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'Sangue não é mercadoria'

Movimento de portadores de HIV/Aids foi fundamental para vitória contra a comercialização do sangue na Constituição de 1988, que agora a PEC do Plasma quer reverter
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 30/11/2023 14h14 - Atualizado em 30/11/2023 14h15
Da esquerda para a direita, Herbert de Souza (Betinho), Airamir Padilha e Laerte Vaz de Melo, no I Fórum Estadual do Sangue do Rio de Janeiro Foto: Acervo ENSP/Fiocruz

"Eles já brigaram [por isso] lá atrás. É a mesma propaganda dos anos 1980”. O comentário é de Laerte de Mello, cirurgião cardíaco que representou o Conselho Regional de Medicina do Rio de janeiro (Cremerj) nos debates da Assembleia Nacional Constituinte, quando os mesmos interesses que hoje estão expressos na PEC do Plasma foram derrotados pela primeira vez. Naquele momento, um movimento protagonizado pela sociedade civil e liderado, de certa forma, pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, conseguiu firmar no texto da Constituição a proibição de se fazer comércio envolvendo qualquer órgão do corpo humano, inclusive o sangue. Duas frases de efeito ficaram eternizadas como ferramentas de luta daquele tempo: ‘Sangue não é mercadoria’ e ‘Salve o sangue do povo brasileiro’, além da arte do cartunista Ziraldo, que se tornou o cartaz mais famoso da campanha.

Em meio a lutas por mudanças mais amplas na concepção e no modelo de organização da assistência à saúde, marcas do movimento da Reforma Sanitária que caracterizariam o capítulo da saúde na Constituição Cidadã, pode ser difícil entender como um debate aparentemente específico sobre o sangue ganhou tanta centralidade, tornando-se uma das pautas mais polarizadas na votação do texto final. É que a realidade concreta se impôs: o crescente número de pessoas contaminadas com o vírus HIV por meio de transfusões de sangue, num momento em que a Aids se tornava uma epidemia mundial, chamou atenção do país para um problema que, embora agravado naquele momento, não era propriamente novidade. Afinal, ainda que com menos visibilidade, mesmo antes da Aids eram frequentes os casos de contaminação por doenças como Chagas e Hepatite como resultado dos procedimentos que envolviam transfusão de sangue.

Foi quando assumiu a presidência do Cremerj, num contexto em que, segundo ele, o Conselho Federal de Medicina estava tomado pela ditadura e mesmo o conselho regional funcionava burocraticamente, que Laerte de Mello pode ver essa realidade de perto. Nas visitas que faziam aos hospitais e bancos de sangue, as comissões do Cremerj encontraram uma “situação catastrófica”, que envolvia, principalmente, a assistência à saúde mental, o atendimento à saúde da mulher e as questões relativas ao sangue. No centro da crise, estava todo uma rede de bancos de sangue privados, que compravam e vendiam sangue sem regulação estatal, vigilância sanitária e, portanto, sem quaisquer medidas de segurança. A partir do trauma das contaminações por HIV/Aids e da conquista do texto constitucional, esse cenário foi se modificando, com a construção de uma política voltada para a questão do sangue e o fortalecimento de uma hemorrede organizada a partir de serviços públicos. Nesse rearranjo, os bancos de sangue particulares continuaram a funcionar, com o papel complementar que a Constituição permitiu ao setor privado na saúde, embora agora submetidos às regras de vigilância coordenadas pelo Estado.

Num boletim da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) publicado logo após a vitória em relação ao texto da Constituição, Betinho identificou três grupos sociais que tinham interesse em manter a livre iniciativa do comércio de sangue no Brasil naquele momento: as multinacionais de hemoderivados, os bancos de sangue privados e “certos hemoterapeutas”. Apesar de terem se limitado ao que o boletim caracteriza como uma espécie de “lobby clandestino”, em que só o último grupo chegou a vocalizar “um certo ataque ao fim da comercialização” do sangue, o lado que eles representavam na correlação de forças se fez presente na votação do que viria a ser o parágrafo quarto do artigo 199 da Constituição: foram 313 votos contra a comercialização, 127 a favor e 37 abstenções. Em 2023, pelo menos dois desses grupos parecem mais à vontade para defender um recuo na conquista de 35 anos atrás: a Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS) tem sido a principal voz no debate público a favor da PEC e a Sociedade Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular, que protagonizou a defesa da comercialização também na Constituinte, foi uma das poucas entidades a emitir nota de apoio à medida atual.

"Eu queria fazer quase um apelo: que essas pessoas [parlamentares] associem seu nome a Ulysses Guimarães, a Sérgio Arouca, a Betinho"
Carlos Gadelha

Seja em termos numéricos ou históricos, não há qualquer semelhança possível entre a CCJ do Senado atual com a Constituinte do passado, mas, se serve de parâmetro de comparação sobre a correlação de forças, dos 27 presentes à seção em que o relatório da PEC do Plasma foi discutido, 15 votaram pela aprovação e 11 contra, sem abstenções. E apesar de muitas notas públicas em contrário, diferente dos anos 1980, praticamente não há movimento social nas ruas pelas pautas da saúde. “Eu acho que muitos parlamentares de bem acreditaram em fake news e falácias sobre a Hemobrás, que passou a incomodar os interesses econômicos da área. Por isso [eu queria fazer] quase um apelo: que essas pessoas associem seu nome a Ulysses Guimarães, a Sérgio Arouca, a Betinho e não aos banqueiros”, diz o secretário de Ciência, Tecnologia, e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha.

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