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Entrevista: 
Gaudêncio Frigotto

O Ministério da Educação é onde a luta de classes se expressa mais dura

A primeira grande batalha do governo atual na Educação provavelmente foi responder à insatisfação de vários segmentos sociais com a Reforma do Ensino Médio, herdada de gestões anteriores. Nas ‘caixinhas’ que organizam as funções de ministérios e órgãos governamentais, essa seria uma crise da Educação Básica, mas aqui prevalece a força do adjetivo: afinal, para quem entende que ‘básico’ significa aquilo que fornece a ‘base’ para todo o resto, a Reforma se tornou um problema para todos os outros segmentos formativos e um obstáculo para o papel social que se espera da Educação. É por isso que, reconhecido pelos estudos e militância no campo da Educação Profissional, o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Gaudêncio Frigotto se tornou uma das muitas vozes públicas a denunciar o que ele caracteriza como um “abandono” da concepção de Educação que a Constituição de 1988 estabeleceu. Reconhecendo que a correlação de forças no congresso e na sociedade é desfavorável, ele avalia que o governo precisa ser menos dúbio em relação às disputas nesse campo, ter clareza sobre a concepção de Educação que defende e tentar ir além dos “atalhos”.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 24/10/2023 11h47 - Atualizado em 07/11/2023 16h17

Como você avalia o estado da arte da Educação Profissional no Brasil hoje?

Eu acho que duas coisas devem ser levadas em conta. Primeiro, a própria crise econômica no final do governo Dilma, já o Brasil tinha lá suas dificuldades. Mas aí vem o golpe de Estado e faz uma contrarreforma na Educação numa velocidade monumental. E, pior que isso, depois vêm os quatro anos do governo [Jair] Bolsonaro. Então, há uma sequência regressiva que vai explicar em grande parte a evasão do Ensino Médio e da Educação Profissional, que não é pouca. E eu acho que aí tem também uma questão interna das próprias instituições da Rede Federal. Por exemplo, logo depois de 2014/2015, o Decreto 5.154 estimulava o Ensino Médio integrado, estimulava o Proeja (Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Jovens e Adultos) e tinha uma cota para entrada de jovens de escola pública. E uma das dificuldades internas, que não está superada, é uma atitude [do tipo] ‘Ferro neles porque vão estragar os nossos indicadores’ ou de tratar esses estudantes como ‘coitadinhos’, dando qualquer nota, enquanto seria fundamental criar uma estratégia interna para que eles fossem progressivamente se recuperando. Mas isso não é posto como política. E tem os cortes de verbas na Rede Federal do governo golpista e do governo [passado]: não tinha transporte, não tinha bolsa... Eu orientei uma tese agora do Tiago Favero, e a conclusão dele, minha junto, é de que [o projeto] era conter e modificar os Institutos Federais e que a tendência é transformá-los numa espécie de um ‘sistema S estatal’, mas cada vez menos público. E acho que esta foi a contrarreforma.

Veja que eu não estou julgando o governo, estou julgando as forças sociais, a correlação de forças dentro do Estado brasileiro. Desde 2007, o [Movimento] Todos pela Educação entrou no PDE [Plano de Desenvolvimento da Educação) e, sem dúvida nenhuma, eles disputam a Educação Profissional que convém ao mercado. E é essa a tese do sistema S. Quando fiz a minha dissertação de mestrado sobre o Senai, [identifiquei que] lá se ensina o que serve à indústria. Você não está formando cidadãos, está formando trabalhadores para o sistema industrial. Esse foi um pêndulo regressivo dentro do próprio governo Lula. Já aquela proposta da escola pública unitária foi o caminho que no governo Lula foi fundamental. A [proposta] era fazer uma Educação Profissional não que aguce o olho e adestre a mão, como dizia [o italiano Antonio] Gramsci, mas que se integre com a Educação Básica. Esse foi um grande avanço político, os Institutos fizeram um trabalho hercúleo de equipes e foram avançando.

Mas, com a contrarreforma do Ensino Médio, nós estamos abandonando o conceito de Educação Básica que a Constituição de 1988 estabeleceu. Nos estados, se a reforma persistir, a tendência é encurralar a maior parte dos estudantes para o quinto itinerário [de formação profissional]. E de péssima qualidade, sem laboratório, sem qualificação do professor, sem nada. É um atalho. Os governos Lula e do PT não são feitos para isso. Vamos pagar um preço enorme. Essa é a crítica mais funda. Eu diria que o Ministério da Educação é onde a luta de classes se expressa mais dura. E ela se expressou já em 2004, quando se criou o Escola sem Partido, e em 2006, quando se criou o Todos pela Educação, que se juntam em alguma coisa mas são coisas diferentes também: um disputando a agenda moral, humanamente regressiva, e o outro disputando a Educação que serve ao mercado. Então, o esforço do governo e dos próprios deputados de esquerda, dos sindicatos, deve ser empurrar o pêndulo para assegurar e ampliar o [Ensino Médio] integrado, que é o que dá base. Porque nós temos que formar cidadãos, sem o que nós não mudamos essa gangorra. Então, existe um problema de conjuntura, mas existe também um problema de disputa da Educação Profissional.

Quando você tem uma sociedade desigual, com uma classe dominante tosca que tem o DNA colonizador e escravocrata, essa luta é permanente

Por que essa disputa na Educação Profissional?

Porque ela está na coluna vertebral da luta de classes. É aí que se forma a classe trabalhadora. Eu estava lendo um texto do Antonio Candido sobre o livro do Aluísio Azevedo, O Cortiço, que falava sobre uma mentalidade que ainda persiste. Ele destaca os três ‘pês’ para o português negro e burro: pão para comer, pano para vestir e pau para trabalhar. E ele chama isso de mais-valia crioula. Nós não nos livramos ainda dessa ideia de que o fato de existir um sistema de Educação Profissional e um sistema não profissional é a consumação da dualidade que o próprio sistema capitalista quer. Numa sociedade com 400 anos de escravidão, que começa a Educação Profissional para desvalidos da sorte e muitas vezes como espaço de correção, nós mantemos isso. Claro que, especialmente a partir da redemocratização, há uma luta para o pêndulo formar cidadãos. Mas nós temos um sistema paralelo. Eu costumo dizer que a Educação Básica é a que dá base. Gramsci dizia que um caminho para a educação média é um justo equilíbrio entre aquelas disciplinas que permitem ao jovem entender as leis da natureza - física, química, biologia - e aquelas que permitem entender as leis da sociedade, as relações sociais, e também entender a arte, a política, etc. Com isso você forma pessoas humanas para a sociedade e para o mercado também. Mas quando você tem uma sociedade desigual, com uma classe dominante tosca que tem o DNA colonizador e escravocrata, essa luta é permanente.


O PNE atual foi elaborado lá em 2014, quando estava em pleno funcionamento o Pronatec, que, pelos dados que se tem acesso, foi também um espelho das metas de Educação Profissional não cumpridas: financiou mais cursos de Formação Inicial e Continuada do que técnicos e sem priorizar o sistema público. O Pronatec deve continuar, há elementos dele a serem aproveitados ou trata-se de uma política que deve ser abandonada?

Se eu analiso dos anos 1930 para cá, o livro do Florestan Fernandes chamado ‘Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina’ vai nos dar base para entender que aqui nunca houve a preocupação de formar uma classe trabalhadora qualificada, diferente dos países que tiveram revoluções burguesas. A tal ponto que, se hoje nós quiséssemos ter uma política de alçar de fato [a economia], como fizeram o Japão e a Coreia, que sempre são citados como exemplos, não teríamos mão de obra suficiente. Eu li nos jornais que o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] vai ter problema porque não tem mão de obra qualificada suficiente. Por quê? Porque metade dos jovens estão fora da escola. Então, nós sempre vamos por um atalho. Nós começamos em 1930, no Estado Novo. Para a substituição de importações, precisávamos de mão de obra. Estava preparada? Não. Então, vamos ver se os empresários assumem a Educação Profissional rápida. Não quiseram porque não querem gastar dinheiro. Então, Getúlio [Vargas] diz: ‘Tudo bem, eu dou o fundo e vocês dirigem”. Uma anomalia. É o atalho. Aí vem a abertura democrática. Uma explosão. Juscelino [Kubitscheck], 50 anos em cinco. Não tem mão de obra. Tem que importar. Tanto que quando o Jango assume o governo, com uma perspectiva desenvolvimentista, cria o Pipmo, Programa de Intensivo de Preparação de Mão de Obra, para durar dez meses, mas durou 19 anos e nove meses. Era para ‘apagar fogo’. Aí vem a ditadura, que mantém o Pipmo, com formação intensiva de mão de obra, e cria a profissionalização compulsória. Depois começa a malandragem que o Fábio Konder Comparato mostra [com a análise] das Constituições brasileiras desde o Império. Ele diz que existem sempre duas Constituições: a oficial, que incorpora demandas populares, sociais, e a real, que que não se cumpre. Como? Protelando ou camuflando, dissimulando. A LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] é um exemplo, o Plano Nacional [de Educação] é outro. Está lá conquistado na Constituição que o Ensino Médio é a etapa final da Educação Básica, como direito social e subjetivo. Mas a LDB já começa a espatifar isso. Com o Plano Nacional, idem. É luta ponto a ponto. Eu me lembro de que em 2003 a gente assessorava o Ministério da Educação e foram feitos dois seminários. Um foi sobre Ensino Médio e não foi ninguém. Já quando aconteceu o da Educação Profissional, o Sistema S encheu dois hotéis em Brasília para disputar a direção [da política]. Eu coordenei uma mesa com mais de mil pessoas, que era sobre gestão e financiamento. Quais eram as teses que se defendia lá? Gestão democrática, dinheiro do Estado para o setor público e ensino integrado. O Sistema S nunca quis ensino integrado, falava em ensino ‘articulado’. Mas integrado significa que você não tem uma justaposição. Eu quero que o estudante tenha a base toda e depois vá ser um cidadão, até para discutir se ele tem que lamber máquina ou não. Mas veio o atalho e nós começamos a descaracterizar a Educação Básica.

Agora o atalho já não é mais o Pronatec, que claro, ainda existe: o atalho é o próprio Ensino Médio

O que o Lula pensa, do meu ponto de vista, é correto: a economia tem que girar, tem que gerar emprego. E até certo ponto, deu certo. Falta mão de obra e o Ensino Médio integrado é demorado, né? Então, dá-lhe Pronatec. A necessidade é real, mas aí se dá um círculo vicioso. Você não faz o que tem que fazer, não dá a base, e não é por falta de recursos, o problema é político. É só cobrar das grandes fortunas, de quem não paga imposto, que se consegue fazer escolas técnicas federais ou Politécnicos para o Brasil todo. É possível, países menores fazem isso. Então, vem o atalho Pronatec. E isso gera um jogo de cooptação dos governos com as próprias direções [dos IFs], que aumentam muito os cursos FIC porque essa é uma forma de [essas instituições] ganharem grana. E aquilo que é o básico, o integrado, vai lento. Eu diria que [as instituições] tendem a se adequar e, se entrar essa ideia do jeito temerário como está ali, você acaba com o conceito de integrado. Agora o atalho já não é mais o Pronatec, que claro, ainda existe: o atalho é o próprio Ensino Médio. E o risco maior, como mostra a tese do Tiago Fávero que eu orientei, é tornar a Rede Federal num Sistema S estatal.

Eu não sou ingênuo no sentido de achar que o governo pode tudo. Mas ele tem que brigar e ter a sociedade atrás, claro

O MEC apresentou uma proposta de mudança na Reforma do Ensino Médio. Há muitos elogios mas também críticas, várias relativas ao itinerário formativo 5, de formação profissional, principalmente a de manter a possibilidade de que ele seja oferecido como vários cursos FIC que nem precisam ter relação entre si e não como um curso técnico. Qual a sua avaliação sobre isso?

Qual é a posição política a partir da qual se deve discutir se a Reforma deve ser revogada? A de que ela foi fruto de um golpe. E ela já estava pronta: não por acaso, Maria Helena Cardoso, que foi a mulher forte da gestão Paulo Renato [no Ministério da Educação], foi a secretária geral do MEC do golpe. Eu não sou ingênuo no sentido de achar que o governo pode tudo. Mas ele tem que brigar e ter a sociedade atrás, claro. Eu acho que quem está se mobilizando são grupos, mas é insuficiente ainda. Essa é uma contrarreforma por todos os meios. Ela não vai permitir que a grande massa dos jovens, especialmente das escolas públicas, tenha a base, nem como cidadãos nem como bons profissionais. É fundamental recuperar as disciplinas básicas e fundamentais, essa foi uma luta que a sociedade ganhou, mas isso também pode ser burlado de várias formas, por exemplo, juntando física, química e biologia num pacotão.

Nenhuma realidade se soma, ela se relaciona. Some um curso de cabeleireiro, com um curso de tirar pulgas e outro de eletrônica. Isso dá o quê? Nada

Sobre os pontos específicos que você coloca, é uma questão epistemológica. Nenhuma realidade se soma, ela se relaciona. Some um curso de cabeleireiro, com um curso de tirar pulgas e outro de eletrônica. Isso dá o quê? Nada. Cruza de ouriço com cobra não dá arame farpado. Como diz o [Henri] Lefebvre, o que limita um tempo histórico são os fins obtusos e estreitos da classe dominante. Todo o processo de conhecimento é uma continuidade e um processo. E essa formação que dita a Reforma é uma profunda deformação do processo de conhecimento. Quando entra um governo com base popular, que é eleito com sangue e suor do cara que caminha 20 quilômetros para fazer um voto, como aconteceu no Nordeste, ele tinha que ser mais ousado, tinha que chamar a sociedade, apresentar a cara, porque se não vai ser chantageado o tempo todo.

Você é um grande defensor da Rede Federal e do Ensino Médio integrado que a caracteriza. Mas, mesmo no campo progressista da Educação, há quem argumente que, apesar dos seus evidentes êxitos, esse não é um modelo replicável para as redes municipais e estaduais do país, não é universalizável como estratégia para melhorar a educação básica brasileira. Qual a sua avaliação sobre isso?

Eu respondo pela boca do atual ministro da Fazenda [Fernando Haddad] que, quando era candidato à reeleição em São Paulo, disse que queria levar o projeto dos Institutos Federais para a rede pública de lá. É claro que é caro, mas um estado como São Paulo pode. E outra coisa: talvez não possa em quatro anos, mas se pode ter um projeto de Estado e não de governo, um projeto estratégico para os próximos 20 anos. É aquilo que eu falei para o Lula quando ele inaugurou o prédio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio [em 2004]: se tivermos milhares dessas escolas, um dia o Brasil será uma nação. Não se trata de ser um modelo, mas [de reconhecer que] essa é a proposta que melhor contempla uma travessia que possa ser mais ousada para uma educação unitária. Não é única, é unitária, o que significa que o cara parte de um ponto desigual, mas o ponto de chegada tem que ser similar. Porque ele é brasileiro e a Constituição diz que todos têm o mesmo direito.

Eu me emociono com os Institutos Federais porque vou ao Brasil profundo: 85% estão na periferia ou bem no interior. Quissamã, por exemplo: é educativo para aquela sociedade ter um prédio maravilhoso como aquele. Uma professora de literatura me convidou para ir ao Instituto Federal de Confresa, uma cidade a 1,1 mil quilômetros de Cuiabá, que deve ter 15, 20 mil habitantes. Tem um projeto maravilhoso. Eles trabalham com 70 comunidades quilombolas. Lá você vê a Semana de Arte e de Ciência com essa garotada quase de pé no chão, apresentando desenvoltos. Estão formando gente de todo tipo. No Instituto do Acre, a professora de artes viu que na escola tinha alguns alunos surdos-mudos, perguntou quem topava aprender a língua de sinais e vai formar um coral para cantar em libras. É emocionante. Você forma gente. Eu poderia dar dezenas de exemplos. Não é formação profissional para ele ser torneiro mecânico - ele pode ser torneiro mecânico, mas vai ter uma base de laboratório, de experiências, etc. Agora, você não vai fazer uma escola de tempo integral se não tem comida... Vamos expandir a escola de tempo integral? O Miguel Arroyo diz o seguinte: ‘Escola de Tempo integral com essa rede assim? Que horror!’. Eu participei de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Maceió quando estavam implantando a contrarreforma e a escola em tempo integral e ouvi uma diretora de escola falando que não queriam. [Ela perguntava]: como é que vamos segurar essa juventude turbinada se eu não tenho nem onde fazer xixi ou tomar água? Se o professor não tem sala?

Quantidade qualificada é que é democrática, não a minoria qualificada

Não adianta criar escolas-modelo. Essa é uma ideia do efeito demonstração. Contrapor quantidade e qualidade é querer manter as coisas no mesmo lugar, como dizia o velho Gramsci. Quantidade qualificada é que é democrática, não a minoria qualificada. Os Institutos Federais representam 2%, 3%? E se tivesse um projeto de longo prazo? A questão é que nós não temos políticas de Estado de continuidade. Eu sou a favor da federalização do Ensino Médio. Eu sei que você vai dizer: ‘Mas e as particularidades?’. É possível fazer sem perder as particularidades. Agora, a particularidade tem que enriquecer uma universalidade, senão ela fica na particularidade.

O Instituto Federal é diferente da universidade, tem que ter um compromisso mais forte com a ‘sustentabilidade local’ e a melhoria da qualidade de vida. E os Institutos têm potencial para isso. Ainda estão muito voltados para dentro, e é isso que eu vou tentar demonstrar como hipótese da minha pesquisa. Qual é o impacto que eles têm de fato nesses dois conceitos? E qual é a base disso? O Ensino Médio integrado. Integração não é só de disciplinas das ciências humanas e gerais com as técnicas, é também integrar a pesquisa, a extensão, etc. E tem esse próprio conceito da verticalidade, né? Então, para ser curto e grosso, eu acho que é possível [universalizar uma educação como a dos IFs], não de ontem para hoje, mas dentro de um projeto de nação.

Gaudêncio, você já falou um bocado, mas eu não queria deixar de perguntar. Está completando 15 anos a criação da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Como você avalia esse processo?

No fundo, [as escolas que vão compor] a Rede já eram consolidadas, com qualidades e defeitos. Foi muito rápido criar os IFs. E de onde vem essa rapidez? O que havia por trás disso era um debate sobre criar a universidade tecnológica, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O Cefet Paraná fez um projeto para se transformar numa universidade tecnológica, meio no estilo das escolas alemãs. Não se pensava nos Institutos Federais. Minha interpretação é de que a criação dos Institutos com o estatuto de universidade, mas não sendo a universidade clássica, responde um pouco a isso, dando a verticalidade. Tem uma nova institucionalidade, tem uma nova identidade a ser construída, e uma nova regionalidade. Não são 27, são 38, mas cada um tem uma enormidade [de campi]. O grande ganho foi especialmente o fato de algumas escolas agrotécnicas terem ido para a Rede. Outro ganho é você trabalhar em rede, embora isso ainda seja muito mais formal do que real, porque também há muita competição. A verba depende do número de matrículas e a dificuldade é que os cursos regulares são mais caros. É como se fosse uma corrida e, mesmo que o curso FIC pague menos, se você faz muito, acaba compensando. A identidade da Rede ainda não está construída. Entre o reitorado, eu diria que, dos 38, um terço e pouco entende e luta pela proposta dos Institutos e dois terços não, ou talvez entendam em parte. Então, há uma relação de forças interna. E muitas vezes os ministros são astutos nisso, chamam individualmente e não como rede. Mas, com todos os problemas, [a Rede] é o que há de melhor [em educação no país], inclusive considerando a rede privada, que custa muito caro. Acho que os Institutos não têm ainda essa organicidade, mas estão construindo. Haver a interiorização é o grande barato. O Lula queria pelo menos mais mil escolas, mas não vai conseguir chegar a isso. Mas têm que disputar a concepção. Volto a dizer: o risco que a Rede passa, inclusive com essas mudanças dos itinerários, é se tornar um Sistema S estatal, mas não público, com [a lógica de] ter que ir buscar um dinheirinho ali. É essa a ideia da contrarreforma. É a ideia de que a Educação Profissional não tem nada que ver com Educação.

Você falou o tempo inteiro que é preciso ter uma política de longo prazo, projeto de nação. Mas no que é possível fazer ou tentar instituir no espaço de quatro anos, no campo da Educação Profissional, o que você entende que deve ser prioridade deste novo governo? O que se deve continuar ou descontinuar em relação ao que os outros governos Lula e Dilma fizeram?

Primeiro, Lula vem da Educação Profissional. De uma época em que o menino fazia Senai e se empregava porque havia demanda. Então, mal ou bem, Lula tem essa visão. Foi por isso que ele apostou no discurso da Educação profissional. Se o jovem tem pressa, o pobre tem pressa. E agora, na campanha, eu acompanhava novamente a retomada [desse discurso]. Então, sem dúvida, é uma cláusula pétrea. O avanço da Educação Profissional foi dentro do governo dele. O que eu acho que o governo teria que fazer é consolidar essa área, essa ideia do ensino integrado, porque ele é que dá base para formar cientistas, bons engenheiros, bons médicos. É ele que dá a base. Indígena pode ser advogado? Pode. E filho de colono? Pode, né? Eu posso até entender o fio de navalha que é a correlação de forças atual. Não tenho ilusão, por exemplo, de que a Reforma do Ensino Médio vá ser revogada. Não há força política para isso. Mas nós temos força para, por exemplo, fazer com que a Rede Federal não seja obrigada a seguir a Reforma. Seria um grande ganho. O flanco é uma concepção de Educação que não é mais básica. E há muitos deputados do PT que são dessa corrente que tem pressa porque isso dá voto. E eles têm uma luta de fundo pela reeleição, que sempre que é legítima. Não temos mais quadros como Florestan e outros que eram parlamentares ou políticos. Regredimos também nisso. O grande problema é a gente perder a concepção. Vamos continuar no atalho.

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Os dois primeiros governos do presidente Luíz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010, foram marcados por um forte investimento em Educação Profissional. Naquele período, não só foi criada a Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT), que agora completa 15 anos, como o número dessas instituições se multiplicou. De lá para cá, muita coisa mudou e o retrato que os dados mostram da Educação Profissional brasileira neste momento não é dos mais animadores. A oferta de matrículas de cursos técnicos integrados estagnou e tampouco houve o fortalecimento desse segmento na rede pública. À frente da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) do Ministério da Educação, com a responsabilidade de comandar a reversão desse quadro, está agora Getúlio Marques Ferreira, professor aposentado e ex-gestor do atual Instituto Federal do Rio Grande do Norte, que também foi secretário de educação do estado. Nesta entrevista, ele anuncia a proposta de novas iniciativas de fortalecimento e expansão da Rede Federal, tomada como o modelo a ser perseguido, reconhece os méritos do Pronatec, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, mas aponta necessidade de mudanças no seu rumo, sugere a repactuação das metas do PNE em relação à Educação Profissional e defende o que caracteriza como um caráter público do Sistema S.