu após a aprovação da lei da reforma do Ensino Médio, já no governo Michel Temer, que estabeleceu um currículo baseado em itinerários formativos – linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional – para essa etapa de ensino. Após a aprovação da reforma, em fevereiro de 2017, a BNCC foi dividida em duas: a relativa aos ensinos infantil e fundamental foi aprovada em dezembro do ano passado; a do ensino médio foi apresentada pelo MEC ao CNE em abril de 2018.

Uma das principais polêmicas envolvendo as versões mais recentes da BNCC foi a exclusão das menções a gênero e orientação sexual pelo MEC. A justificativa para a exclusão foi de que a temática de gênero provocara muita controvérsia durante as audiências públicas para discussão da BNCC. Por outro lado, na versão para a educação infantil e ensino fundamental, o ensino religioso foi integrado à BNCC como sendo de oferta obrigatória nas escolas brasileiras.

O calendário do CNE previa, entre maio e agosto, audiências públicas nas cinco regiões do país para debater o documento. No entanto, duas delas – em São Paulo, em junho, e em Belém do Pará, em agosto – foram canceladas devido a protestos realizados por grupos contrários à BNCC.

Em junho, quando deixou a presidência da comissão da BNCC, César Callegari chegou a defender que o documento fosse rejeitado pelo CNE e devolvido ao MEC, e em entrevista publicada no Portal EPSJV argumentou que o documento trazia problemas “insanáveis” no âmbito do Conselho. “Nada mudou em relação ao texto que eu critiquei naquela ocasião”, lamenta Callegari, em entrevista após a aprovação. E completa: “É uma base que suprime direitos dos estudantes brasileiros e tende a aprofundar as desigualdades educacionais do Brasil”.

A decisão de estabelecer apenas as disciplinas de matemática e português como obrigatórias nos três anos de ensino médio, com as demais sendo diluídas em áreas do conhecimento, é apontada como um dos principais problemas. “Com exceção de português e matemática, todas as demais disciplinas – química, física, biologia, história, geografia, filosofia, sociologia, artes, língua estrangeira – ficam diluídas em áreas do conhecimento, sem que haja qualquer indicação a respeito do que deve ser assegurado”, alerta, argumentando que isso significa um empobrecimento da formação. “Com garantias apenas de português e matemática se empobrece a capacidade de formação de um espírito crítico, de uma cidadania mais contemporânea. Considerando a situação das escolas públicas no Brasil, a maior parte com muitas carências, elas vão oferecer apenas o que é possível. É educação pobre para os pobres”, lamenta. 

Questionado sobre isso, o CNE respondeu que essa é uma determinação da lei 13.415, que aprovou a reforma do ensino médio, “não competindo ao CNE descumprir o mandamento legal”. E completou: “Ao mesmo tempo, se trata apenas de uma forma de apresentação das habilidades por áreas, o que permite diferentes formas de organização curricular diversas, não necessariamente por disciplinas (que aliás podem continuar sendo oferecidas se a rede assim entender em seu currículo). O CNE não entende que isso possa levar a um esvaziamento, apenas a formas diferentes de organização curricular. Finalmente o Conselho entende que a BNCC passa a direcionar as avaliações externas e não o contrário como ocorre hoje”.


Que participação?

Professor da Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC) Fernando Cássio vem acompanhando o processo de discussão da BNCC desde o começo. “Todos os processos supostamente participativos que aconteceram desde 2015 para discussão da base estão eivados de vícios e problemas”, denuncia, dando o exemplo dos seminários estaduais promovidos pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) entre 23 de junho e 10 de agosto de 2016 para discutir a segunda versão da BNCC, que nos cálculos das entidades reuniram mais de nove mil professores, gestores, especialistas e entidades de educação para analisar o documento.

Em um posicionamento conjunto divulgado posteriormente, as entidades recomendaram que o currículo do ensino médio fosse organizado com base em “competências”, ressaltando, no entanto, que essa recomendação não partira de nenhum dos participantes dos seminários de discussão da BNCC. “São nove mil pessoas selecionadas nas 27 redes estaduais e nas 5,5 mil redes municipais de ensino, que são de fato as pessoas que estão executando as políticas educacionais no âmbito das redes de ensino, e nenhuma delas desejava aquilo”, pontua Cássio. Mesmo assim, o MEC acatou a recomendação das entidades. A terceira versão da BNCC da educação infantil e fundamental, apresentada em abril de 2017, foi organizada com base nas competências, assim como a versão para o ensino médio, um ano depois.

A decisão gerou críticas por parte de associações científicas que vinham acompanhando os debates. Em nota conjunta, a Anped e a Associação Brasileira de Currículos (ABdC) criticaram o caráter instrumental da noção de competências que foi integrada à BNCC. “A ênfase na aprendizagem para desenvolver competências e habilidades, sabemos, está articulada com as políticas que o Banco Mundial e outros organismos internacionais vêm desenvolvendo nos últimos tempos, e tem a ver com pensar a escola como se fosse uma empresa”, apontou a nota, complementando: “Não há preocupação com a formação integral do estudante, com o desenvolvimento omnilateral dessas novas gerações, ou com questões urgentes em nosso país como uma formação humana para o exercício da cidadania e dos direitos sociais. Pelo contrário: se trata de um desenvolvimento estritamente ligado à inserção produtiva das novas gerações e às competências necessárias a esta”.

A introdução das ‘competências’ na terceira versão da BNCC aprovada essa semana pelo CNE, segundo analistas críticos ao documento, é um dos principais indicativos do grau de influência que as teses empresariais têm hoje sobre sobres as políticas públicas de educação. “A base no fundo operacionaliza a lei da reforma do ensino médio, e abre a escola pública para que ela seja gradualmente privatizada, principalmente porque a lei e as diretrizes curriculares nacionais do ensino médio [aprovadas em novembro pelo CNE] regulamentam a educação à distância na educação básica, abrindo a escola para que os setores públicos possam adquirir pacotes de educação à distância produzidos por instituições privadas”, pontua César Callegari.

Fernando Cássio concorda, e completa que há um interesse político em orientar reformas educacionais de alcance nacional por parte do grande empresariado. “A pauta educacional é estratégica, assim como a área do trabalho e da Previdência, que foram as três reformas propostas pelo governo Temer. São áreas de grande interesse dos grupos que dominam o PIB brasileiro, que são os bancos e as megaempresas como a Ambev. É muito sintomático isso”, assinala o professor da UFABC.

Leia mais

A Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE) aprovou na quinta-feira (08/11) as novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, modificando a norma no sentido de alinhá-la à lei 13.415/17, da reforma (ou contrarreforma, para alguns setores críticos) do ensino médio e à proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Por 8 votos a 1, os conselheiros aprovaram o documento, que passou por uma consulta pública entre 9 e 29 de outubro. Nesse período inúmeras entidades do campo educacional, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e a Associação Brasileira de Currículo (ABdC), se manifestaram com críticas às propostas. Até mesmo o ex-conselheiro do CNE César Callegari - que em julho renunciou à presidência do órgão em protesto contra o que considerou interferência do governo no Conselho durante o processo de votação da BNCC do ensino médio - lamentou a aprovação das novas diretrizes, que segundo ele “precarizam ainda mais a educação pública” ao, por exemplo, “abrir caminho” para sua privatização. A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) também enviou ao CNE uma nota questionando, entre outros pontos, a ausência de audiências públicas para discussão do documento, o aprofundamento da fragmentação da educação com o alinhamento das diretrizes à “contrarreforma” do ensino médio e a supressão de alguns trechos importantes das diretrizes anteriores, como o que dispunha sobra a oferta pública e gratuita do ensino médio como dever do Estado. Nesta entrevista, a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Marise Ramos fala sobre algumas das críticas feitas pela Escola, analisa o que as novas diretrizes significam para a educação profissional e discute o significado das mudanças à luz da disputa que hoje se dá em torno de qual deve ser o papel do Estado no provimento da educação básica.
O sociólogo César Callegari renunciou, no início desta semana (2/7), à presidência da comissão que analisa a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Conselho Nacional de Educação (CNE). Em carta endereçada aos conselheiros do CNE, Callegari – que permanece como integrante do órgão até outubro deste ano – fez críticas à BNCC do Ensino Médio, apresentada pelo MEC ao Conselho em abril. Segundo ele, o documento do ensino médio contradiz o que foi definido na BNCC da Educação Infantil e Fundamental, homologada pelo CNE em dezembro de 2017, e é “radicalmente distinta” das versões iniciais. Para Callegari, a organização do documento, em que apenas as disciplinas de matemática e português aparecem como obrigatórias, com as demais diluídas em áreas do conhecimento, é um dos principais problemas. Ele reivindica, também, a revogação da Lei 13.415/2017, que aprovou a reforma do ensino médio. Segundo ele, representa um grave retrocesso, na medida em que autoriza que essa etapa de ensino seja ofertada na modalidade a distância, abre espaço para que recursos públicos sejam direcionados para a iniciativa privada e permite a contratação de professores sem formação específica para dar aulas na educação básica. Nesta entrevista, ele expõe suas críticas ao governo, fala sobre a pressão do MEC para acelerar a aprovação do documento pelo CNE e responde às críticas apresentadas por educadores e movimentos críticos à BNCC durante o processo de discussão da base no conselho.
Especialistas em educação apontam que a terceira versão do documento aprofunda a sintonia entre a Base Nacional Comum Curricular e as formulações defendidas por fundações e institutos empresariais que prestam serviços para a educação pública