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Entrevista: 
Getúlio Marques

No Brasil tem muitos Brasis

Os dois primeiros governos do presidente Luíz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010, foram marcados por um forte investimento em Educação Profissional. Naquele período, não só foi criada a Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT), que agora completa 15 anos, como o número dessas instituições se multiplicou. De lá para cá, muita coisa mudou e o retrato que os dados mostram da Educação Profissional brasileira neste momento não é dos mais animadores. A oferta de matrículas de cursos técnicos integrados estagnou e tampouco houve o fortalecimento desse segmento na rede pública. À frente da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) do Ministério da Educação, com a responsabilidade de comandar a reversão desse quadro, está agora Getúlio Marques Ferreira, professor aposentado e ex-gestor do atual Instituto Federal do Rio Grande do Norte, que também foi secretário de educação do estado. Nesta entrevista, ele anuncia a proposta de novas iniciativas de fortalecimento e expansão da Rede Federal, tomada como o modelo a ser perseguido, reconhece os méritos do Pronatec, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, mas aponta necessidade de mudanças no seu rumo, sugere a repactuação das metas do PNE em relação à Educação Profissional e defende o que caracteriza como um caráter público do Sistema S.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 24/10/2023 11h14 - Atualizado em 07/11/2023 16h17
Foto: Luís Fortes/MEC

Eu queria começar pedindo um balanço da realidade que a sua gestão encontrou. Um dos indicadores do estado da Educação profissional e Tecnológica (EPT) no Brasil hoje é a estagnação das matrículas de cursos técnicos. Os dados de acompanhamento do PNE mostram que cerca de 40% da meta de ampliação foi cumprida e tampouco se cumpriu a determinação de que isso deveria se dar em grande parte na rede pública. Qual a sua análise sobre a situação da EPT no Brasil hoje?

Nós encontramos uma desestruturação não só na educação profissional tecnológica, como da educação em geral do país. Não havia um direcionamento. Essa estagnação de matrículas é real, não havia mais fomento, expansão, não havia mais a recomposição inclusive de quadros, porque durante esses seis anos muitos se aposentaram ou de alguma forma deixaram as nossas redes, principalmente Rede federal. E quando se fala do Ensino Médio como um todo nas redes estaduais, houve falta de apoio aos estados e falta de direcionamento e centralidade política pelo MEC. Essa falta de orientação nas políticas pelo Ministério da Educação, que nós estamos tentando retomar, é que vai fazer a mudança para buscarmos o cumprimento do Plano Nacional de Educação, já que estava distante de atingir as suas metas.

O fato de não se ter cumprido as metas de Educação Profissional no PNE é o maior problema? Esse deve ser o indicador principal do estado desse segmento no Brasil hoje?

Eu creio que esse é o que vai nos orientar. Eu não posso nem fazer uma avaliação se é o mais ou menos, mas o que nos orienta é o PNE, que é a legislação. Claro que nós vamos precisar revisar, até porque nesse período, o Plano Nacional não foi cumprido em diversas das suas metas e nós temos que fazer uma repactuação. Mas é uma das questões que mais nos preocupa, porque no mundo todo os países têm dado ênfase à importância da Educação Profissional para quem faz o Ensino Médio e no Brasil nós estamos muito distantes não só das metas do Plano Nacional da Educação, como das metas da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Então, nós vamos persegui-las, inclusive com a perspectiva de termos nova discussão [na construção de] uma Política Nacional de EPT e na Conferência Nacional de Educação. Tudo isso vai nos fazer buscar algo que seja factível.

O curso de Educação Profissional de nível médio e técnico é o que nós mais queremos, mas não é por isso que vamos abandonar essa população que não tem tempo suficiente para estudar

O PNE que se encerra este ano existe desde 2014, quando ainda estava em pleno vigor, por exemplo, o Pronatec, que os dados mostram que propiciou um aumento muito maior de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) do que técnicos. Eu queria que o sr. comentasse esses dados e explicasse como a sua gestão vê o modelo do Pronatec e as prioridades do programa, pensando tanto no passado como no futuro.

O Pronatec teve uma importância muito grande na Educação Profissional, porque foi dali que se criou uma legislação que permite que nós façamos com mais facilidade todas aquelas formações obrigatórias, inclusive as Formações Iniciais e Continuadas, para quem não tem nada. Eu sei que há uma crítica relevante ao fato de se trabalhar um pouco mais com o FIC, que é uma qualificação, e menos com Educação Profissional [de nível técnico]. Mas aqui no Brasil, como todos vocês sabem, existe um contingente muito grande de pessoas que não teria como já entrar diretamente num curso de Educação Profissional. O curso de Educação Profissional de nível médio e técnico é o que nós mais queremos, mas não é por isso que vamos abandonar essa população que não tem tempo suficiente para estudar. Até porque a maior parte de quem foi atendido pelo Pronatec foram jovens e adultos, muitos deles empregados ou não, mas com subempregos. No Brasil não temos as condições da escola em tempo integral ou em tempo parcial para esses alunos se formarem nos cursos técnicos. Esse é um problema que a gente vai continuar enfrentando. Há grandes mecânicos de automóveis que não têm formação técnica, não têm, às vezes, nem o Ensino Fundamental. Para esses, a gente vai ter que ainda continuar com o Pronatec, com formação, mas sempre buscando fazer por etapas, o que nós chamamos aqui de itinerários, que possam, ao final, dar a esse trabalhador um diploma de técnico, mais avançado, com elevação de escolaridade. Então, na parte de formação, o Pronatec precisa resgatar isso: que mesmo os programas de Formação Inicial e Continuada possibilitem que as pessoas façam os diversos pedacinhos, sigam o itinerário e, ao final, possam ter um diploma, mas também pensando na elevação de escolaridade. Logicamente, nem todos vão poder chegar a esse nível, é difícil num país como o nosso, que tem muitas necessidades.

O Pronatec cumpriu a sua parte, em parte, mas a gente vai ter que agora reconstruir, conversando com todos

A nova lei que criar a Política Nacional vai nos orientar e nós já estamos modulando isso. Vamos priorizar aqueles que já são grandes formadores, como as redes estaduais, a Rede Federal e o próprio Sistema Nacional de Aprendizagem [Sistema S], que são três entes que a gente tem segurança de que fazem a Educação Profissional com o fim na formação, na aprendizagem dos trabalhadores e com o interesse público. Aos privados, por mais que sejam importantes, e que se tenha que dar uma atenção também para eles, o que a gente pensa é provavelmente em dar um pouco mais de opções na área da qualificação enquanto não se consegue um bom sistema de avaliação para que possamos entender quem oferta Educação Profissional na qualidade que a gente preconiza e a lei permite. Então, por enquanto, nós estamos com essa avaliação de que o Pronatec cumpriu a sua parte, em parte, mas a gente vai ter que agora reconstruir, conversando com todos. Eu acho que a partir de todas essas conferências e as discussões que teremos pela frente, para o novo Plano Nacional [de Educação], é que nós vamos ter um novo caminho, apesar de nós na Setec já termos uma ideia de por onde fazer esse direcionamento. Formação técnica de nível médio deve ser mais envolvida com os estados, municípios e sistema nacional. E trazemos também o sistema privado, mas com algum indicador de qualidade que a gente possa fazer a partir de um sistema de avaliação [da instituições formadoras de Educação Profissional] que também já está se tornando obrigatório pela lei.

O sr. falou de priorizar as redes que são consolidados e citou as estaduais, a Rede Federal e falou do Sistema Nacional de Aprendizagem. Só para não haver dúvida, o sr. está se referindo ao Sistema S?

Sim, o Sistema S. desde há muito tempo e nos nossos estudos, nós não consideramos o Sistema Nacional de Aprendizagem como privado, até porque são recursos públicos que fazem o sistema S caminhar.

O sr. se referiu a um problema de segurança jurídica para a atuação dos professores, que o Pronatec resolveria. Eu queria entender melhor isso.

Hoje, por exemplo tem recursos para qualificação no [Ministério do] turismo, no desenvolvimento, Ministério da saúde, Minas e Energias, etc. Como cada um tem normalmente o seu programa, sua diretoria de qualificação, nós vamos tentar unificar para que essas oportunidades sejam mais concretas na prática. O Pronatec permite que qualquer professor ou mesmo aquele que não é professor e trabalha na iniciativa privada mas tem o domínio de uma disciplina possa receber algum recurso por aquele trabalho dentro do Pronatec. Em outras áreas que não utilizam a legislação do Pronatec, há algumas vedações. O Pronatec ofereceria esse grande guarda-chuva para que a gente pudesse fazer isso em qualquer área. Talvez o grande legado do Pronatec seja isso, independentemente daquilo que a gente vai considerar que não é preciso repetir e não concorde que seja feito novamente. Esta reanálise nós vamos fazer.

O MEC tem um prazo de dois anos a partir da Lei 14.645/23 para construir a Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica. A Conferência Nacional de Educação Extraordinária, que vai acontecer agora em janeiro de 2024, tem como objetivo construir o novo PNE, mas ela vai ser um primeiro passo para começar a discutir essa Política? O MEC vai levar alguma proposta para o debate?

Sim. Eu acho que os debates já estarão alinhados. Nós já estamos fazendo [debates] antecipadamente, internamente, com os grupos internos, e chamando os parceiros em reuniões simples, pelo menos a cada mês. [A ideia é que] a gente tenha essa conversa com os parceiros para quando chegarmos aos debates das conferências já termos um mínimo de convergência. Eu acho que um aprendizado que a gente tem nesses últimos anos é que a gente não leve os debates apenas para o momento das conferências, a gente consiga fazer um debate prévio para chegarmos com convergências, [de modo] que só os pontos mais polêmicos [fiquem para a conferência] para que a gente tenha mais êxito no resultado final.

Quem são os parceiros que já estão nesse momento sendo chamados a conversar?

Especialmente o Sistema S e o Consed [Conselho Nacional dos Secretários de Educação], com os estados. Eles estão aos poucos sendo convidados para todas as nossas atividades, feiras, encontros.

Queria que o sr. fizesse uma avaliação geral da lei 14.645/23. Um aspecto positivo destacado por especialistas é o incentivo a uma ação conjunta da Rede EPCT com as redes estaduais, que é uma demanda antiga do campo, mas há também críticas como ao fato de se propor o crescimento de oferta sem diferenciar público e privado, na contramão do PNE, e ao aproveitamento da aprendizagem profissional como carga horária no Ensino Médio. O sr. pode comentar esses e outros pontos da lei?

Essa preocupação que você diz que é antiga, dessa articulação da Rede Federal com as redes estaduais, está presente fortemente, inclusive, na lei que cria os Institutos Federais. Essa é uma das nossas obrigações e a gente, fazendo uma avaliação, vê que ainda não deu a liga que nós gostaríamos. Não é para [os Institutos Federais] apoiarem os estados, é para que, juntos, façam a Educação Profissional mais forte em cada um dos estados. Há escolas estaduais muito boas e, como a maior parte dos Institutos tem excelência, nós poderíamos juntar tudo isso. Sobre as questões colocadas como aparentemente polêmicas [na lei 14.645], como essa questão da diferenciação entre uma e outra [instituição, pública ou privada], a gente vai precisar ter essa discussão mais aprofundada. E qual é o papel do privado nisso? Primeiro, nós entendemos que nem sempre conseguimos atender a demanda da população como um todo. Não dá num país que é capitalista. A gente segue um rumo daquilo que gostaríamos: o Estado mais presente nas questões sociais, na saúde, na educação... Mas não dá, como num passe de mágica. Imagina você agora dizer que não existem mais hospitais privados! Em alguns lugares, se você não tem privado também não funciona. Claro que a ênfase vai ser no ensino público e, quando eu falo público, eu jogo também o Sistema S porque ele tem uma responsabilidade social, tem recursos públicos investidos no Sistema Nacional de Aprendizagem. Então, nós não queremos descartar. Reconheço que é natural [essa crítica], principalmente na Academia. Eu mesmo não sei se faço parte da Academia - às vezes penso que faço, as vezes penso que não -, mas também tenho essa lógica de que deveria ser tudo público. Só que não temos essa condição. E não vamos deixar de apoiar [o privado], na medida do possível, com a prioridade sempre para o sistema público, porque no Brasil tem muitos Brasis.

Sobre a parte da aprendizagem [profissional], tem uma certa polêmica também entre nós, acadêmicos ou não. Mas eu acho importante que isso seja incentivado no Brasil, inclusive a própria lei da aprendizagem poderia permitir, principalmente para aqueles alunos que são mais vulneráveis, que na hora em que eles estão no sistema de aprendizagem isso possa ser aproveitado nos seus estudos. Não estou dizendo que vai ser uma decisão, até porque a decisão final vai ser da discussão que nós tivermos, mas eu acredito nisso como uma questão importante, principalmente para os alunos vulneráveis. E às vezes nós queremos tratar todos os alunos na mesma régua, na mesma forma. O aluno vulnerável às vezes é o único salário, é quase arrimo de família. Então, o tempo de estudo dele é diferente do tempo de estudo de um mais abastado, ele sempre tem um tempo que passa no trabalho. Portanto, nada mais justo que esse trabalho tenha uma boa relação com a Educação Profissional. O que nós precisamos construir são instrumentos que deem essa segurança. É um pouco a mesma questão da Educação a Distância: as pessoas se orgulham quando têm um título de Harvard a distância, mas quando a gente fala de Educação a Distância aqui, não pode. Eu acho que pode e que a gente precisa ter um grande sistema de monitoramento que avalie o que é reconhecido ou não. Com um sistema de reconhecimento, não é todo processo a distância, não é todo processo de aprendizagem que a gente deve reconhecer e colocar para dentro da carga horária, assumindo como horas de aprendizagem. Mas aquilo que for bem feito eu vou defender sempre que possa ser [reconhecido]. A gente fala tanto em diversidade, em diferenças regionais, mas na hora que aparece um instrumento para essas diferenças, a gente quer colocar tudo numa caixinha, como se todo mundo fosse igual. Por isso que eu faço essa defesa, que não é de deixar esses instrumentos serem recebidos de forma aleatória e sim de uma forma firme. E vou apostar muito no sistema de avaliação para que a gente possa fazer esse monitoramento.

O MEC apresentou uma proposta de mudança na Reforma do Ensino Médio, que tem sido alvo de muito debate. Há vários elogios às mudanças mas algumas das críticas recaem exatamente sobre a formação profissional. Uma delas é o fato de a proposta continuar permitindo que o itinerário formativo 5, de formação profissional, aconteça não como curso técnico mas como vários cursos de FIC que nem sequer precisam estar organizados em itinerários: pode ser um curso de cabeleireiro, outro de gastronomia etc. Outro quetionamento é ao fato de manter a possibilidade de EaD na formação técnica e profissional. Isso sem contar a manutenção do notório saber. A Setec participou dessa proposta? Há divergência no MEC sobre esses pontos? 

Não existe divergência dentro do MEC e nem existem, digamos, fechamentos. Existe uma proposta que foi colocada como razoável para atender a tudo que nós ouvimos. Aquela proposta existe a partir das oitivas que foram feitas na discussão do Ensino Médio. A proposta não é definitiva, ela vai para o Congresso, no Congresso vai haver disputa. E nessa disputa nós temos as nossas estratégias. Mas, de novo, nós temos diversos Brasis. Eu fui secretário de Educação durante quatro anos no estado do Rio Grande do Norte. Quando saí de lá, [estabeleci] que todas as escolas teriam que ter alguma coisa de Educação Profissional. Mas lá no município que tem 13 mil habitantes, com no máximo 120 alunos que fazem Ensino Médio, eu não tenho condição de fazer um curso técnico. Não tem mágica, não tem espaço. Então, se nós não olharmos para todos os Brasis... O ótimo é inimigo do bom.

A gente tem que buscar o melhor, mas entender que isso aqui é uma passagem, que tem que ser feito de maneira paulatina, enquanto não chegamos lá. Eu acho que nós devemos deixar todas as possibilidades abertas

Você diz [que o aluno do Ensino Médio] vai fazer um curso de cabeleireiro ou outro de gastronomia e outro que não tem nada a ver. Em princípio, não tem a ver com a área técnica, educacional e acadêmico, mas deve fazer uma diferença na vida daquela pessoa que no outro dia, quando sai com aquelas poucas horas, está ganhando o seu dinheiro, está sobrevivendo. Qualquer cabeleireiro, qualquer manicure, sobrevive daquilo. E às vezes ele faz um curso de gastronomia porque no sábado e domingo, próximo da casa dele, tem festa, tem aniversário. Parece que para ser formado em gastronomia tem que ser formado no Le Cordon Bleu! Eu queria que todo mundo fosse Le Cordon Bleu, mas a realidade é outra. Se a gente não puser o pé no chão, daqui a 20 anos estaremos discutindo a mesma coisa. A população que não tem acesso a nada [estará] cada vez mais excluída e nós aqui continuaremos fazendo a nossa pauta, buscando o melhor, que nem sempre vamos conseguir pelas condições que temos. E isso eu falo para todos os níveis que você colocou: da aprendizagem [profissional], da EaD... É preciso reconhecer, por exemplo, que algumas vezes você tem alunos lá na ponta, que não têm um professor, você faz o concurso e o professor não quer ir. O médico não quer ir ganhando R$ 20 mil! Aí a gente, por conta disso, vai dizer que não vai atender? Não. Então, é só para a gente pôr um pouco o pé no chão e dizer que são diversos Brasis. A gente tem que buscar o melhor, mas entender que isso aqui é uma passagem, que tem que ser feito de maneira paulatina, enquanto não chegamos lá. Eu acho que nós devemos deixar todas as possibilidades abertas.

Secretário, eu queria insistir em um único ponto. Porque uma coisa é o debate que o sr. fez sobre a importância de cursos de Formação Inicial e Continuada para trabalhadores, argumentando que existe uma população muito grande que está no mercado de trabalho e precisa de alguma qualificação. Mas aqui a gente está falando da educação básica, então, a crítica tem um teor um pouquinho diferente. Eu entendi que o sr. acha que o melhor é curso técnico como itinerário, mas a pergunta é se, também no Ensino Médio, a Setec entende que, por causa desses Brasis muito diversos, deve-se deixar em aberto a possibilidade de se oferecer o itinerário formativo como curso FIC e não técnico.

É só respeitar as diferenças. Então, vai ter um determinado lugar do Brasil que não vai ter [itinerário de formação profissional com curso técnico]. Eu vou dar esse exemplo de novo de uma cidade muito pequena, que tem Ensino Médio, mas que não tem professores suficientes para fazer isso. Se a gente dissesse ‘Abre tudo para a Educação a Distância’, você poderia pegar um professor da capital ou de uma cidade maior, mas não é esse o nosso objetivo. O ideal é que os itinerários sejam na mesma formação que ao final possa dar um curso técnico. E é isso que a gente vai orientar como prioridade. Agora, minha posição pessoal – não chegamos ainda a discutir isso dentro do MEC – é que é preciso dar liberdade, que os alunos escolham, desde que não sejam escolhas equivocadas e que a gente não tenha como atender naquilo que achamos que é o melhor. Eu não posso deixar os alunos sem nada. Então, sim, naquele município, naquela escola, nós temos que deixar em aberto para que eles possam fazer dentro dos limites que a gente estabelecer na discussão.

Secretário, eu vou tomar como referência algumas políticas dos dois governos Lula anteriores para perguntar sobre as propostas e iniciativas do MEC para esta atual gestão. Estão previstas, por exemplo, estratégias de fomento à oferta de ensino médio integrado nas redes estaduais, como foi o programa Brasil Profissionalizado?

No programa do Ensino Médio em Tempo Integral já há uma ponta para que a gente possa trazer Educação Profissional. Inclusive, a prioridade é que a parte que seria acrescentada para esse ensino ser integral preferencialmente seja com Ensino Médio com ensino profissional. O ministro já colocou R$ 4 bilhões por ano para incentivar o acréscimo. Parte de uma política de expansão de vagas para tentar atingir as metas do PNE.

Já temos todas as propostas aqui em estudo para levar ao presidente Lula de uma nova expansão da Rede [EPCT], porque essa rede é vitoriosa

Também foi o governo Lula que criou a Rede EPCT. Há previsão de fortalecimento, expansão física ou outro tipo de estratégia de fomento à Rede nesta gestão?

Já temos todas as propostas aqui em estudo para levar ao presidente Lula de uma nova expansão da Rede, porque essa rede é vitoriosa. Nós temos aí uma Rede que quando o presidente Lula chegou tinha 140 unidades de ensino e hoje tem mais de 600 espalhadas pelo Brasil. Isso dá um outro norte. Inclusive, uma das nossas metas é uma pesquisa que nos diga quais foram as mudanças nessas instituições e nos municípios, principalmente nos menores, antes e o depois da chegada dos Institutos. Neste momento nós estamos, ao mesmo tempo, estabelecendo e construindo uma nova política de expansão, sem esquecer de consolidar aqueles que ficaram. Porque durante os tempos do presidente Lula e da presidenta Dilma havia uma prioridade forte para essa Rede, inclusive com recursos. E ao chegarmos aqui, nós tivemos um orçamento com uma defasagem tão enorme que ainda não conseguimos atingir os números de 2014. Há também uma política que nós estamos estabelecendo para consolidar instituições que ainda não estão com o número de professores adequado àquilo que foi projetado e planejado à época, que ainda não têm estrutura física adequada. Há algumas instituições em que faltam ginásio, refeitório, biblioteca ou auditório. E essa é uma Rede que, além das atividades científicas e tecnológicas, não esquece das humanidades, da cultura. Por isso, é esse o exemplo que a gente persegue, por isso buscamos que os entes estaduais sejam inspirados no desenho dessas nossas instituições. E a gente também está construindo um desenho para a conectividade completa nessas escolas.

Continuamos também com nossos programas de formação para Educação Profissional e Tecnológica. Essa é uma política que existe desde que foi criada a Rede e até antes dela, de oferecermos vagas para professores de uma forma geral, que não são do nosso sistema federal, para que eles possam conhecer um pouco mais e se aprofundar no que é a Educação Profissional e Tecnológica. E um foco maior para uma nova expansão na questão dos cursos técnicos de nível médio. Esse é o nosso modelo, o nosso norte. Porque, para que a gente atinja os indicadores exigidos pelo PNE e se aproxime dos países da OCDE, tem que ter uma grande força com Educação Profissional técnica de nível médio. E não podemos esquecer do grande legado que está sendo deixado por essa Rede, que é a formação de professores nas licenciaturas. Esse eu acho que é um grande feito dessa Rede porque, como a maioria dos cursos de licenciaturas eram feitos nas capitais, na medida em que a lei colocou a obrigatoriedade dos cursos de licenciatura, [a oferta da formação pelos Institutos] é uma forma de mantermos aqueles professores nas suas origens, dentro da própria cidade. E, a partir dali, eles se comprometem com a própria cidade, muitos passando nos concursos para o próprio Instituto ou em concursos estaduais ou municipais. Esses eu acho que são o forte dessa Rede: a Educação Técnica Profissional de Nível Médio e a licenciatura.

Vimos, em todos os estados, quase que um abandono da EJA

Pouca coisa foi anunciada sobre políticas de EJA do governo, mas pelo menos uma matéria, do Globo, fala sobre um programa chamado ‘Alfabetiza Brasil EJA’, que priorizaria a “interlocução” com o ensino técnico. Há alguma iniciativa desse tipo sendo traçada junto à Setec? Seria uma estratégia semelhante ao Proeja (Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos)?

O que aconteceu foi a extinção da Secadi [Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão] nos governos anteriores. Nós perdemos esse norte, que era da alfabetização de jovens e adultos, e vimos, em todos os estados, quase que um abandono da EJA, um decréscimo na oferta de Educação de Jovens e Adultos, especialmente do que nós fizemos anteriormente, que foi o Proeja, que era a Educação de Jovens e Adultos com profissionalização. Hoje há uma relação muito forte entre a Secadi e a Setec. Então, onde for possível, os programas de alfabetização estarão associados à Educação Profissional e Tecnológica. Essa vai ser uma vertente nossa e cabe inclusive também na alfabetização, para buscar a alfabetização com qualificação social e profissional. É um pouco um retorno ao Paulo Freire, para que o estudante jovem adulto possa aprender usando as suas ferramentas de trabalho. Então, se ele é da área agrícola, a alfabetização se dá com conceitos utilizados na área agrícola. Se é da área da mecânica, não, e assim sucessivamente.

Considerando que temos pouco mais de 5 mil municípios, a ideia é mais ou menos essa: cada cinco ou seis municípios ter uma grande unidade da Rede {EPCT] no seu entorno, que possa permitir aos brasileiros, aos jovens, aos adultos, uma formação técnica e profissional para melhoria de sua vida.

Por fim, o sr. já falou bastante sobre a Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, mas eu queria lembrar que, embora essas instituições sejam centenárias, agora, em 2023, a organização delas em Rede está completando 15 anos. Que balanço o sr. faz desse processo?

Bom, primeiro tem a questão quantitativa, de nós podermos capilarizar a Educação Profissional. Essas instituições centenárias, na realidade, são 19, que foram criadas pelo presidente Nilo Peçanha em 1909. Depois foram criadas outras escolas, no período [Getúlio] Vargas, e assim sucessivamente, de tal modo que chegamos ao ano de 2003, quando o presidente Lula assume, com 140 unidades, como eu já disse lá atrás. Mas essas instituições nunca tiveram medo de mudar e se sintonizar com o desenvolvimento regional, com as questões sociais. Tanto que elas iniciam como a escola de aprendizes e artífices: formávamos funileiros, costureiros, alfaiates, relojoeiros e aquilo que à época se necessitava para o mundo do trabalho e para a profissionalização desses alunos. Na medida em que há o desenvolvimento, muitas se tornam liceus, já com a presença da língua pátria, português, e da matemática, um pouco da ciência, já se integrando à educação básica. Depois vem a possibilidade de isso ser aproveitado também no que então era o segundo grau. Com esse aproveitamento, elas entram também no Ensino Médio e, na sequência, vem uma necessidade tecnológica muito forte. Nos anos 1970, saíram de liceus para escolas técnicas industriais, depois escolas técnicas federais, passam a ser Cefets, que seriam centros com a possibilidade de oferecer também Educação Superior. E aí, vão dar esse último salto, sempre visando acompanhar o desenvolvimento brasileiro nacional, que foi a [transformação em] Institutos Federais. [Isso foi feito com a] busca de muito consenso e muita discussão, [resultando] numa legislação que permitia que todas essas escolas se unissem em rede. Havia duas redes separadas, uma de escolas técnicas mais ligadas à área industrial e outra de escolas agrotécnicas, além das vinculadas às universidades. Antes, você não percebia a presença da Rede, porque cada um tinha a sua identidade, inclusive visual. Hoje, em qualquer desenho, qualquer estrutura, qualquer evento, nós percebemos que é a Rede Federal que está lá. Todas essas unidades, dentro das suas regras, dentro da lei que as cria, são obrigadas a ofertar o ensino médio e licenciatura; têm uma regra para a eleição dos seus dirigentes; e têm um aspecto na área da formação [voltado ao] atendimento à sociedade e ao desenvolvimento local e regional. Com tudo isso, temos uma capilaridade. Saímos dessas 19 unidades de 1909 para mais de 600 campi. Hoje são 41 centrais, que são as suas reitorias, mas o que faz mesmo o trabalho são as suas unidades. Então, temos o desenho que era perseguido desde 2003: de iluminarmos o Brasil com a Educação Profissional. E essa iluminação vai se dar no momento em que a gente chegar a pelo menos mil unidades. Considerando que temos pouco mais de 5 mil municípios, a ideia é mais ou menos essa: cada cinco ou seis municípios ter uma grande unidade da Rede no seu entorno, que possa permitir aos brasileiros, aos jovens, aos adultos, uma formação técnica e profissional para melhoria de sua vida.

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A primeira grande batalha do governo atual na Educação provavelmente foi responder à insatisfação de vários segmentos sociais com a Reforma do Ensino Médio, herdada de gestões anteriores. Nas ‘caixinhas’ que organizam as funções de ministérios e órgãos governamentais, essa seria uma crise da Educação Básica, mas aqui prevalece a força do adjetivo: afinal, para quem entende que ‘básico’ significa aquilo que fornece a ‘base’ para todo o resto, a Reforma se tornou um problema para todos os outros segmentos formativos e um obstáculo para o papel social que se espera da Educação. É por isso que, reconhecido pelos estudos e militância no campo da Educação Profissional, o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Gaudêncio Frigotto se tornou uma das muitas vozes públicas a denunciar o que ele caracteriza como um “abandono” da concepção de Educação que a Constituição de 1988 estabeleceu. Reconhecendo que a correlação de forças no congresso e na sociedade é desfavorável, ele avalia que o governo precisa ser menos dúbio em relação às disputas nesse campo, ter clareza sobre a concepção de Educação que defende e tentar ir além dos “atalhos”.