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Entrevista: 
Marcela Soares

“A legalização da terceirização irrestrita, permitida com a reforma trabalhista de 2017, favorece as possibilidades da expansão da escravidão contemporânea”

O número de resgates de trabalhadores em condição análoga à escravidão tem batido recordes nos últimos meses no Brasil. No primeiro trimestre de 2023, 918 pessoas foram retiradas de situações degradantes de trabalho. Para a pesquisadora Marcela Soares, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), esses números só tendem a crescer diante do aumento da terceirização provocado pela Reforma Trabalhista de 2017. A professora é autora do livro “Escravidão e dependência: opressões e superexploração da força de trabalho brasileira”, editado pela Lutas Anticapital e lançado neste ano. Nesta entrevista, ela comenta a prevalência dos resgates no meio rural e a importância das denúncias realizadas durante a ditadura empresarial-militar para a formulação da legislação de proteção aos trabalhadores. Marcela também traça paralelos entre a escravidão contemporânea e o aumento de ocupações mediadas por plataformas de transporte, entrega e produção de conteúdo, que negam ter vínculos trabalhistas com esses profissionais.
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 26/07/2023 10h07 - Atualizado em 26/07/2023 10h19

Quando se fala em escravidão contemporânea, imagina-se que essa situação aconteça mais recorrentemente no meio rural. Podemos dizer que isso se mantém? Quais as transformações que estamos vivendo?
O imaginário está no âmbito rural e isso não é sem sentido, porque, majoritariamente, as pessoas resgatadas estão em áreas rurais. Apenas no ano de 2014, o resgate de trabalhadores urbanos superou o número de resgates no campo. Naquele ano, o recorde foi na construção civil, na época dos megaeventos [Copa do Mundo e Olimpíadas]. Esse imaginário está conectado à história, inclusive, do assalariamento brasileiro. Com a criação da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], em 1943, somente os trabalhadores urbanos passaram a ter acesso aos direitos laborais. Aqueles que atuavam na zona rural só foram ter direitos trabalhistas na década de 1960, quase 20 anos depois, com o Estatuto do Trabalhador Rural. E, mais especificamente, com a Constituição de 1988, que estabelece garantias dos direitos fundamentais a todos os trabalhadores. Além da cisão do assalariamento entre área urbana e rural, existe o pressuposto de que os trabalhadores rurais teriam uma dinâmica de trabalho diferenciada e estariam acostumados a trabalhos mais duros, jornadas exaustivas e condições degradantes. Então, seria um erro tentar equiparar as condições urbanas e rurais. Esses pressupostos estão em relatos do Judiciário, inclusive de juízes do trabalho, deputados e empresários que acham um absurdo tentarmos equalizar esses direitos fundamentais.

Sobre as mudanças, temos uma expansão do número de pessoas resgatadas nas zonas urbanas, mas que não se sobrepõem aos resgates no âmbito rural. Nas cidades, essas operações se concentram na construção civil e, mais recentemente, temos visto operações relativas ao trabalho doméstico, o que aparenta ser um grande foco da escravidão contemporânea. Mas, antes da constatação do trabalho doméstico, vemos muitos casos nas confecções de roupas, justamente porque já havia uma terceirização ilegal da atividade em diversas cadeias produtivas. Também há colegas pesquisando esses casos no setor marítimo, não só em estaleiros, como também em cruzeiros.

No caso dos trabalhadores escravizados nas vinícolas de Bento Gonçalves (RS), estamos falando de empresas premiadas como ótimos lugares para se trabalhar. Qual a importância da existência do discurso de responsabilidade social e ambiental?
Minha pesquisa de mestrado, e isso já faz um tempo [2006-2008], foi justamente sobre isso. Em 2005, foi lançado o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e houve um pacto, encabeçado pelo Instituto Ethos de Responsabilidade Social, com cerca de 90 empresas signatárias, sendo que nove não cumpriram com o plano e foram autuadas. Esse contexto me trouxe a necessidade de estudar a literatura empresarial para entender o que é essa responsabilidade social e ambiental. Entendi que as empresas precisam ter esses selos de legitimação social, mas, na pesquisa feita na época, identifiquei que funciona mais como uma cortina de fumaça para ocultar uma série de irregularidades que existem nas cadeias produtivas dessas corporações. Na verdade, esse discurso serve para legitimar uma série de elementos, desde colocar os trabalhadores das próprias empresas como voluntários em ações sociais, o que faz com que deixem de lado um pouco o sindicalismo e a militância e vistam a camisa da empresa. Também serve para garantir uma imagem social para a comunidade local, o que pode ajudar a abafar situações negativas.

E o selo não pode ser um fator de cobrança por parte do governo e da sociedade civil?
Sim, é que são muitos lados negativos e de mistificação. Por outro lado, é fundamental que se tenha essa cobrança para que as empresas cumpram seus deveres de garantir direitos. No entanto, a gente tem visto os selos operarem com mais frequência como cortinas de fumaça. Para garantir que essas empresas cumpram suas responsabilidades, por exemplo, no quesito trabalhista, precisamos aumentar o corpo técnico operacional de auditores fiscais em âmbito nacional, que está totalmente deficitário. Temos um déficit de 45% de auditores fiscais no país.

Em 2023, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) celebrou pela primeira vez o dia internacional da segurança e saúde do trabalho. Em outra iniciativa de mais longa data, a organização pede aos países que implementem políticas de orientação do trabalho decente. Qual é a importância dessas iniciativas?
Elas são fundamentais. Uma pesquisa recente da OIT junto à OMS [Organização Mundial da Saúde] identificou que trabalhadores com jornadas de trabalho superiores a 55 horas semanais eram os mais prejudicados em relação a problemas cardíacos e vasculares e mais propensos à morte, devido às jornadas extenuantes. Então, essa preocupação é fundamental para a garantia dos Direitos Humanos e para frear a necessidade capitalista de aumentar a taxa de exploração, mas, temos que ver quais são as alternativas apresentadas. No meu livro, apresento uma crítica à ideia de ´trabalho decente´ no lugar de ´trabalho digno´. A documentação internacional de trabalho decente que, inclusive, influenciou a nossa política de geração de emprego e renda desde 2005, incentiva o empreendedorismo. O empreendedorismo pode ser uma solução imediata, mas ele não garante a dignidade para a classe trabalhadora. Não garante a proteção social. A maior parte dessas pessoas, dos microempreendedores individuais, está endividada e, por sua vez, não consegue ter acesso a auxílio-doença, auxílio maternidade. Sem conseguir pagar a sua proteção social, eles não conseguem ter acesso a esses direitos. Então, o trabalho decente traz essas alternativas ao desemprego, à escravização, mas tem demonstrado, ao longo desses últimos 20 anos, a mistificação da precarização do trabalho e da proteção social.

E o que é a escravidão contemporânea?
A escravidão contemporânea, pela letra de lei, consta no Artigo 149 do Código Penal brasileiro [vigente desde 1940]. Antes, essa lei só abordava a Convenção 29 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] que trata de trabalho forçado. A partir de 2003, com a promulgação da Lei 10.803 [que altera o Artigo 149 do Código Penal], ele ganha uma caracterização clara da escravidão contemporânea. A condição análoga à escravidão deve ser identificada por quatro situações de forma independente: jornada exaustiva, condições degradantes, servidão por dívida e trabalho forçado. O Brasil possui uma das legislações mais avançadas do mundo em relação à escravidão contemporânea. E por que no Brasil a gente caracteriza dessa forma? Porque diversos estudiosos e militantes identificam que nem na escravidão imperial, colonial, os escravizados tinham cerceamento total de sua liberdade. A escravidão tem uma característica muito clara no perfil dessas pessoas. A maioria é migrante, seja nacional ou internacional, por isso, vemos relação entre a escravidão e o tráfico de pessoas ou o contrabando de imigrantes.

O avanço da legislação está amparado nas pesquisas e mobilizações das décadas de 1970 e 1980. Os lutadores emblemáticos desse tema são Dom Pedro Casaldáliga e o padre e professor Ricardo Rezende Figueira, que denunciavam os casos de escravidão no sul e sudeste do Pará, na chamada Amazônia legal, no período da ditadura empresarial-militar. Foi nesse período que ganhou visibilidade a permanência da escravidão ilegal. Existiam denúncias anteriores, claro, mas foi nesse período que elas ganharam visibilidade, inclusive internacional. O que a gente analisa é que a ditadura promoveu a expropriação de povos indígenas e ribeirinhos e retirou os meios de vida dessas pessoas sob o lema de ocupar para não ceder ao suposto comunismo que atingia o Brasil. Com isso, concedeu incentivos fiscais às grandes corporações nacionais e internacionais para ocuparem aquelas terras. E é partir dessas denúncias que a servidão por dívida será caracterizada como uma das tipificações da escravidão contemporânea na legislação.

Em paralelo a isso, nessa mesma época, também se identificava as condições degradantes como ausência de banheiro, de cozinha, de alimentação. Apesar de já existir alta tecnologia, ainda que importada, para desenvolvimento do gado e as melhores rações para os animais, a comida servida aos trabalhadores era estragada. Isso é uma das características das condições degradantes. Além disso, eles tinham jornadas exaustivas que excediam as 44 horas regulamentadas pela CLT. E foi a partir desse movimento de denúncias que se constatou que a maioria dessas pessoas vinham do Nordeste. Isso tem correlação com o desenvolvimento regional desigual do nosso país, em que as regiões Norte e Nordeste foram as mais prejudicadas em termos do acesso aos direitos trabalhistas. Então, eu caracterizo a escravidão contemporânea como uma ressignificação de formas híbridas de exploração da força de trabalho, ou seja, que carregam elementos tanto transitórios da passagem da escravidão legal ao assalariamento como também carregam elementos muito característicos da escravidão como a violência, a forma de submissão e dominação que essas pessoas passam. E ela também é influenciada pelas transformações atuais da precarização do trabalho. Desde os anos 1990, observamos uma grande ofensiva nas transformações, na chamada reestruturação produtiva, que desencadeia a precarização por meio da terceirização. Então, com a Reforma Trabalhista de 2017, houve a legalização de práticas ilegais que já existiam, como o negociado com empregador se sobrepor à lei e a terceirização para a atividade fim. A terceirização irrestrita é algo terrível e que tem corroborado com aumento da escravidão contemporânea. E por que a gente acha que tem corroborado? Porque mesmo com a diminuição dos recursos para a fiscalização da escravidão contemporânea, houve um aumento de 300%, de 2017 a 2022, de pessoas resgatadas, de acordo com dados da auditoria fiscal do Ministério do Trabalho. Além disso, levantamentos também mostram que, de 2010 a 2014, a terceirização correspondia a aproximadamente 90% das pessoas resgatadas nos dez maiores flagrantes. A legalização da terceirização irrestrita, permitida com a Reforma Trabalhista de 2017, favorece as possibilidades da expansão da escravidão contemporânea.

Algumas reportagens têm mostrado que os trabalhadores por aplicativo não querem deixar a modalidade e não querem virar CLT. Os trabalhadores estão reivindicando menos direitos ou há novas configurações trabalhistas? O que acontece?
O que acontece é que existe muita diferença entre as modalidades de entregadores. Eu tenho feito uma pesquisa com entregadores, inclusive, nas regiões centrais de Niterói [RJ] e da cidade do Rio de Janeiro. Vemos diferenças entre aqueles que possuem moto e conseguem uma melhor remuneração e entre os ciclistas, que têm uma reivindicação maior por direitos e reconhecimento da proteção social. Não todos, certo? Ainda estamos fazendo a pesquisa, mas já observamos essa diferença. E o que que está acontecendo? Em um imaginário mais imediato, parece que não há vantagem de ter CLT. No filme “Estou me guardando para quando o Carnaval chegar” [que trata da vida dos trabalhadores da indústria têxtil no interior de Pernambuco] há uma comparação entre gerações. Nela, os mais velhos falam: “Olha, a gente tem uma aparência de liberdade no trabalho. Mas eu tenho saudades de quando eu tinha carteira assinada, porque se eu adoecesse, tinha meu salário assegurado e eu poderia me aposentar”.

E apesar do discurso dos entregadores de “eu posso fazer meu horário”, muitos têm a clareza do controle que essas plataformas exercem sobre as suas vidas, porque esses aplicativos trabalham com o sistema de ranqueamento, estimulando a competitividade para fomentar essa disponibilidade quase total ao aplicativo, nublando o tempo de descanso e o tempo de espera. No entanto, o tempo de descanso dessas pessoas é preciso ser considerado entre muitas aspas, porque é feito sentado no meio-fio sem condições mínimas, sendo que essas pessoas têm um vínculo empregatício com essas corporações, embora elas afirmem que são apenas intermediadoras.

Qual a relação entre “plataformização” e escravidão contemporânea?
Ao estudar os trabalhadores do setor de delivery, observamos a existência das condições degradantes, ainda que não sejam comparáveis às condições do trabalhador rural. Os trabalhadores por aplicativo não possuem acesso, em sua maioria, a banheiro, água potável, inclusive eles evitam beber água para não terem que ir ao banheiro ou para darem conta das demandas. Assim, acabam tendo problemas circulatórios, de coluna e infecção urinária. Além disso, eles têm uma jornada prolongada, então, a maioria trabalha acima de 12 horas por dia. Isso prejudica a sua saúde física e psíquica. Muitos deles estão sofrendo com transtorno de ansiedade. Então, existe aí uma correlação muito forte com as características da escravidão contemporânea. E há um perfil similar. Tanto em âmbito nacional quanto no âmbito local da nossa pesquisa, 80% são de pessoas negras. Um perfil bem semelhante das pessoas resgatadas da escravidão contemporânea em âmbito nacional. Eu tenho feito um paralelo com os escravizados de ganho porque, frequentemente, você pode entregar de tudo, da mesma forma que os escravizados de ganho. Aqui é preciso voltar no tempo. Essa modalidade [escravizados de ganho] nasceu a partir de 1850, em um período chamado escravismo tardio, em que ocorreram formas transitórias de exploração da força de trabalho, poucas décadas antes da Abolição ser promulgada, quando os escravizados de ganho assumem tarefas pelos quais são remunerados e, em alguns casos, conseguem pagar sua alforria. Há diversas ocupações, mas eu faço a correlação com os carregadores, que transportavam desde cadáveres a móveis e pessoas. Essa correlação que eu faço com os escravizados de ganho é justamente porque em alguns aplicativos é possível pedir qualquer coisa para ser entregue, em que é disponibilizado a opção “Peça um favor”. No período da pandemia surgiu uma série de denúncias e outras mais recentes, de como essas pessoas são humilhadas em seu cotidiano laboral e, na nossa pesquisa, relatam racismo, constrangimento verbal e físico. Então, observamos essa correlação histórica da racialização da nossa força de trabalho, em que os trabalhos mais precários, pior remunerados, são ocupados majoritariamente por pessoas negras. No caso dos entregadores, muitos convivem com essa jornada extenuante, essa condição degradante, e alguns vão ter, inclusive, a servidão por dívida. Isso acontece porque muitos já começam trabalhando devendo ao aplicativo ao comprarem a bag, a bolsa que eles têm que carregar as encomendas, além disso, eles têm que pagar o serviço de telefone e o pacote mensal de aluguel das bicicletas. A ideia do empreendedorismo permite o repasse dos custos das empresas para os trabalhadores. Isso também acontece em diversos setores, como com as costureiras, que trabalham de suas casas com suas próprias máquinas de costura. Enfim, esse repasse não é algo novo. Em nossos cálculos, os custos com deslocamento, bicicleta ou com moto financiada, combustível e alimentação representam uma média de 40% sobre a remuneração. A pessoa acredita que trabalhando mais, de domingo a domingo, ela consegue ter uma remuneração melhor do que se ela tivesse a carteira assinada. Então, são esses elementos que perpassam essa suposta liberdade.

A “plataformização” está restrita a posições menos especializadas de trabalho?
Não, de forma alguma. Inclusive é possível fazer uma diferenciação da “uberização” com a “plataformização”. A “uberização” vai estar mais conectada ao próprio aplicativo que dá nome ao termo, dos serviços que são disponibilizados e a forma de controle que a Uber tem, que inaugura essa forma de exploração da força de trabalho, em que o serviço de locomoção se torna uma mercadoria, e o controle que os algoritmos possuem garantem a gestão dessa força de trabalho. A “plataformização” está em um escopo mais amplo e abarca não apenas uma força de trabalho mais braçal, mas também plataformas que produzem o chamado “microtrabalho”, que terceiriza, por exemplo, serviços de mídias sociais para grandes empresas para aperfeiçoar a inteligência artificial. Eles são considerados trabalhadores fantasmas, porque estão controlando e aperfeiçoando o conteúdo das mídias sociais ou de sites de empresas para melhorar as páginas e os aplicativos. O “microtrabalho” é feito por pessoas de maior ou menor especialização que, das suas próprias casas, estão aperfeiçoando plataformas. Vou dar um exemplo. Quando acessamos um site e precisamos provar que não somos um robô, identificando objetos, há muitas pessoas trabalhando para esse aperfeiçoamento, outras retiram conteúdo nocivo, pornografia, conteúdo de ódio. Tudo isso é feito por trabalhadores. Outros trabalhadores, majoritariamente mulheres, vão operar com engajamento das mídias sociais, as chamadas “fazendas de clique” e devem curtir e compartilhar conteúdo de marcas, gerenciando mais de 300 perfis individualmente. Além disso, a gente vê a “plataformização” de outras profissões, como inclusive os jornalistas, designers, fotógrafos. Sabemos que nessas plataformas de conteúdo, para uma maior monetização, você tem que produzir de forma intensa diariamente. A “plataformização” é diversa e heterogênea, mas a característica central desse processo é o aumento da produtividade, a intensificação do trabalho e, consequentemente, a colocação da maior parte da classe trabalhadora em jornada exaustiva. É a impossibilidade de as pessoas terem um descanso intra e interjornada, e de ter, cada vez mais, a sensação da inexistência de uma barreira entre tempo de vida e tempo de trabalho.

Diante do aumento do trabalho informal, a economia solidária tem sido apontada como uma saída para garantia de melhores condições de trabalho. O que você acha desse caminho?
As experiências de economia solidária são muito diversas. Há experiências muito louváveis, que permitiram aos trabalhadores terem o controle em um modelo de autogestão de empresas e de fábricas que iriam decretar falência. Por outro lado, vimos, com o fomento dessa política em outros governos do PT [Partido dos Trabalhadores], que essa não era a regra. Na verdade, apesar dessa tentativa de garantir a autonomia, o resultado da gestão de todo o processo de produção por parte dos trabalhadores é muito heterogêneo. E pesquisas mostram que, muitas vezes, essas experiências não garantiram salários dignos, pensando no valor da cesta básica, da habitação. A gente sabe que a média da remuneração é de R$ 2.500, muito aquém dos R$ 6.500 previstos como salário-mínimo necessário pelo Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos]. Claro que temos que pensar em possibilidades, tanto para as pessoas resgatadas da escravidão, quanto de acesso a direitos dos que estão nesse processo de “plataformização”. Precisamos garantir a proteção social para essas pessoas, e não fomentar a existência de uma figura intermediária, como se propõe em diversos projetos de lei, seja o trabalho sob demanda da empresa ou microempreendedor individual (MEI). A economia solidária é crucial, uma alternativa que deve ser considerada, mas ela deve ter como horizonte a garantia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, eu tenho clareza que no capitalismo a garantia de direitos só é alcançada por meio de muita luta das classes trabalhadoras. Claro, se temos um governo preocupado em garantir esses direitos, isso é um diferencial. Passamos, nos últimos anos, por uma grande ofensiva das expressões contemporâneas do fascismo brasileiro que trouxeram esses retrocessos sociais. Então, temos a tarefa tanto de reconstruir o nosso país quanto de buscar mais direitos para a classe trabalhadora. Não queremos apenas a sobrevivência, queremos que todas as pessoas tenham acesso aos direitos fundamentais e que possam viver dignamente.

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No Brasil, país da América que recebeu o maior número de africanos escravizados, a escravidão durou mais de 300 anos e só foi encerrada em 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Teoricamente. Na última semana, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou que, na maior ação conjunta no país com a finalidade de combater o trabalho análogo ao de escravo e o tráfico de pessoas*, 337 trabalhadores foram resgatados; desses, 149 eram ainda vítimas de tráfico de pessoas. Dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), subordinada ao Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), apontam que, só em 2021, 1.959 pessoas haviam sido resgatadas no Brasil, maior número nos últimos cinco anos, mais que o dobro registrado em 2020; enquanto só até maio desde ano, 500 vítimas haviam sido libertadas. O trabalho análogo ao de escravo viola os direitos humanos e atenta contra a dignidade de homens e mulheres. Pessoas que, em busca de oportunidades, se veem presas a um ciclo de exploração em que apenas a denúncia pode libertá-las. Nesta entrevista ao Portal EPSJV, a procuradora do Trabalho e coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), do Ministério Público do Trabalho (MPT), Lyz Sobral Cardoso, fala sobre a necessidade de fiscalização e os caminhos a serem percorridos até que essas condições de trabalho degradantes, entre outras violências, sejam, finalmente, erradicadas.
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