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Educação para os próximos dez anos

Projeto de Plano Nacional de Educação que tramita no Congresso tem muitas divergências com as propostas elaboradas pela sociedade
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 15/03/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Quando o governo federal convocou a 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae), em 2009, as expectativas em geral eram boas. Afinal, o objetivo era que as propostas do encontro – precedido por etapas municipais e estaduais – servissem como subsídios para a construção do novo Plano Nacional de Educação (PNE), que deve orientar as ações em educação até 2020. E, se um plano instituído por lei vai dizer o que importa e o que precisa ser feito para a educação no país, nada mais desejável que ele seja baseado em um processo com ampla participação popular, como a Conae.

A Conferência foi realizada em 2010, com a cobertura da revista Poli. Muitos temas foram debatidos, conclusões foram tiradas, um grande documento final foi redigido e, em dezembro daquele ano, o governo enfim enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei que cria o PNE, com 20 metas específicas e uma série de estratégias para alcançá-las. E aí vieram surpresas: alguns pontos muito importantes do projeto estão em completa dissonância com as demandas e resoluções da Conae.

Isso ajuda a explicar as cerca de três mil propostas de emendas ao texto enviadas pela sociedade civil à Câmara dos Deputados, onde o projeto está tramitando até hoje. Entre as principais críticas estão os fatos de o projeto não fazer uma avaliação da situação atual; de não prever um monitoramento eficiente de seu cumprimento; e, principalmente, de o montante de recursos financeiros proposto não ser suficiente.

Financiamento: eterna preocupação

O financiamento é o ponto de divergência mais gritante. Na Conae, os recursos financeiros foram destaque, e definiu-se que até 2020 o Brasil precisaria conseguir investir no mínimo 10% de seu PIB em educação – sendo 7% até 2014. O projeto que o governo enviou ao Congresso muda isso, e estabelece que 7% do PIB devem ser o mínimo alcançado no fim da década.

Segundo Arlindo de Queiroz, diretor de programas da Secretaria Executiva Adjunta do Ministério da Educação (MEC), o percentual proposto dá conta das metas estabelecidas. “Temos um PIB crescente, o que ajuda. E teremos também um bônus demográfico, a população vai encolher. Haverá uma redução de indivíduos da ordem de quase seis milhões de estudantes na próxima década”, aponta.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, também tem feito pronunciamentos afirmando que este é um percentual exequível e suficiente para atender às metas do Plano, mas pesquisadores e militantes de movimentos pela educação discordam. O Ministério enviou ao Congresso uma nota explicativa apresentando os cálculos que levam aos 7%. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, por sua vez, divulgou a nota técnica ‘Por que 7% do PIB para a educação é pouco? – Cálculo dos investimentos adicionais para o novo PNE garantir um padrão mínimo de qualidade’, em que, baseada no próprio documento do MEC, analisa cada meta do PNE e conclui que os 7% não seriam suficientes para alcançá-la. Segundo o documento, o montante necessário seria mesmo o de 10% do PIB.

Considerando o PIB de 2010, a diferença entre 10% e 7% é de mais de R$ 100 bilhões. Como a Campanha e o MEC podem partir das mesmas metas e chegar a resultados tão distintos? A diferença entre as contas do governo e da campanha tem a ver com o padrão mínimo de qualidade a ser atingido.

Custo-aluno-qualidade: qual deve ser o padrão?

A Conae decidiu que se deveria calcular um valor mínimo para ser investido pelo poder público anualmente, por aluno, para se atingir um ensino de qualidade. Esse seria o valor a ser usado como principal referência para o financiamento da área. Na verdade, a ideia não é nova, e é inclusive uma determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996.

O PNE também apresenta a meta de estipular esse valor – o chamado custo-aluno-qualidade (CAQ) –, mas não diz até quando isso deve ser feito. O problema é que, de fato, já existe um CAQ inicial (o CAQi) estabelecido por uma resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2008, mas que ainda não foi homologado pelo MEC. O CAQi leva em conta itens como construção de escolas, compra de equipamentos e número de professores, com valores diferenciados para educação do campo, indígena e para alunos com necessidades especiais, por exemplo.

Em seus cálculos, a Campanha usou o CAQi, enquanto, de acordo com o dirigente da Campanha, Salomão Ximenes, o MEC adota o valor de aluno-ano atualmente praticado (que não é estabelecido de acordo com padrões de qualidade). Na avaliação de Ximenes, é importante inverter a lógica do financiamento. “Hoje, temos um recurso pré-estabelecido e, com ele, faz-se o que for possível. A lógica do CAQ é a inversa: primeiro, vê-se quanto é necessário”, diz.

Segundo Clélia Brandão, conselheira da Câmara de Educação Básica do CNE, a resolução do Conselho que estabelece o CAQi pode ser homologada ou recusada pelo Ministério, mediante uma justificativa. “Se houver algum problema, o MEC precisa elaborar uma nota técnica e devolver ao Conselho, para que ele reavalie o tema”, explica. Ela afirma que até hoje isso não foi feito. “Não sabemos quais são os nós que o MEC vê nesse parecer. Não temos nenhuma avaliação do MEC e nenhuma justificativa de por que ele ainda não foi homologado”, diz.

Comparações com outros países

Haddad tem dito também que os 7% seriam um valor razoável, já que muitos países desenvolvidos investem em educação entre 6% e 8% de seus PIBs. De acordo com Ximenes, aí está um outro problema, já que há pelo menos duas características que diferenciam o Brasil desses países. “Eles já democratizaram as oportunidades de acesso à escola há muito tempo. No Brasil, essa ainda é uma tarefa atual. É necessário um investimento mais forte agora, quando é ainda preciso construir escolas e universidades e contratar professores, por exemplo”, aponta, explicando a primeira característica.

A segunda tem a ver com o próprio referencial do PIB, que, segundo Ximenes, deve ser visto com cuidado. Isso porque muitos dos países que investem de 6% a 8% têm um PIB altíssimo para uma população em idade escolar não necessariamente tão grande.

Isso é o que demonstra o professor Nelson Cardoso do Amaral, da Universidade Federal de Goiás (UFG), no artigo ‘O novo PNE e o financiamento da educação no Brasil’. Segundo o estudo, o Brasil investe hoje cerca de 4% de seu PIB em educação, o que corresponde a US$ 959 anuais por aluno. O Yemen, por sua vez, investe quase 10% do seu PIB, mas isso significa menos de US$ 500 por aluno. Enquanto isso, os 2,9% do Uruguai correspondem a US$ 1.348 por aluno e, na Noruega, 7,2% do PIB significam US$ 15.578 por aluno.

Se o Brasil aplicar 7% de seu PIB em 2020, como propõe o projeto do governo, chegará a US$ 2.854 por aluno por ano – considerando o aumento do PIB e a diminuição da população previstos. É melhor do que hoje, sem dúvida, mas ainda muito abaixo de países como Portugal (5,5% do PIB e US$ 5.592), Coreia do Sul (4,6% do PIB e US$ 5.466), Canadá (5,2% do PIB e US$ 7.677), e Estados Unidos (5,3% do PIB e US$ 8.816). Mesmo com 10% do PIB, em 2020 o Brasil chegaria a um valor inferior ao destes países: cerca de US$ 4.080.

10% do PIB: essa meta é possível?

Ximenes afirma que um dos debates mais importantes diz respeito às fontes de receitas necessárias. De acordo com ele, há alguns caminhos. “Temos, por exemplo, os recursos do Fundo Social do Pré-Sal, a questão da revisão do modelo de partilha de royalties, a taxação do lucro líquido das empresas estatais e a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas. Estamos preparando uma nota técnica que descreva estas opções”, observa.

Uma questão levantada durante a Conae é a necessidade de se aprovar uma Lei de Responsabilidade Educacional, nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, para penalizar governos que não cumpram as metas estabelecidas em seus planos de educação, inclusive metas de financiamento. O projeto de lei 8.089/2010 foi enviado pelo governo ao Congresso com essa intenção, mas Ximenes o classifica como “limitado”. “Ele se resume a dizer que cabe à sociedade civil fazer uma ação coletiva promovida no judiciário, para defesa da educação. Isso já existe”, diz.

Planejar sem diagnosticar

Para Roberto Leher, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há um problema mais profundo que o do financiamento que deve ser levado em consideração: “O projeto não parte de um diagnóstico da situação. Sem isso, fica vago”, diz. Ele explica que, na legislação, há três grandes níveis para normatizar a educação: “Um capítulo na Constituição, com os princípios gerais; a LDB – que estabelece diretrizes, mas de fato não define bases materiais –; e o PNE, que deve ser o ordenamento mais operativo. O que mais importa nesse plano são as estratégias”, diz o professor.

Só que, de acordo com ele, essas estratégias são muito imprecisas. “Fala-se em ‘incentivar’, ‘apoiar’, ‘favorecer’, ‘fomentar’. Isso tudo é genérico. Na verdade, não existe nada muito determinativo”, critica. Ele diz que isso é visível inclusive na questão do financiamento. “Estabelece-se um percentual do PIB a ser investido, mas não temos nenhum mecanismo que explicite como esse percentual será alcançado”, critica.

Recursos públicos para o sistema privado

Uma série de estratégias do projeto cita que a ampliação de vagas e da jornada escolar será feita por meio de instituições privadas, desde a educação infantil até a superior. Para Leher, fica claro que “esse projeto é um revés no conceito de educação pública”.

Ele observa ainda que, no caso da educação profissional e tecnológica, praticamente todos os artigos que se referem à expansão da rede citam convênios com “entidades privadas de serviço social vinculadas ao sistema sindical”. “Trata-se do sistema patronal – o Sistema S –, que ganha uma dimensão jamais conhecida dentro das políticas educacionais. É um fortalecimento das parcerias público-privadas e, sobretudo, da atribuição da educação da classe trabalhadora ao sistema patronal”, ressalta o professor.

Valorização de profissionais

O projeto tem uma importante meta em relação à remuneração dos profissionais: diz que se deve aproximar o rendimento médio dos trabalhadores do magistério do rendimento de profissionais de outras categorias. Mas Ximenes tem críticas. “Não basta aproximar, mas sim, igualar. A média salarial hoje está em 60% da média dos demais profissionais”, avalia, completando que essa questão volta a tangenciar a necessidade de mais recursos. “Hoje ainda temos dificuldade de garantir a implementação do piso salarial [cerca de R$ 1.200] que ainda está longe de se igualar à media dos demais profissionais”, observa.

Essa também é a posição de Victória de Melo, coordenadora geral da subsede de Juiz de Fora do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE-MG). Os profissionais da educação no estado fizeram recentemente uma greve de 112 dias para que o governo reconhecesse o piso salarial da carreira. “Na verdade, não dá para ter valorização de profissionais sem aumentar muito os recursos investidos. Com o valor proposto pelo MEC, as metas de valorização vão ficar só na intenção”, avalia.

Controle social

Quem compara o atual projeto com o PNE anterior vê muitas semelhanças. A erradicação do analfabetismo, a ampliação da oferta e a implementação de planos de carreira para professores são exemplos disso. Isso significa que muitas das metas desse Plano não foram alcançadas. Como fazer para que este funcione melhor? A aprovação da Lei de Responsabilidade Educacional seria um grande passo, mas o controle social também deve ter um papel importante. E a forma como isso aparece no projeto é outra crítica que se tem feito ao projeto do PNE.

Ximenes avalia que a realização da Conae foi significativa para fortalecer o controle social, e que o projeto consolida a institucionalidade das Conferências Nacionais ao indicar que devem ser realizadas pelo menos duas durante a próxima década. Além disso, ele elogia a criação dos Fóruns Municipais, Estaduais e Nacional de Educação, que não serão normativos, como os conselhos, mas terão a função de avaliar o Plano e de organizar as Conferências.

Mas Leher tem algumas ressalvas. “O Fórum, que vai instituir as Conaes, é constituído por entidades selecionadas cuidadosamente pelo governo, priorizando entidades patronais e que se coloquem de alguma forma como alinhadas às políticas governamentais. Nessa perspectiva, não sou muito otimista quanto à possibilidade de a próxima Conae fazer um diagnóstico rigoroso de avaliação crítica dos desdobramentos”, opina.

Como pressionar por mudanças

A tramitação ainda está longe de terminar. Na Câmara há quase um ano, o projeto ainda precisa ser votado nessa Casa – o que passa por avaliar as quase três mil emendas – e, depois, segue para o Senado, onde ainda pode sofrer mudanças. Depois, vai para sanção presidencial. Por isso, ainda é possível fazer com que a Lei seja publicada mais de acordo com as demandas de militantes da área.

Ximenes explica que, para dar ‘gás’ a isso, foi criado o movimento ‘PNE pra valer’. “Trabalhamos na construção de emendas e de notas técnicas. E estamos fazendo o debate social, voltado aos estados e municípios”, diz.

Para Leher, é necessário haver um protagonismo a partir da base: escolas e sindicatos. “Estamos vivendo um extraordinário ciclo de greves em praticamente todos os estados, mas não conseguimos unificar isso. Claramente a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) não conseguiu, ou não desejou, se constituir num espaço capaz de fazer uma convocatória nacional. Isso seria importante”, avalia.