Que efeitos principais se pode esperar do PL que foi aprovado ontem, autorizando a terceirização irrestrita?
Observando historicamente os resultados de processos de terceirização no Brasil e no mundo, fica claro que o que se pode esperar é o aumento da precarização do trabalho e da precariedade da vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Apesar de governo e empresários cantarem loas ideologicamente aos efeitos positivos, o que se encontra concretamente são impactos bastante negativos que vão da vida de trabalhadoras/es até as contas públicas.
A terceirização é um processo bastante diversificado que inclui empresas e trabalhadores muito variados em termos de sua inserção. De todo modo, aqui devemos nos ater à esmagadora maioria dos casos produzidos por este processo. Não há como negar. Os números estão aí, falam por si e são cruéis. Os trabalhadores terceirizados, só para ficar em alguns aspectos, trabalham mais horas, ganham menos remuneração e têm rotatividade maior. Assim, quando governo e empresários dizem que a nova lei diminuirá a insegurança jurídica das empresas, devermos sempre agregar que aumentará, em muito, a insegurança dos trabalhadores.
A regulamentação da terceirização é uma demanda antiga do grande empresariado, expressa inclusive em documentos que as grandes confederações entregaram ao novo governo no processo pós-impeachment. Por que isso é tão importante?
A terceirização há décadas entrou no já pesado arsenal do capital no sentido de estratégias de redução dos custos do trabalho. Contudo, não é só disso que se trata. Há uma dimensão política, sempre velada discursivamente pelo capital, mas desvelada pela análise das práticas concretas. A terceirização se mostrou bastante eficaz no que diz respeito ao desmantelamento dos coletivos de trabalhadores no chão das empresas e à fragmentação da classe trabalhadora, produzindo sérias dificuldades às possibilidades de organização e mobilização. Isso teve forte impacto, reduzindo a força dos sindicatos. Ela se associou a mecanismos discursivos e de formação de identidades que visavam limpar a conflitividade entre capital e trabalho. Assim, não existiriam mais trabalhadores, mas sim colaboradores. Estes apenas co-laboram. Trabalham junto com as empresas. Sem conflito. Não se deve dizer, contudo, que trabalhadores terceirizados não produzirão eles mesmos momentos valiosíssimos e luminosos de organização e luta. Mas isso é feito sob dificuldades enormes, ainda maiores do que às de outros trabalhadores.
Esse empresariado que defende a terceirização irrestrita argumenta que essa e outras medidas relacionadas a uma reforma trabalhista vão gerar mais emprego. Qual a sua avaliação sobre isso?
Na verdade, se observarmos bem, há todo um pacote de políticas de austeridade sendo implementado às pressas pelo governo Temer. No fundo de todas elas, e na sua orquestração, temos a redução do custo do trabalho, a precarização para trabalhadores e um futuro de baixa proteção e inseguridade social. É preciso discutir e qualificar esta relação entre terceirização e criação de empregos. Se cria empregos, precisamos discutir qual a qualidade destes empregos. Na esmagadora maioria dos casos, são empregos precários em que se trabalha mais, se ganha menos e se tem maior rotatividade. Com a aprovação da terceirização irrestrita, para setores fim e meio, todos os trabalhadores, de todos os setores, de alguma maneira, podem ser alcançados agora pela terceirização.
A regulamentação da terceirização vinha sendo discutida ainda no governo Dilma e parecia posta em segundo plano no momento pós-impeachment em relação a outras reformas ditas estruturais, como a reforma da previdência. Por que o tema voltou à tona neste momento? Por que a pressa na votação dessa medida?
A pressa do governo se explica de diversas formas. É um governo de baixa legitimidade e popularidade que, como ele mesmo diz, por isso mesmo, pode tomar medidas impopulares. A base de nosso parlamento tem grande porcentagem de empresários diretamente e/ou representantes a eles ligados. Este é um governo que representa forças da contrarreforma. Apesar dos muitos limites em termos de avanços políticos e sociais do governo anterior, e até das benesses que concedeu ao capital, principalmente o financeiro, ele precisou ser retirado de cena com um golpe parlamentar-midiático-jurídico para que estas forças pudessem agir sem qualquer limitação. Temer foi imposto à sociedade brasileira exatamente para isso. Está cumprindo à risca. Estamos em vias rápidas para um retrocesso ao neoliberalismo dos anos 1990, agora 2.0, no país. Ainda mais aberto e selvagem. Sintomático disso é que, apesar de outros projetos sobre terceirização estejam tramitando, se apressa exatamente a votação de um projeto do governo FHC, que ficou congelado durante anos.
É possível identificar impactos mais diretos dessa medida sobre os serviços públicos?
No caso desta medida os impactos no setor público serão muitos. Representantes parlamentares do governo já vieram a público dizer que ela será associada a um outro projeto que tramita no Senado e que se limitará este processo no caso dos serviços públicos. Não creio. O Estado, em seus níveis municipal, estadual e federal, já assumiu, há muito, a perspectiva gerencial-empresarial em sua gestão. Já há processos de terceirização de atividades-meio nos vários níveis. A chamada terceirização irrestrita tem tudo para grassar no setor público também.
Veja que, já pelo menos desde 2015, ainda no governo Dilma, o MEC vem sinalizando com diversas possibilidades, inclusive nos níveis de pesquisa e ensino, de utilização das OS, por exemplo, em um setor estratégico como as universidades públicas. Nós que estamos nas universidades federais, por exemplo, podemos testemunhar os graves problemas da terceirização de atividades- meio nestas organizações, em termos dos contratos com as empresas, das condições de trabalho dos trabalhadores, dos serviços prestados etc. Dá para imaginar onde pararemos com a implantação desta terceirização sem restrições. A terceirização irrestrita, no bojo da reforma trabalhista que se está propondo, vai disseminar por todo o mundo do trabalho a lógica que já atinge a contingentes enormes de trabalhadores. Teremos um mundo do trabalho todo precarizado.
O projeto que foi aprovado ontem retrocede inclusive em tópicos que tinham sido muito criticados e alguns até superados no PL 4330, que foi a última versão discutida no Congresso. Merecem destaque: a aprovação da responsabilidade subsidiária – e não solidária – da empresa que contrata a terceirizada; a autorização para quarteirização e a redução do capital mínimo exigido para a abertura de uma empresa de terceirização de mão-de-obra. Queria que você comentasse essas medidas.
Além de ampliar as possibilidades de terceirização de setores antes protegidos, as medidas chancelam, sob o argumento de busca de segurança jurídica, práticas deletérias para trabalhadores. Na prática, dificultam ainda mais a vida de trabalhadores. Ao se dizer que os trabalhadores só poderão acionar a empresa que contrata serviços terceirizados após se esgotarem os recursos financeiros da empresa terceirizada que o contrata para prestar o serviço, turvam-se ainda mais as possibilidades, já grandes, de os trabalhadores alcançarem seus direitos caso não cumpridos.
Ainda mais quando se reduz o montante de capital de garantia necessário para poder se abrir uma empresa de terceirização de serviços. Autorizar a quarteirização é garantir que as empresas terceiras, que em muitos casos já são difíceis de prescrutar, repassem para as quartas, ainda mais profundas e difíceis de alcançar. Ao invés de pensar em formas de proteção e até redução do trabalho temporário, o que se fez foi ampliar o tempo em que trabalhadoras/es poderão ser submetidos a esta forma precária de trabalho.
O que se aprovou foi uma forte e extensa teia de desproteção ao trabalho e aos trabalhadores, que se enredarão cada vez mais nela e serão, como sempre, ao fim, prejudicados. Esta é uma lei que favorece explicitamente as empresas e ataca os trabalhadores. Por óbvio, dado o sistema em que vivemos e o governo que temos e as forças que ele representa, não teríamos uma legislação que, se buscasse segurança jurídica para as empresas, também buscasse proteção aos trabalhadores. Não era disso que se tratava para o capital. De forma perversa, as grandes empresas repassam a exploração mais dura e extensa para as terceiras, que cumprirão este papel. Agora elas estão “seguras” e protegidas por lei. As terceiras repassarão às quartas, que cumprirão seu papel, em recônditos mais profundos. E por aí vai, até sabe-se lá onde. Se já é grande o número de trabalhadores em situação análoga a de escravos que estavam sob a rubrica “terceirizados”, pode-se imaginar daqui para frente.